Isabel
Moreira – Expresso, opinião
Liliana
Melo é uma mulher a quem a justiça portuguesa retirou, em 2012, sete filhos
para adoção. Sete dos seus 10 filhos. Sete. A mãe não os vê há três anos, sete
filhos distribuídos - e assim separados - por instituições diferentes.
Sabemos
agora que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) condenou Portugal a
pagar 15 mil euros a Liliana Melo por danos morais.
Sabemos
agora, lendo o Acórdão
do TEDH, que o sistema jurídico-administrativo português que serve de base
à possibilidade extrema, de último caso, absolutamente excecional, de retirada
de filhos a mães ou a pais, mais do que falhar, foi particularmente indigente.
Ao
ler o Acórdão, sabemos que Liliana é cabo-verdiana. Sabemos disso para efeitos
de descrição dos seus dados pessoais. Mas também sabemos disso como elemento
que conta para o caso, que demonstra – se não formos hipócritas – um pedaço do
“apartheid escondido” no Portugal de “brandos costumes”, como tão bem apontou
nestes dias o antropólogo Miguel Vale de Almeida.
Lendo
o Acórdão, ficamos a saber que os direitos humanos violados no caso – como o
direito à intimidade – estão todos, claro, consagrados na Constituição
portuguesa (CRP).
Da
recolha dos passos dados neste procedimento de retirada dos filhos e
de separação dos mesmos é urgente denunciar afilosofia torpe dos técnicos
e do sistema.
Liliana
Melo é basicamente vista como uma ignorante selvagem que se atreveu a ter 10
filhos sendo pobre, donde o polémico acordo de promoção e proteção dos menores
que tinha sido estabelecido pelos serviços sociais com a família Melo, em 2009,
no qual se previa a laqueação de trompas da mãe como condição de conservação
dos direitos parentais. Esta violação grosseira do direito à integridade
física, à autonomia e à liberdade de Liliana Melo, este horror em pleno século
XXI, deveu-se ao que escrevi: olharam para uma ignorante selvagem incapaz de
tratar de cumprir o “dever” de parar de procriar.
A
nossa consciência crítica, sem hipocrisias, sabe que o olharque referi não
foi apenas sobre uma mulher pobre. Não: foi sobre uma preta pobre, portanto
irrecuperável. A nossa consciência crítica, sem hipocrisias, sabe que estamos
perante mais um apartheid posto a descoberto.
Há
outra reflexão a fazer: neste caso, como noutros que já tive a oportunidade de
acompanhar, há uma inversão perversa da hierarquia básica de condições
excecionais em que pode ser determinada a retirada de filhos para a adoção. E
isto é uma questão de valores.
Exigem-se
condições materiais como condição da conservação dos poderes parentais que
seriam patéticas se não fossem graves e negadoras das funções de um Estado
social. Dou por mim a perguntar se qualquer dia é requisito cada filho ter um
quarto só para si, em prol da sua privacidade, o que no caso da Liliana
implicaria dez quartos.
No
caso de Liliana Melo, como noutros, não estavam em causa os laços afetivos
permanentes existentes com as crianças. Ora, a partir do momento em que estes
laços estão garantidos, tudo o resto é secundário e nunca deve ser fundamento
de retirada dos filhos, exceto circunstâncias gravíssimas. Aqui, não havia maus
tratos, violência, perigo para as crianças em termos de nexo causal com a
vivência em família.
Havia
pobreza. Havia desemprego. Havia falta de condições sociais.
E
havia uma mulher preta.
Um
Estado social de bem não arranca filhos a uma família por razões que têm
solução precisamente através do cumprimento das obrigações do Estado.
Não
se castiga a pobreza. Não se pune a privação material. Antes criam-se as
condições para que nenhum laço afetivo permanente entre quem tem o poder
parental e a criança ou crianças envolvidas nunca seja quebrado.
Olhando
para a nossa história pessoal de pobreza- se a tivermos – ou para a história de
pobreza dos nossos pais ou avós, certamente muitos de nós nos perguntamos se
hoje o nosso pai ou a nossa mãe não teria sido arrancado aos nossos avós à
conta da pobreza. Sabemos da vida deles, uma luta diária contra a fome e o
castigo dos dias, mas sabemos do que nunca faltou: o amor pelos filhos, todos
os dias, a tal permanência que é o que conta, o que se valoriza e não o que se
castiga.
No
ano passado, acompanhei um caso (por razões de sigilo não posso revelar nomes e
pormenores) de retirada de um filho a uma mãe com problemas de
toxicodependência (era o fundamento bastante). A dias da retirada foi possível
- quase em corrida desesperada - uma reunião com os tais dos técnicos – já
pedida há muito tempo e sem resposta alguma – para dar conta da existência de uma
avó, que conheci nesse momento do processo por um acaso do destino, com laços
permanentes de afeto com o neto, com uma “casinha”, dizia, e um “quartinho”,
dizia, “modesta, mas sem fome”, dizia, “onde ele será, como sempre foi, amado”,
dizia, e, a um dia da decisão final que ia no sentido da institucionalização da
criança, a avó ficou com o poder parental do neto e ocorreu ao Estado - por
alerta –que talvez fosse dever do mesmo prestar cuidados à mãe da criança, no
sentido da sua recuperação, que veio a acontecer.
Esqueci-me
de dizer que esta avó que durante meses ninguém ouviu até aparecer por um acaso
uma advogada no seu caminho é preta.
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