Bárbara
Libório, Madri – Opera Mundi
Impasse
político beneficia monarquia espanhola, herança do franquismo; 'É inadmissível
uma democracia onde o cargo de chefe de Estado seja hereditário', diz ativista
Quando
Juan Carlos I abdicou o título de rei da Espanha, em junho de 2014, ressaltou
em seu discurso os esforços feitos para que os cidadãos espanhóis “viessem a
ser os protagonistas de seu próprio destino”, e recordou que, durante seu
reinado, a Espanha se tornou uma “democracia moderna, plenamente integrada na
Europa”.
No
entanto, apenas um mês antes, uma pesquisa do Centro de Investigaciones
Sociológicas (CIS) mostrava que esses feitos não bastavam para manter a
popularidade de Casa Real em tempos de crise financeira e escândalos de
corrupção: em uma escala de confiança de zero a 10, os espanhóis davam nota
3,72 à monarquia.
Em
2011, o 15-M, movimento dos Indignados que tomou as ruas do centro de Madrid
pedindo uma democracia mais participativa, já antecipava que parte da população
não estava contente com a democracia espanhola, posicionando-se contra o
sistema monárquico. Não foi uma surpresa que, logo após o anúncio de abdicação,
as ruas fossem novamente palco de manifestações a favor da república.
Duas
semanas depois, Felipe VI, príncipe das Astúrias, era coroado o novo rei. E
mesmo que em apenas um ano a popularidade da Casa Real tenha aumentado
significativamente, com 57,4% de aprovação em maio de 2015, os movimentos
antimonárquicos continuam pedindo uma democracia mais participativa no país.
“É
inadmissível uma democracia onde o cargo de chefe de Estado seja hereditário.
Além disso, a monarquia falha com os direitos humanos, já que todas as pessoas
são iguais sem que seu nascimento, sexo, raça e etc lhe deem vantagens
institucionais sobre as demais. No caso da abdicação ao trono pelo antigo rei
Juan Carlos I, os cidadãos deveriam ter sido perguntados sobre o que desejavam,
com um referendo”, diz Diego S., membro do movimento DemocraciaRealYa, coletivo
que faz parte do 15M.
Uma
herança do franquismo
Juan
Carlos I tinha apenas dez anos quando deixou sua família, exilada na Itália
após a proclamação da Segunda República espanhola, e mudou-se para a Espanha,
então governada pelo ditador Francisco Franco, para receber uma educação
franquista.
Foi
o ditador que, em 1969, o nomeou como seu sucessor. Nesse mesmo ano, Juan
Carlos I jurou fidelidade ao franquismo, aos princípios do Movimento Nacional
(partido criado por Franco) e às leis impostas pelo general durante seu tempo
no poder.
“A
monarquia, além de carecer de legitimidade democrática, é uma herança do
franquismo. E isso não é segredo, há fotos do rei jurando fidelidade ao regime
de Franco nos livros de história. Na transição da ditadura para a monarquia não
houve uma reforma das instituições. Elas apenas mudaram de uniforme”, afirma
Renê Otaduy, porta-voz do Coordinadora25s, outro movimento popular que levanta
a bandeira do fim da monarquia espanhola e realiza manifestações como a que
rodeou o Congresso Nacional em 2013.
Já
para Juan José Laborda, diretor da Cátedra sobre Monarquia Parlamentaria na
Universidad Rey Juan Carlos e ex-presidente do Senado da Espanha, as mudanças
foram significativas. “Quando Juan Carlos I é coroado, ele tem os mesmos
poderes que Franco: executivo, legislativo e judiciário. Pouco tempo depois, em
1978, ele assina uma Constituição que o deixa apenas com autoridade. Hoje, a
Espanha se converteu em um país laico, com multiplicidade de partidos
políticos, aberto para questões como divórcio, aborto e matrimônio homossexual.
O oposto da ditadura franquista”, acredita.
“O
que aconteceu na Espanha é um caso raro. A monarquia não representa a fundação
de um novo sistema político, mas a restauração, já que a monarquia existia e
foi derrubada em 1931. Grande parte das revoluções em diversos países foram
feitas contra a monarquia, mas aqui a revolução impulsionou a coroa. Houve um
rei que colaborou no estabelecimento de instituições mais democráticas e,
quando isso se esgotou, abdicou a seu filho”, afirma Javier Gomá, filósofo
espanhol e diretor da Fundación Juan March.
Juan
Carlos x Felipe
Se
por um lado Felipe VI não possui o carisma do pai, o distanciamento de sua
imagem da ditadura franquista pode colaborar para sua maior popularidade. Para
os movimentos antimonárquicos, no entanto, sua presença na Casa Real continua
sendo uma afronta à democracia.
“Passou-se
de uma figura que tinha muitos segredos escondidos a outra que parece limpa de
responsabilidades políticas anteriores. Mas isso seria reconhecer que Felipe
foi um ignorante em relação ao que acontecia na Casa Real durante essas
décadas. Se foi assim, seu valor como chefe de Estado é duplamente
questionável. Se você não se intera do que acontece em sua casa, dificilmente
poderá se interar do que acontece em seu país”, diz Diego S., da
Democracia Real Ya.
Para
Otaduy, da Coordinadora25s, a mudança no poder foi uma tentativa de
reestabelecer a imagem da monarquia, mas lembra que a corrupção no sistema é um
problema estrutural. “A monarquia é uma instituição medieval que está salpicada
por casos de corrupção”, afirma.
“A
sucessão é um respiro, mas a monarquia tem deficiências estruturais. Juan
Carlos I abdicou não porque queria, mas porque estava esgotado. Mas o que vai
passar se Felipe falhar? Esse é o último cartucho da monarquia”, questiona
Miguel Pastrana, presidente da Unidad Cívica por La República.
Para
Gomá, Felipe tem como desafios a criação de rotinas opostas as do pai. “Juan
Carlos I teve uma intervenção muito carismática, era muito popular. Muitas
pessoas se diziam ‘carlistas’ mas ‘não monárquicas’. Felipe tem que, pelo
contrário, suavizar os traços pessoais e criar rotinas democráticas menos
espetaculares. Evitar informações sobre a vida privada, negócios particulares e
vida sentimental e cumprir com suas funções institucionais de forma mais
madura.”
O
filósofo também ressalta que o debate que acontece na Espanha não é apenas
sobre ser republicano ou não, e sim, partidário ou não da Constituição que o
país tem hoje. “Com a Constituição que temos, sem reformar os artigos que falam
sobre a monarquia, é impossível instaurar uma república. Por questões práticas,
estar a favor da ordem política da Constituição é estar a favor da monarquia”,
explica.
Sobre
isso, Pastrana diz que a Constituição não pode ser uma “camisa de força”. “Faz
falta um processo constituinte, mas não podemos nos adiantar. Precisa haver uma
república mesmo que seja à margem de uma constituição monárquica. Constituições
se mudam, não são sagradas.”
Blindagem
Outro
ponto bastante discutido entre os movimentos antimonárquicos é a blindagem que
a Casa Real recebeu durante décadas da imprensa espanhola. O caso Nóos,
denunciado pelos grandes jornais espanhóis e que implica os negócios
particulares da infanta Cristina, filha de Juan Carlos I, e seu marido, Iñaki
Urdangarín, parece ter sido o ponto de rompimento de um “pacto de não agressão”
à família real espanhola.
“A
Espanha, durante o reinado de Juan Carlos I, significou a submissão de
instituições democráticas e poderes midiáticos. Construiu-se a figura do rei
como uma ponte salvadora entre Franco e a velha guarda e a democracia, e toda
crítica passou a ser um tabu”, diz Diego S.
Além
disso, se nas ruas há movimentos populares que pedem o fim da monarquia, na
política a representação da causa é pequena.
Os
dois maiores e mais tradicionais partidos espanhóis, PP e PSOE, que ganharam
mais da metade das cadeiras do Congresso Nacional nas eleições de 20 de
dezembro de 2015, apoiam a monarquia espanhola.
Já
o Podemos, que nasceu do movimento dos Indignados no 15M, não se posiciona
claramente sobre o assunto. Em 2014, logo após a abdicação de Juan Carlos I,
Pablo Iglesias, líder do partido, afirmou que a monarquia estava vinculada “ao
passado e à corrupção” e pediu um referendo. No entanto, em 2015, o partido posicionou-se
afirmando que essa não era uma questão que interessava à cidadania naquele
momento.
“É
como ter um carro com uma carroceria incrível e um motor ruim. As ideias e
intenções são boas, mas não funcionam no sistema que temos. Há republicanos em
partidos como PSOE, Podemos, etc, mas existe uma autorrepressão. Os políticos
não se atrevem a falar de república”, diz Pastrana.
A
Unidad Popular, coalizão de esquerda em que está integrado o partido Izquierda
Unida, que pede o fim da monarquia, conseguiu apenas duas cadeiras no Congresso
nas últimas eleições. Assim como o Eh Bildu, outro partido que levanta a
bandeira de uma democracia mais participativa.
Um
país sem governo
Dois
meses após as eleições gerais, a Espanha continua sem governo. Mariano Rajoy, candidato
do PP, partido que teve o maior número de votos da população espanhola,
renunciou à investidura porque não contava com apoio suficiente para formar um
governo. O rei Felipe VI ofereceu então a possibilidade a Pedro Sánchez, do
PSOE. Ele tem até o dia 1º de março para tentar acordos e alianças com o
restante dos partidos políticos.
Com
essa situação de instabilidade, muito se questionou sobre o poder de Felipe VI
para resolver a situação. Laborda lembra, no entanto, que o monarca é uma
figura neutra e deve permanecer assim. “Ele está cumprindo a Constituição. O
rei não vota, está acima dos partidos políticos. E, nesse momento, é importante
que alguma instância do poder tenha certa neutralidade”.
Para
Pastrana, a situação é interessante para o rei. “Exemplifica a imagem que a
monarquia quer passar: que o rei está acima da política e é importante para
resolver impasses como esse.”
Otaduy
ressalta que a figura do rei não é apenas simbólica como pode parecer para quem
não vive o regime monárquico. “Ele é chefe do Estado e comanda o Exército, que
é quem tem soberania sobre as fronteiras territoriais.”
“O
poder do rei não é simbólico, mas potencial. Ele pode não exercê-lo, mas o
simples fato de tê-lo muda o cenário e as atitudes de quem está a sua volta.
Ele é uma parte que se manifesta quando as outras não se entendem. Age como um
árbitro, mas os árbitros sempre têm poderes. Além disso, diante de determinadas
circunstâncias, ele pode chegar a ter todos os poderes do país em suas mãos. E
há mais uma questão: os presidentes de governos passam, mas o rei fica. Com
quem as pessoas querem negociar?”, diz Pastrana.
Para
ele, o caminho para uma república espanhola é o ativismo. “Precisamos criar uma
maioria social republicana que antes ou depois tenha um reflexo político.”