A
teoria do desenvolvimento desigual, a história e política do pensamento
económico e o papel do Estado no processo de desenvolvimento económico
constituem o núcleo de investigação daquele que é considerado um dos mais
conhecidos economistas heterodoxos, o norueguês Erik Reinert. Deu na
universidade de verão do ISEG um curso com base no livro que escreveu um ano
antes da crise financeira, “How rich countries got rich... and why poor
countries stay poor”. Na penúltima página, previa o que viria a acontecer em
2008. É professor na Universidade de Talin, Estónia, do Instituto de Estudos
Estratégicos da Noruega e fundou e dirige a Fundação Outro Cânone
Cristina
Peres – Expresso
Escreveu
o seu livro em 2007. Até que ponto mudou a dinâmica de enriquecimento e
empobrecimento dos países?
É como diz Humphrey Bogart no filme Casablanca, “the fundamental things apply as time goes by”. A gravidade mantém-se. Escrevo no meu livro que era muito provável que estivéssemos à beira de uma crise financeira, já se sentia no ar uma desvalorização de ativos que se acentuaria. Se olharmos para a economia de muito longo prazo vemos que estes choques afetam a forma como os economistas pensam. Quando as coisas correm bem durante muito tempo a economia torna-se cada vez mais abstrata. Dá-se o choque e a economia desce uns tantos graus de abstração.
Porque
faz uma aferição com a realidade?
Sim. Um economista de Minsk descrevia este mecanismo como “desestabilizar a estabilidade”: quando é preciso ir de casa ao aeroporto, calcula-se o tempo e corre tudo bem; depois cortam-se as margens e continua a dar até ao dia em que cai uma chuvada, o trânsito para e perde-se o avião. A estabilidade de longo prazo produz efeitos e esta é essencialmente a razão das crises financeiras. Mas é também através delas que se muda a economia.
A
agir assim, toda a gente sabe que, um dia, perderá o avião. Qual é então o peso
da previsibilidade das crises na sua prevenção?
É por isso que é tão importante conhecer a história e a economia perdeu o contacto com ela. O problema foi o movimento que surgiu a seguir à II Guerra Mundial que tornou a economia científica, o que significava usar matemática. Só que há coisas que a matemática não faz, não consegue avaliar as diferenças e mudanças qualitativas.
Quer
dar um exemplo?
As atividades económicas são qualitativamente diferentes. Não dizemos a uma filha que deve seguir a carreira de lavar pratos por ser competente a fazê-lo em casa. E é muito difícil obter esta finura quando se escolheu a matemática como modelo. Em tempos de mudança, pensei que a crise financeira alteraria a economia, mas não aconteceu.
Significa
que nos dirigimos para a crise seguinte?
Acho que será de tipo diferente. Se olharmos para a história da União Europeia antes e depois de 1989, antes e depois da queda do Muro de Berlim, há uma grande diferença. Antes havia a luta entre o mercado e o planeamento, direita e esquerda... olhamos para os anos 60, 70 e início de 80 e havia um compromisso pragmático e saudável entre os dois sistemas, havia equilíbrios e contrapesos e o capitalismo tinha o comunismo a espreitar sobre o ombro. Nunca pensei que viria a ter saudades do comunismo, um sistema horrível!
Funcionava
como regulador?
O capitalismo tinha de produzir os bens porque não tinha alternativa, os salários não podiam baixar. Quando o comunismo desapareceu os mercados tomaram a liderança e os salários começaram a cair, o que não acontecia desde os anos 30.
Não
é a isso que se chama globalização? E como lê o ‘Brexit’?
Num sentido, sim. Acho que o ‘Brexit’ vem mudar o jogo, foi uma chamada de atenção às elites para lhes dizer que nem tudo é brilhante como elas o veem. Acho que o ‘Brexit’ é uma espécie de movimento contrário.
Na
máquina da União?
Mudei de opinião em relação à UE. É interessante verificar que os três países que nunca se tornaram membros da União — Suíça, Noruega e Islândia — nunca tiveram um regime feudal. Eram países com agricultores independentes donos das suas terras.
Está
a identificar o feudalismo com o funcionamento da UE?
Subconscientemente, sim. Viu-se agora em Inglaterra a oposição entre as cidades e o campo. Na Noruega, as grandes cidades queriam a adesão à UE e o campo recusou. A Suíça esteve muito tempo rodeada por nações feudais e por isso o ponto chave da Constituição deles é a ausência de poder arbitrário. Além disso, o século XX foi o século da padronização. Henry Ford disse em 1909 que poderia ter um carro de qualquer cor desde que fosse preto. Em 1996 clonou-se a ovelha “Dolly”. Ou seja, a maior conquista científica passou a ser tornar tudo igual quando aquilo que define a natureza é precisamente a diversidade: há sete mil milhões de seres humanos diferentes. O projeto da UE parece-me muito baseado na padronização, logo é artificial.
Sempre
foi assim?
Quando em 1986 Espanha e Portugal aderiram à UE sabia-se que tinham indústria. Quando as ex-repúblicas soviéticas aderiram em maio de 2004 já tinham passado pelo desmantelamento das suas indústrias. Em 2004, o salário mais baixo na Alemanha seria €10 à hora. Nesse mercado de trabalho integrou-se um outro com dezenas de milhares de pessoas que já ficariam felizes se ganhassem €1 à hora. Era óbvio que os salários mais baixos nos países ocidentais iriam descer. Acho que o ‘Brexit’ é um sinal saudável ainda que seja provável que os salários dos trabalhadores da construção venham a descer 30% ou ainda mais.
Pensa
no ‘Brexit’ como regulador?
Aquilo que foi pressentido como harmonia está a criar desarmonia. É tempo de ver surgir um movimento contrário. E é interessante pensar que talvez nos livremos do eixo esquerda-direita, onde há demasiado tempo tentamos encaixar tudo. Nos EUA, os dois candidatos com programas mais opostos — Bernie Sanders e Donald Trump — concordam que o comércio livre já não é do interesse dos EUA, e que a segurança social é demasiado cara...
Qual
foi então a conquista da UE?
As pessoas responderiam: a paz. E é correto. Só que essa paz foi alcançada com uma integração simétrica: comércio entre países com o mesmo tipo de estrutura económica é sempre benéfico para ambos. Porém, comércio entre países fortes e outros fracos, que desse modo perdem a sua indústria, é mau para os mais pobres. O maior erro da UE foi o euro, uma moeda comum supostamente apenas para os membros mais fortes. Helmut Kohl disponibilizou-a por solidariedade aos países mais pobres.
Não
deveríamos estar mais preocupados com a crescente desigualdade?
Há dois aspetos, a distribuição de rendimentos entre países e dentro de cada país. Entre os países, a situação é que o único país que realmente lucra com o euro é a Alemanha. O país teve um surplus de exportações em 2015 de 8,5% do PIB quando a UE diz que não se deve ter mais do que 6,5% do PIB. Só há um economista alemão — o Heiner Flassbeck — que denuncia este lucro desproporcional alemão do euro à custa dos outros países. Desde a Grande Guerra que os alemães têm o complexo da inflação e reagiram exageradamente. Mais tarde ou mais cedo, a periferia vai compreender que a Alemanha é o único beneficiário do euro. Terá de haver ajustamentos. E, já agora, perguntar porque é que esta gente que é favor dos mercado se vira contra um mercado tão importante como o mercado cambial! As desvalorizações eram as válvulas de escape de todo o sistema. O euro manteve as desigualdades, mas tapou a válvula de escape. E a Grécia está à beira da explosão...
Foto:
Alberto Frias
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