Breno Altman, Nova York – Opera Mundi
Dos
54 condenados identificados por organizações de direitos civis, maior parte vem
de minorias raciais e está encarcerada há mais de 40 anos
O
diplomata Andrew Jackson Young foi figura de destaque quando Jimmy Carter
governava os Estados Unidos, entre 1977 e 1980. Nascido em Nova Orleans, negro
e democrata, iria completar 45 anos quando assumiu o posto de embaixador nas
Nações Unidas.
Era
este o cargo que desempenhava quando deu, em julho de 1978, célebre entrevista
ao jornal francês Le Matin. O assunto era a repressão contra dissidentes
na União Soviética. Não hesitou, porém, em tocar nas próprias feridas nacionais.
“Ainda
temos centenas de pessoas, em nossas cadeias, que poderia classificar como
prisioneiros políticos”, afirmou Young, a respeito de ativistas que tinham sido
encarcerados nos anos 60 e 70.
A
casa quase caiu.
Young
chegou a sofrer processo de impeachment na Câmara dos Deputados, salvando seu
mandato por 293 a 82 votos. O próprio presidente Carter referiu-se a suas
palavras como “depoimento infeliz”. O fato é que o diplomata sincero jamais
voltaria a desempenhar qualquer papel relevante na política de seu país.
Depois
de quase quatro décadas da retumbante confissão, pouca coisa mudou, apesar do
fim da Guerra Fria.
Os
Estados Unidos continuam a ocultar que mantêm presos políticos, pois não fica
bem para a imagem de uma nação que se autoafirma líder do mundo livre e
democrático. Aliás, que explica a ação de seus tanques e aviões ao redor do
planeta como exportação da liberdade.
Das
centenas de presos reconhecidos pelo ex-embaixador, algumas dezenas ainda
permanecem em calabouço. Muitos morreram ou cumpriram suas penas. Mas novos
dissidentes foram capturados ao longo do tempo.
A
reportagem de Opera Mundi, depois de entrevistar diversos líderes de
grupos humanitários e pesquisar sua documentação, pode consolidar lista mínima
de 54 condenados por razões políticas.
A
relação inclui apenas ativistas que tenham sido julgados por supostos crimes
cometidos dentro do território norte-americano. Estão fora desse cálculo, por
exemplo, os desterrados de Guantánamo.
A
maioria dos prisioneiros é formada por minorias raciais ou nacionais.
O
contingente mais expressivo vem dos antigos Panteras Negras e suas
ramificações.
Vários
destes detentos estão atrás das grades há mais de 40 anos, quando Young ainda
não havia reconhecido o drama político e humano que enxovalharia qualquer
nação.
O
presidente Barack Obama, no funeral de Nelson Mandela, em 2014, fez questão de
lembrar o martírio de Madiba, que passou mais de 28 anos trancafiado pelo
regime do apartheid, cumprindo sentença por conspiração e resistência armada.
Se
fosse tocado pela mesma compaixão em relação a compatriotas seus, encontraria
37 presos que já ultrapassaram, alguns a perder de vista, o tempo de cárcere do
líder sul-africano. Todos igualmente apenados por conspiração ou resistência
armada.
Outros
países ocidentais que viveram processos de confronto interno, como Itália e
Alemanha, foram virando a página dos anos de chumbo. Os militantes da
insurgência — como os filiados às Brigadas Vermelhas ou ao grupo Baader-Meinhof
— recuperaram progressivamente sua cidadania.
Ao
sul do rio Grande, nações latino-americanas também superaram a chaga dos presos
políticos, herdada de ditaduras que contavam com a simpatia geopolítica da Casa
Branca.
Pressão
interna
Os
Estados Unidos, porém, preferem manter abertas estas feridas. Não hesitam em
brandir cobranças sobre direitos humanos em outras praças, mas se recusam a
limpar o próprio quintal.
A
contradição entre discurso e realidade parece profunda ao ponto de provocar
deserções no centro do poder. O advogado Ramsey Clark, hoje com 88 anos, talvez
seja o principal expoente desta dissidência palaciana.
Como
procurador-geral, chefiou o Departamento de Justiça entre 1967 e 1969, durante
a gestão do democrata Lyndon Johnson, quando foram aprovadas as principais leis
antissegregacionistas. Acumulou desgostos, no entanto, com a escalada
repressiva comandada pelo FBI (a polícia federal norte-americana), então sob o
comando de John Edgar Hoover, cujos alvos principais eram organizações que
lutavam contra o racismo e a Guerra do Vietnã.
Depois
de se afastar do cargo, paulatinamente assumiu causas públicas e judiciais
contra o sistema.
“Os
presos políticos não têm reconhecimento legal, são tratados como inimigos do
Estado”, afirma, com sua voz baixa e pausada, que trai a cada sílaba o sotaque
texano. “O objetivo é que sirvam de exemplo para novas gerações, estabelecendo
o preço a pagar se recorrerem à rebelião e à insubordinação.”
Muitos
dos condenados, aliás, se consideram prisioneiros de guerra, vítimas de
ofensiva militar destinada a subjugar o povo afro-americano e preservar um
regime de supremacia branca. Essa era a razão na qual encontravam legitimidade
para ações de autodefesa e ataque armado.
Irregularidades
nos processos
“Há
muitas condenações fabricadas, com pressão às testemunhas e eliminação de
provas a favor dos réus”, declara o advogado Robert Boyle, 61 anos, desde o
final da universidade dedicado à defesa de presos políticos. “Um acordo tácito,
que amarra o sistema judicial e as polícias, determina regras especiais de
repressão contra integrantes de grupos revolucionários, muitas vezes violando o
devido processo legal.”
Até
mesmo a Anistia Internacional, que normalmente indefere casos de luta armada,
corrobora a tese de Boyle.
São
ilustrativas as situações de Ed Poindexter e Mondo we Langa (nome africano de
David Rice), líderes dos Panteras Negras em Omaha, no estado de Nebraska.
Poindexter está preso há 45 anos, cumprindo prisão perpétua pelo assassinato de
um policial. Langa, depois de passar o mesmo período detido, morreu em 11 de
março de 2016.
A
única prova condenatória foi o testemunho de um adolescente torturado e ameaçado
com a cadeira elétrica se não colocasse a culpa nos dois militantes. A
gravidade do episódio levou os dirigentes da mais conhecida entidade
humanitária do planeta a classificá-los como presos de consciência.
Abundantes,
as denúncias de ilegalidades competem com críticas às normas processuais e sua
execução.
“Os
presos políticos quase nunca recebem o benefício da liberdade condicional a que
têm direito”, ressalta Boyle, com um sorriso amargurado de quem vê a si próprio
dando murros em ponta de faca. “Além da má vontade das mesas de avaliação, é
gigantesca a pressão das associações policiais para impedir a libertação de
quem está acusado pela morte de algum colega.”
Muitas
vezes as condenações foram baseadas em dispositivo jamais acionado para crimes comuns.
Trata-se de lei estabelecida em 1861, que criou o delito de conspiração
sediciosa, para punir governos estaduais que se levantassem contra a União.
Voltou
a ser utilizada na perseguição a comunistas e anarquistas durante as duas
primeiras décadas do século passado, antes de fazer parte do cardápio
repressivo da Guerra Fria.
“Conspiração
sediciosa é instrumento de criminalização da contestação política”, explica o
advogado Bret Grote, diretor do Centro Legal Abolicionista, de Pittsburgh, na
Pensilvânia, organização que se dedica a pressionar pela mudança dos códigos
penais. “Essa regra dispensa prova material de crime e leva à cadeia quem
comete delito de intenção.”
Tal
lei responde pela condenação, a 55 anos, do líder comunitário Oscar López
Rivera, preso desde 1981. O crime mais relevante pelo qual foi julgado é o de
ter integrado as Forças Armadas de Libertação Nacional, grupo independentista
de Porto Rico, seu país de nascimento, por muitos historiadores considerado uma
espécie de colônia norte-americana, ainda que usufrua do estatuto de estado
autônomo.
Herói
no Vietnã, condecorado com a Estrela de Bronze, Rivera não pode ser
efetivamente conectado a nenhum delito comprovado, mas sua filiação a um
partido separatista foi suficiente para fazê-lo mofar atrás das grades.
Pós-11
de setembro
Poucos
dos 59 presos políticos ainda têm possibilidade de apelação, embora muitos
possam reapresentar, ano após ano, pedidos de liberdade condicional,
costumeiramente negados.
Aqueles
que foram condenados por juízes estaduais, também estariam aptos ao indulto dos
respectivos governadores. Os presos federais dependem da boa vontade do
presidente da República, que não pode interferir nas decisões dos Estados.
Mas
uma cortina de ferro esconde a saga destes homens e mulheres.
Tudo
piorou depois dos atentados de 2001 e a declaração de “guerra ao terror”, com a
adoção do Ato Patriota, enfraquecendo ainda mais as garantias legais de
suspeitos por agirem contra o Estado.
Novas
levas de presos, majoritariamente de origem muçulmana, se somaram aos antigos
combatentes aprisionados.
Os
principais veículos de imprensa, normalmente ávidos por denunciar atropelos
humanitários em outras fronteiras, raramente contam ou investigam esta tragédia
norte-americana.
O
Departamento de Justiça, insistentemente procurado pela reportagem de Opera
Mundi, prometeu dar sua versão dos fatos, mas preferiu o silêncio e informou,
através de seu porta-voz, que não havia interesse em tratar do assunto.
Nada
a declarar, registre-se, sempre foi uma das respostas preferidas de governantes
que desejam esconder a brutalidade que praticam ou acobertam.
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