José
Pacheco Pereira* - Público, opinião
A
“Europa” actual quer a queda do governo Costa e por isso o humilha com novo
pacote de austeridade, e força a ruptura com o BE e o PCP.
Eu
já não estou muito para surpresas, mas ainda tenho alguma capacidade de ficar
surpreendido. E por isso me surpreende a ligeireza, para não dizer
irresponsabilidade, como que os partidos da actual maioria tomam o que estão a
fazer, ou melhor, o que não estão a fazer. Ou seja, meteram-se num curso muito
arriscado, perigoso, cheio de dificuldades, e comportam-se como se houvesse uma
qualquer normalidade na actual situação que ajudaram a criar, e como se
pudessem continuar a fazer política “habitualmente”.
Preciso
desde já que esse curso — um governo minoritário PS com apoio parlamentar
do BE e do PCP — me parece positivo, para puxar a alavanca para o
lado oposto daquele para que estava toda inclinada, à direita, e assim abrir
caminho a um recentramento da vida política portuguesa. Hoje, a única
possibilidade de um regresso ao centro, — centro-esquerda,
centro-direita—, é haver sucesso num governo de centro-esquerda que acabe
com o estado de excepção que era o “ajustamento” eterno, com uma efectiva
limitação à democracia e a perda quase total da soberania.
Se
Costa não tivesse rompido com o “arco de governação”, a governação PSD-CDS
continuaria exactamente a mesma política, porque ela é pensada como sendo para
20 ou 30 anos, como se isso fosse possível em democracia e, como não teria
resultados, teria que ser eterna. Para ser “eterna” teria que ser cada vez mais
autoritária, como já estava a ser.
O
outro factor positivo foi a eleição de Marcelo Rebelo de Sousa num quadro de
“esquerda da direita”, ou seja, ao centro, que, se o Presidente eleito
permanecer fiel à sua campanha, pode ajudar também a virar essa alavanca que
Passos, Portas e, no fim do mandato, Cavaco, com o apoio político da Europa do
PPE, puxaram praticamente até ao chão. Não sei se isto resulta— governo de
centro-esquerda mais Presidente moderado —, mas, aqui sim, não vejo
outra alternativa hoje. Pode haver amanhã, mas hoje não há, ou há sucesso ou há
desastre. Por isso não me é indiferente esta experiência governativa, não sendo
este o “meu” governo, por muito que assobiem as intrigas das claques.
Dito
isto, no actual contexto europeu, o que se está a passar em Portugal, sendo na
verdade apenas uma tímida mudança, é tratado quase como uma revolução e,
como tal, mobiliza as gigantescas forças que estão preparadas para matar no ovo
qualquer desvio menor que seja ao cânone alemão. O governo de Costa tem todas
as probabilidades de ser derrubado pela Europa do PPE e dos socialistas colados
aos alemães, seja directamente por um qualquer “chumbo” europeu, seja
indirectamente pela obrigação de aplicar políticas que lhe retirem o apoio
parlamentar do BE e do PCP.
O
Orçamento de 2016 foi apenas uma amostra e o governo saiu já bastante magoado
dessa amostra, que lhe abastardou a política que pretendia seguir, criou
desconfianças e distâncias com os seus aliados e colocou-o junto da opinião
pública como um governo fragilizado, errático nas finanças e na economia, mesmo
incompetente. O comportamento de diktat europeu para as décimas do
défice, a sucessão de declarações hostis sobre os “riscos” da política
portuguesa de incumprimentos vários às “regras” do Tratado Orçamental,
contrasta com a complacência face a idênticos incumprimentos do governo
anterior, que, como era “amigo”, tinha margem de manobra e podia no fim esnobar
dos relatórios do FMI, que hoje brande contra o PS.
Aliás,
a dureza e hostilidade que existem contra o governo de Costa, contrastam com a
vontade dos principais dirigentes europeus darem a Cameron medidas que
significam recuos importantes (e que também estão nos Tratados) em matéria de
liberdade de movimentos e direitos sociais dos emigrantes, para que este volte
com um frágil papel para convencer os eleitores ingleses que afinal, com uma longa
lista de opting out, ainda podem continuar na Europa. Ou seja, em matéria
de direitos sociais, a mesma Europa que não cede a Portugal uma décima no
défice sem vilipendiar um governo eleito, está disposta a abdicar perante a
pressão inglesa. Na economia do “ajustamento”, não há um milímetro de cedência
às “regras”, nos direitos sociais, tudo é negociável. Por tudo isto, a
“Europa” actual, Schäuble, Dijsselbloem, Moscovici, Dombrovskis, mais as suas
cortes de funcionários zelosos, a última coisa que desejam é que possa haver
qualquer mitigado sucesso de um governo que está a cometer esse crime de
lesa-economia que é “reverter” salários e pensões, taxar fundos e bancos e não
ao contrário.
O
braço armado desta política é, hoje, em Portugal o PSD de Passos, que está
convencido de que o seu regresso ao poder é a curto prazo. Passos continua a
comportar-se como se fosse um Primeiro-ministro usurpado, de bandeirinha
governamental na lapela, a fazer falsas inaugurações, e anda na Europa, o seu
grande aliado, a instigar a fronda contra a política do governo e a falar para
a as agências de rating e os mercados mostrando-lhes qual o sentido político
que pode ter em Portugal uma subida de juros ou um abaixamento de rating:
destruir o governo “deles”. Sempre que falam em “preocupações”, mesmo com
análises falsas como as das subidas de juros há uma semana, percebe-se muito
bem que mais do que preocupações são desejos.
PS,
PCP e BE incitaram a sua experiência fora do “arco da governação”, derrubando
um governo assente no partido que ganhou as eleições, e apoiando um partido que
as perdeu. O primeiro não tinha maioria parlamentar, o segundo tinha, por isso
o novo governo tem toda a legitimidade, mas parte sempre fragilizado e só pode
superar essa fragilidade pela qualidade e integridade da governação. Ora esse
acrescento de legitimidade está a fazer-se no meio de uma ecologia
venenosa, num terreno armadilhado e com forças poderosas muito para além de uma
apatia desconfiada, numa actuação agressiva.
Tem
a hostilidade aberta dos meios de comunicação social, salvo raras excepções,
que se comprometeram com as principais ideias do “ajustamento”, quer com
proselitismo, como aconteceu com muita imprensa económica, quer interiorizando
o modo como se colocam os problemas com a “gramática” dos “ajustadores”. O “não
há alternativa” entrou profundamente no espaço mediático e no espaço público e,
por isso, qualquer inversão, “reversão” como agora se diz, é vista como uma
blasfémia incompetente, uma cornucópia de custos por pagar, um risco de
bancarrota ao virar da esquina. A “economia”, como eles a pensam, tornou-se
única e inquestionável e por isso o mundo ou é de Sócrates e da bancarrota ou é
de Passos e da troika, não há meio termo.
Este
comportamento reflecte também o dos principais interesses económicos presentes
na governação do PSD-CDS, e que com eles formaram uma forte aliança, assente no
primeiro governo em Portugal que se pretendia comportar como uma empresa,
pensava como se o país fosse uma empresa, despedia para flexibilizar, diminuía
salários e pensões, e acima de tudo queria quebrar a espinha a essas
sobrevivências arcaicas do 25 de Abril como eram sindicatos e greves. Esses
interesses económicos, que são de uma parte da economia, e não necessariamente da
mais eficaz, sentem-se também usurpados do instrumento da governação, e por
isso farão a vida negra ao PS, até o derrubarem ou o comprarem em todo ou à
peça.
Face
a esta ecologia, o PS comporta-se como se pudesse continuar a governar como
sempre fez, dá umas coisas a uns e espera sentado pela sua fidelidade; tira
umas coisas a outros e depois assusta-se, recua e avança como pode. Ainda não
interiorizou o preço que tem a pagar se esta experiência falhar e não tem
sentido de urgência face aos riscos, principalmente europeus que estão aí à
porta. A “Europa” actual quer a queda do governo Costa e por isso o humilha com
novo pacote de austeridade, e força a ruptura com o BE e o PCP. Sim, porque o
PS num dilema, vai escolher a “Europa” e deixar o país ao PSD e CDS.
Por
sua vez, BE e PCP parecem também não ter percebido que vai haver um antes e um
depois dos acordos que fizeram, e que nada voltará a ser como dantes, conforme
eles falharem ou tiverem sucesso. Se falharem voltarão a ter uma função
meramente tribunícia, agravada pelo desespero dos seus eleitores quando, por
uma governação à direita que será agressiva e vingativa, perceberem o país sem
esperança em que estão. Partirão por dentro pela radicalização e perderão ainda
mais relevo social para fora das suas fronteiras militantes.
PS,
BE e PCP ou reforçam de qualquer modo a coordenação política, que lhes permita
ganhar algum ânimo colectivo e defrontar em conjunto e de forma capaz toda a
tempestade que cai e vai cair sobre o governo, ou vão ter um lindo enterro.
Lindo porque deve estar sol, mas só por isso.
*Historiador