José
Vítor Malheiros – Público, opinião
O
golpe foi “uma oferenda de Deus” diz Erdogan. Haverá agora mais poderes
presidenciais e menos poderes para as elites laicas, incluindo o sistema
judicial.
Um
golpe de estado militar na Turquia. Um golpe falhado e esmagado, graças à
oposição popular e a um iPhone com FaceTime. Mas, durante umas horas, a
expectativa em todo o mundo, com prudentes declarações dos poderes políticos
mundiais, que exprimem a sua “preocupação” e a absoluta necessidade de manter a
“estabilidade” política na Turquia e que se abstêm de declarações de apoio a
qualquer dos lados. Durante umas horas, o medo de que este golpe se possa
transformar no início da explosão daquele barril de pólvora que faz de rolha
entre a Europa e a Ásia, que tem a cabeça na Europa mas que tem fronteiras com
a Síria, o Iraque e o Irão, ali ao pé do território ocupado pelo Daesh, que tem
uma guerra civil e uma guerra extra-fronteiras em curso e que tem um dos maiores
exércitos do mundo, que quer entrar na União Europeia e está na NATO mas cujo
estado teoricamente laico está em vias de islamização. Durante umas horas, a
expectativa e a dúvida perante este golpe levado a cabo por militares, um
sector tradicionalmente autoritário e habituado durante séculos a exercer o seu
poder, por vezes em ditadura absoluta, mas que há um século é uma força
opositora do islamismo. Durante umas horas, a ténue esperança de que este golpe
de estado (cujos autores anunciam que querem “restaurar a ordem constitucional,
os direitos humanos, as liberdades e o primado da lei”) possa restabelecer a
abalada democracia e o estado de direito laico, de forma semelhante ao que
aconteceu no 25 de Abril em Portugal.
Mas
estas dúvidas duram apenas umas horas, porque o regime depressa abafa a
rebelião, captura os revoltosos e passa à ofensiva, prendendo 6.000 militares e
1500 civis, suspendendo ou detendo 2750 juízes e procuradores. O golpe foi “uma
oferenda de Deus” diz o próprio presidente Recep Tayyip Erdogan, que aponta as
alterações que quer pôr em prática na sua “nova Turquia”: mais poderes
presidenciais e menos poderes para as elites laicas, incluindo o sistema
judicial.
Após
o desfecho, os poderes instalados congratulam-se pelo “regresso à normalidade
constitucional e democrática” e recordam que a Turquia é uma democracia
constitucional e que nem a UE nem os EUA nem ninguém pode, em nome da
estabilidade, do direito e da democracia, aceitar uma mudança de regime pela
força. O argumento tem força.
Mas
será isto uma democracia? Este país que expulsa os jornalistas estrangeiros
independentes e lança na cadeia os turcos que se atrevem a escrever sobre a
corrupção do governo? Que pede anos de cadeia por “insulto ao presidente” para
os que criticam a sua política? Que reprime pela força protestos e prende
peticionários? Que quer restaurar a pena de morte para condenar os autores
deste golpe? Este país que é o número 151 (entre 180) doranking da
liberdade de imprensa?
Será
que a existência de partidos e de eleições (por limitada que seja a liberdade
de acção de certos partidos e grupos sociais e por duvidoso que seja o
funcionamento das eleições) chegam para classificar um país como uma democracia
e para tornar todas as suas acções aceitáveis?
As
perguntas não têm sentido apenas para os países muçulmanos ou para os povos de
tez morena.
Vivemos
numa democracia quando toda a nossa vida pública é condicionada por tratados
europeus que não aprovámos em eleições e cujo teor e consequências não
discutimos? Vivemos sob o primado da lei quando pertencemos a uma organização
onde as regras (e as sanções) não são iguais para todos?
Vivemos
numa democracia e num estado de direito quando podemos ser envolvidos numa
guerra de consequência devastadoras através de mentiras e manipulações, como
agora se prova (pela enésima vez) no relatório Chilcot? Podemos dizer que
vivemos numa democracia quando um governo, eleito sem mandato para tal e sem
que nada o justifique a não ser a ganância de determinados interesses
particulares, nos envolve numa guerra? Podemos dizer que vivemos numa
democracia quando, mesmo depois de apurados os factos, é impossível
responsabilizar os políticos que usurparam direitos que não tinham, invocando
factos que não existiam, causando milhões de vítimas entre mortos, feridos e
refugiados?
A
democracia é a capacidade de eleger parlamentos, governos e presidentes e a
capacidade de os demitir e substituir, mas é algo ainda mais importante: a
capacidade de escolher as políticas, de escolher não aqueles a quem vamos
obedecer, mas a forma como vamos viver. Não apenas os governantes, mas a vida
pública. É por isso que elegemos partidos na base de programas eleitorais. Uma
democracia que elege ditadores não é uma democracia. As formalidades são
essenciais à democracia mas precisamos de respeitar todas as formalidades: os
direitos humanos, o primado da lei, as regras institucionais, os compromissos
assumidos, a transparência.
Quando
chamamos “democracia” a algo como o regime que vigora na Turquia, na Rússia, na
Venezuela ou em Angola - ou na UE - estamos a aviltar o conceito de democracia
e a justificar todos os ataques que os inimigos da democracia lhe queiram
lançar.
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