Miguel
Guedes – Jornal de Notícias, opinião
Se
à festa do dia das bruxas sucede a solenidade do dia de Todos-os-Santos, já
hoje se trabalha para que a morte não seja declarada como certa amanhã. Em
poucas horas, presente, passado e futuro. A festa de Halloween não é muito mais
do que uma gigantesca "rave party" comercial à escala das travessuras
do Ocidente (com a vantagem de envolver crianças e guloseimas em horários ainda
decentes). Feriado na retoma socialista, o dia de Todos-os-Santos é ainda mais
assustador, velando com honra todos os santos conhecidos ou sem nome público,
mártires e cristãos, num roteiro de santidade fúnebre. Foi ontem e já descansa
em paz. Mas se a memória atrapalhar o decurso da história, o verdadeiro dia de
finados pode começar agora, quando se inicia a contagem decrescente para as
eleições americanas. Trump ultrapassa Clinton nas sondagens e não haverá som
mais estridente. A nova versão da "Guerra dos Mundos" de Orson Welles
lê-se em formato digital na forma de mails confidenciais adivinhados
abusivamente por James Comey, director do FBI. A nova versão dos "Triunfo
dos porcos" de George Orwell adivinha-se no "read my lips" de
Donald Trump. Quem disse que o Halloween passou?
A
ideia de ver Hillary Clinton na Casa Branca é tão excitante para mim como para
um presidente da Caixa Geral de Depósitos é estimulante ver a sua declaração de
rendimentos escrutinada pelo Tribunal Constitucional. Mas a política real não
se faz lançando "napalm" sobre tudo e todos, esperando que da terra
algo floresça. Trump é um insulto. Clinton é apenas mais do mesmo em versão
requentada e talvez por isso se arrisque a perder para o pior de sempre. Se
nada de bom florescerá no deserto que a vitória de Trump pode secar, já as
réplicas podem ser mais do que muitas. O retrocesso civilizacional, racismo e xenofobia,
imperialismo do "eu", misoginia e ignorância podem bem ser as
tatuagens temporárias para algo que se alastra por toda a pele do Mundo. O
sonho americano que os EUA espelham é demasiado vasto e influente para ser
morto e travestido por um troglodita. Mas sim, ele pode.
Tudo
à escala global se projecta em dimensões mais comezinhas. Pode haver quem
acredite que os sismos em Itália acontecem por divina punição, pode aumentar o
número de turistas que visitam cemitérios portugueses no escrutínio da arquitectura
tumular, pode a Escola Náutica Infante D. Henrique continuar a fazer praxes na
praia de Oeiras depois do que sucedeu na praia do Meco: a morte continua a ser
um destino demasiadamente próximo para a divina desculpa, eterno descanso ou
avistamento de morcegos. Quando Isabel Capeloa Gil, reitora da Universidade
Católica, anuncia a abertura de um curso privado de Medicina centrado na defesa
da vida, o que podemos esperar senão a ausência dos sinais vitais da mesma?
Tudo sobre a morte.
*Músico
e advogado / O autor escreve segundo a antiga ortografia
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