Oito
décadas depois, romance de Huxley ganha nova atualidade, ao alertar que
sociedades de controle podem apoiar-se, além da repressão, na tecnologia e
culto do “progresso”
Ignacio
Ramonet – Outras Palavras - Tradução: Antonio Martins -
Imagem: Katarina Macurova
Breve,
terão se completado 75 anos da primeira edição brasileira (1941) de Admirável
Mundo Novo1, grande romance perturbador
lançado em 1932, na Inglaterra, pelo visionário filósofo e escritor Aldous
Huxley.
Diante
de tanta “felicidade artificial” em nossos dias, tantas manipulações e tantos
condicionamentos contemporâneos, cabe perguntar: seria útil reler Admirável
Mundo Novo? Acaso é necessário retomar um livro escrito há mais de oito
décadas, numa época tão distante que a Internet não existia e sequer a TV havia
sido inventada? Seria este romance algo mais que uma curiosidade sociológica,
umbest-seller ordinário e efêmero, de que se venderam, em inglês, mais de
um milhão de exemplares, já no ano de sua publicação?
Estas
questões parecem ainda mais pertinentes porque o gênero a que pertence a obra –
ficção científica, distopia, fábula de antecipação, a utopia científico-técnica
– possui um grau muito elevado de obsolescência. Nada envelhece mais rápido que
o futuro, sobretudo na literatura.
No
entanto quem, superando estas reticências, mergulhar nas páginas do romance
ficará chocado por sua surpreendente atualidade. Ficará claro que, pelo menos
uma vez, o passado capturou o presente. Recordemos que o autor, Aldous Huxley (1894-1963),
narra uma história que transcorre num futuro muito distante, próxima ao ano
2500 ou, mais precisamente “no ano 600 da Era Fordiana”, em alusão satírica a Henry Ford (1863-1947),
pioneiro norte-americano da indústria automobilística e inventor de um método
de organização de trabalho para a fabricação em série e padronização de peças.
Tal método, conhecido como “fordismo”, transformou os trabalhadores em algo
inferior a autômatos, robôs que repetiam, ao longo da jornada de trabalho, um
único gesto. Sua emergência suscitou, à época, críticas violentas: pensemos,
por exemplo, nos filmes Metropolis (1926),
de Fritz Lang, ou Tempos
Modernos (1935), de Charles Chaplin.
Aldous
Huxley escreveu Admirável Mundo Novo, visão pessimista do futuro e
crítica feroz do culto positivista à ciência, num momento em que as
consequências sociais da grande crise de 1929 afetavam em cheio as sociedades
ocidentais, e em que a crença no progresso e nos regimes democráticos parecia
vacilar.
Publicado
em inglês antes da chegada de Hitler ao poder na Alemanha (1933), Admirável
Mundo Novo denuncia a perspectiva “de pesadelo” de uma sociedade
totalitária fascinada pelo progresso científico e convencida de poder oferecer
a seus cidadãos uma felicidade obrigatória. Apresenta a visão alucinada de uma
humanidade desumanizada pelo condicionamento pavloviano2 e pelo prazer ao alcance de uma
pílula (o “soma”). Num mundo horrivelmente perfeito, a sociedade decide
totalmente, com fins eugenistas e produtivistas, a sexualidade da procriação.
É
uma situação não tão distante da que se vive hoje em alguns países (sobretudo
na Europa), em que os efeitos da crise de 2008 estão provocando o ascenso de
partidos de extrema direita, xenófobos e racistas. Onde os anticoncepcionais já
permitem um amplo controle da natalidade. E onde novas pílulas (como o Viagra e
a feminina Lybrido)
dopam o desejo sexual e o prolongam até além da terceira idade. Ao mesmo tempo,
as manipulações genéticas permitem cada vez mais aos pais a seleção de
embriões, para engendrar filhos em função de critérios pré-determinados –
inclusive estéticos.
Outra
relação surpreendente com a atualidade é que o romance de Huxley apresenta um
mundo onde o controle social não dá espaços ao acaso, onde, formadas a partir
do mesmo molde, as pessoas são “clônicas”, produzidas em série. A maioria tem
garantidos o conforto e a satisfação dos únicos desejos que está condicionada a
experimentar, mas perdeu-se, como diria Mercedes Sosa, a razón de vivir3.
Em Admirável
Mundo Novo, a americanização do planeta está completa, a História acabou
(como afirmaria, mais tarde, Francis Fukuyama4), tudo foi padronizado e “fordizado”
– tanto a produção dos seres humanos, resultado de puras manipulações
genético-químicas, quanto a identidade das pessoas, produzida durante o sonho
por hipnose auditiva: a “hipnopedia”, qualificada por um personagem do livro
como “a maior força socializante e moralizante de todos os tempos”.
Os
seres humanos são “produzidos” no sentido industrial do termo, em fábricas
especializadas – os “centros de incubação e condicionamento” – segundo modelos
variados, que dependem das tarefas muito especializadas que serão atribuídas a
cada um, e que são indispensáveis para uma sociedade obcecada pela
estabilidade.
Desde
seu nascimento, cada ser humano é, além disso, educado em “centros de
condicionamento do Estado”. Em função dos valores específicos de seu grupo, e
por meio do recurso maciço à hipnopedia, criam-se nele os “reflexos
condicionados definitivos” que o fazem aceitar seu destino.
Aldous
Huxley ilustrava assim os riscos implícitos na tese que vinha sendo formulada,
desde 1924, por John B. Watson, o pai do “condutivismo”5, esta suposta “ciência da observação
e controle do comportamento”. Watson afirmava com frieza que podia escolher na
rua, ao acaso, uma criança saudável e convertê-la, à sua vontade, em médico,
advogado, artista, mendigo ou ladrão, independentemente de seu talento,
inclinações, capacidades, gostos e origem de seus ancestrais.
Em Admirável
Mundo Novo, que é fundamentalmente um manifesto humanista, alguns viram
também, com razão, uma crítica ácida à sociedade stalinista, à utopia soviética
construída com mão de ferro. Mas também há, claramente, uma sátira à nova
sociedade mecanizada, padronizada, automatizada que se criva à época nos
Estados Unidos, em nome da modernidade técnica.
Extremamente
inteligente e admirador da ciência, Huxley expressa no romance, no entanto, um
profundo ceticismo em relação à ideia de progresso, e desconfiança diante da
razão. Frente à invasão do materialismo, o autor engendra uma interpretação
feroz às ameaças do cientificismo, do maquinismo e do desprezo à dignidade
individual. Claro que a técnica assegurará aos seres humanos um conforto
exterior total, de notável perfeição, estima Huxley com desesperada lucidez.
Todo desejo, na medida em que possa ser expresso e sentido, será satisfeito. Os
seres humanos terão, nesse ponto, perdido sua razão de ser. Terão transformado
a si mesmos em maquinas.
Já não se poderá falar, em sentido estrito, de “condição
humana”.
Mas
o “condicionamento” não cessou de se intensificar desde a época em que Huxley publicou o
livro e anunciou que, no futuro, seríamos manipulados sem que nos déssemos
contas. Em particular, pela publicidade. Por meio do recurso a mecanismos
psicológicos e graças a técnicas muito experimentadas, nos mad men da
publicidade conseguem que compremos um produto, um serviço ou uma ideia. Este
modo, convertemo-nos em pessoas previsíveis, quase teledirigidas. E felizes.
Confirmando
as teses de Huxley, Vance Packar publicou The
Hidden Persuaders (na edição brasileira, Nova Técnica de Convencer),
em meados da década de 1950 e Ernest Dichter e Louis Cheskin denunciaram que as
agências de publicidade tentavam manipular o inconsciente dos consumidores.
Sobretudo mediante o uso de “publicidade subliminar”, nos meios de comunicação
de massas. Em 30 de outubro de 1962, executou-se um teste que demonstrava a
eficácia da publicidade subliminar.: durante a exibição de um filme,
lançavam-se mensagens “invisíveis” sobre certos produtos, em intervalos
regulares. As vendas de tais produtos aumentaram.
Atualmente,
a “publicidade subliminar” avançou e existem técnicas mais sofisticadas e mais
perversas para manipular a mente do ser humano6. Por exemplo, mediante as cores que
modificam nostras percepções e influenciam nostras decisões. Os especialistas
emmarketing sabem disso e utilizam as técnicas para orientar nossas
compras.
Num
conhecido experimento de finais dos anos 1960, Louis Cheskin, diretor do
Instituto de Pesquisa da Cor, pediu a um grupo de donas de casa que
experimentassem três caixas de detergentes e decidissem qual delas dava melhor
resultado com roupas delicadas. Apesar de as três conterem o mesmo produto, as
reações foram distintas. O detergente da caixa amarela foi considerado “forte
demais”, o da cor azul foi visto como não tendo “força para limpar”. Ganhou a
caixa bicolor.
Em
outro teste, duas amostras de cremes de beleza foram dados a um grupo de
mulheres: uma num recipiente rosa; outra, num de cor azul. Quase 80% das
mulheres declararam que o creme de frasco rosa era mais fino e efetivo que o de
frasco azul. Ninguém sabia que a composição dos cremes era idêntica. “Não é
exagero dizer que as pessoas não apenas compram o produto per se, mas
também pelas cores que o acompanham. A cor penetra na psiqué do consumidor e
pode converter-se em estímulo direto para a venda”, escreve Luc Dupont em seu
livro 1001 truques publicitários7.
Nos
anos 1950, quando a empresa produtora do sabonete Lux começou a vender seu
produto nas cores rosa, verde e turquesa, substituindo o tablete habitual de
cor branca, converteu-se na líder de mercado. As novas cores sugeriam
delicadeza e cuidado, intimidade e carinho e os consumidores mostraram-se
entusiasmados. Mais recentemente, na Europa, o Mc Donald’s deixou sua mítica
cor vermelha (uma tonalidade apreciada pelas crianças e que costuma estimular a
fome), a favor do verde, numa tentativa de aproximar sua marca da comida
saudável e de um estilo de vida sustentável8.
A
leitura de Admirável Mundo Novo alerta contra todas estas agressões9. Sem esquecer as manipulações
midiáticas10. Este romance também pode ser visto
como uma sátira muito pertinente da nova sociedade delirante que está sendo
construída hoje, em nome da “modernidade” ultraliberal. Pessimista e sombrio, o
futuro visto por Aldous Huxley serve de advertência e anima, na época das
manipulações genéticas e da clonagem, a vigiar de perto os progressos
científicos atuais e seus potenciais efeitos destrutivos.
Admirável
Mundo Novo ajuda a compreender melhor o alcance e os riscos e perigos que
surgem quando, de novo e por todos os lados, “progressos científicos e
técnicos” nos chocam com riscos ecológicos11 que põem em perigo o futuro do
planeta. E da espécie humana.
—
1No texto original, Ramonet faz alusão aos 80
anos da primeira edição em língua espanhola, publicada em 1935 pelo editor
catalão Luís Miracle. No Brasil, a Editora Globo foi pioneira em lançar Admirável
Mundo Novo, em 1941, com tradução de Lino Vallandro e Vidal Serrano. Há em
catálogo uma edição
brasileira (312 páginas, R$ 21). A obra também está disponível,
gratuitamente, na Internet. (Nota do Tradutor)
2Referência a Ivan Pavlov, médico russo,
Prêmio Nobel de Medicina em 1904 por seus trabalhos experimentais sobre os
“reflexos condicionados”, o mais célebre dos quais é o do “cão de Pavlov”.
4Em uma obra extremamente huxleyana, O
fim da História e o último homem (1992).
5Ver http://www.ilustrados.com/tema/1298/Psicologia-evolutiva-conductismo-John-Broadus-Watson.html
6Ler, de Ignacio Ramonet, Propagandas
silenciosas, La Habana ,
2002; e, de Noam Chomsky e Ignacio Ramonet, Cómo nos venden la moto,
Icaria, Barcelona, 1995.
7Luc Dupont,1001 trucos publicitarios, Lectorum,
México, 2004
8Ler La Vanguardia , Barcelona,
13 de enero de 2012.
9Ler também, por exemplo, de Mertxe
Pasamontes, “Una docena de modos en que nos manipulan para que estemos
insatisfechos”. http://unadocenade.com/una-docena-de-modos-en-que-nos-manipulan-para-que-estemos-insatisfechos/
10Ler também, de Noam Chomsky, Diez
estrategias de manipulación a través de los medios.http://www.revistacomunicar.com/pdf/noam-chomsky-la-manipulacion.pdf
11Ler Laudato sí, a Encíclica “verde” del
Papa Francisco, Vaticano, 16/6/2015http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html
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