domingo, 28 de fevereiro de 2016

Movimentos antimonarquia lutam por república e democracia mais participativa na Espanha



Bárbara Libório, Madri – Opera Mundi

Impasse político beneficia monarquia espanhola, herança do franquismo; 'É inadmissível uma democracia onde o cargo de chefe de Estado seja hereditário', diz ativista

Quando Juan Carlos I abdicou o título de rei da Espanha, em junho de 2014, ressaltou em seu discurso os esforços feitos para que os cidadãos espanhóis “viessem a ser os protagonistas de seu próprio destino”, e recordou que, durante seu reinado, a Espanha se tornou uma “democracia moderna, plenamente integrada na Europa”.

No entanto, apenas um mês antes, uma pesquisa do Centro de Investigaciones Sociológicas (CIS) mostrava que esses feitos não bastavam para manter a popularidade de Casa Real em tempos de crise financeira e escândalos de corrupção: em uma escala de confiança de zero a 10, os espanhóis davam nota 3,72 à monarquia.

Em 2011, o 15-M, movimento dos Indignados que tomou as ruas do centro de Madrid pedindo uma democracia mais participativa, já antecipava que parte da população não estava contente com a democracia espanhola, posicionando-se contra o sistema monárquico. Não foi uma surpresa que, logo após o anúncio de abdicação, as ruas fossem novamente palco de manifestações a favor da república.

Duas semanas depois, Felipe VI, príncipe das Astúrias, era coroado o novo rei. E mesmo que em apenas um ano a popularidade da Casa Real tenha aumentado significativamente, com 57,4% de aprovação em maio de 2015, os movimentos antimonárquicos continuam pedindo uma democracia mais participativa no país.

“É inadmissível uma democracia onde o cargo de chefe de Estado seja hereditário. Além disso, a monarquia falha com os direitos humanos, já que todas as pessoas são iguais sem que seu nascimento, sexo, raça e etc lhe deem vantagens institucionais sobre as demais. No caso da abdicação ao trono pelo antigo rei Juan Carlos I, os cidadãos deveriam ter sido perguntados sobre o que desejavam, com um referendo”, diz Diego S., membro do movimento DemocraciaRealYa, coletivo que faz parte do 15M.

Uma herança do franquismo

Juan Carlos I tinha apenas dez anos quando deixou sua família, exilada na Itália após a proclamação da Segunda República espanhola, e mudou-se para a Espanha, então governada pelo ditador Francisco Franco, para receber uma educação franquista.

Foi o ditador que, em 1969, o nomeou como seu sucessor. Nesse mesmo ano, Juan Carlos I jurou fidelidade ao franquismo, aos princípios do Movimento Nacional (partido criado por Franco) e às leis impostas pelo general durante seu tempo no poder.

“A monarquia, além de carecer de legitimidade democrática, é uma herança do franquismo. E isso não é segredo, há fotos do rei jurando fidelidade ao regime de Franco nos livros de história. Na transição da ditadura para a monarquia não houve uma reforma das instituições. Elas apenas mudaram de uniforme”, afirma Renê Otaduy, porta-voz do Coordinadora25s, outro movimento popular que levanta a bandeira do fim da monarquia espanhola e realiza manifestações como a que rodeou o Congresso Nacional em 2013.

Já para Juan José Laborda, diretor da Cátedra sobre Monarquia Parlamentaria na Universidad Rey Juan Carlos e ex-presidente do Senado da Espanha, as mudanças foram significativas. “Quando Juan Carlos I é coroado, ele tem os mesmos poderes que Franco: executivo, legislativo e judiciário. Pouco tempo depois, em 1978, ele assina uma Constituição que o deixa apenas com autoridade. Hoje, a Espanha se converteu em um país laico, com multiplicidade de partidos políticos, aberto para questões como divórcio, aborto e matrimônio homossexual. O oposto da ditadura franquista”, acredita.

“O que aconteceu na Espanha é um caso raro. A monarquia não representa a fundação de um novo sistema político, mas a restauração, já que a monarquia existia e foi derrubada em 1931. Grande parte das revoluções em diversos países foram feitas contra a monarquia, mas aqui a revolução impulsionou a coroa. Houve um rei que colaborou no estabelecimento de instituições mais democráticas e, quando isso se esgotou, abdicou a seu filho”, afirma Javier Gomá, filósofo espanhol e diretor da Fundación Juan March.

Juan Carlos x Felipe

Se por um lado Felipe VI não possui o carisma do pai, o distanciamento de sua imagem da ditadura franquista pode colaborar para sua maior popularidade. Para os movimentos antimonárquicos, no entanto, sua presença na Casa Real continua sendo uma afronta à democracia.

“Passou-se de uma figura que tinha muitos segredos escondidos a outra que parece limpa de responsabilidades políticas anteriores. Mas isso seria reconhecer que Felipe foi um ignorante em relação ao que acontecia na Casa Real durante essas décadas. Se foi assim, seu valor como chefe de Estado é duplamente questionável. Se você não se intera do que acontece em sua casa, dificilmente poderá se interar do que acontece em seu país”, diz Diego S., da Democracia Real Ya.

Para Otaduy, da Coordinadora25s, a mudança no poder foi uma tentativa de reestabelecer a imagem da monarquia, mas lembra que a corrupção no sistema é um problema estrutural. “A monarquia é uma instituição medieval que está salpicada por casos de corrupção”, afirma.

“A sucessão é um respiro, mas a monarquia tem deficiências estruturais. Juan Carlos I abdicou não porque queria, mas porque estava esgotado. Mas o que vai passar se Felipe falhar? Esse é o último cartucho da monarquia”, questiona Miguel Pastrana, presidente da Unidad Cívica por La República.

Para Gomá, Felipe tem como desafios a criação de rotinas opostas as do pai. “Juan Carlos I teve uma intervenção muito carismática, era muito popular. Muitas pessoas se diziam ‘carlistas’ mas ‘não monárquicas’. Felipe tem que, pelo contrário, suavizar os traços pessoais e criar rotinas democráticas menos espetaculares. Evitar informações sobre a vida privada, negócios particulares e vida sentimental e cumprir com suas funções institucionais de forma mais madura.”

O filósofo também ressalta que o debate que acontece na Espanha não é apenas sobre ser republicano ou não, e sim, partidário ou não da Constituição que o país tem hoje. “Com a Constituição que temos, sem reformar os artigos que falam sobre a monarquia, é impossível instaurar uma república. Por questões práticas, estar a favor da ordem política da Constituição é estar a favor da monarquia”, explica.

Sobre isso, Pastrana diz que a Constituição não pode ser uma “camisa de força”. “Faz falta um processo constituinte, mas não podemos nos adiantar. Precisa haver uma república mesmo que seja à margem de uma constituição monárquica. Constituições se mudam, não são sagradas.”

Blindagem

Outro ponto bastante discutido entre os movimentos antimonárquicos é a blindagem que a Casa Real recebeu durante décadas da imprensa espanhola. O caso Nóos, denunciado pelos grandes jornais espanhóis e que implica os negócios particulares da infanta Cristina, filha de Juan Carlos I, e seu marido, Iñaki Urdangarín, parece ter sido o ponto de rompimento de um “pacto de não agressão” à família real espanhola.

“A Espanha, durante o reinado de Juan Carlos I, significou a submissão de instituições democráticas e poderes midiáticos. Construiu-se a figura do rei como uma ponte salvadora entre Franco e a velha guarda e a democracia, e toda crítica passou a ser um tabu”, diz Diego S.

Além disso, se nas ruas há movimentos populares que pedem o fim da monarquia, na política a representação da causa é pequena.

Os dois maiores e mais tradicionais partidos espanhóis, PP e PSOE, que ganharam mais da metade das cadeiras do Congresso Nacional nas eleições de 20 de dezembro de 2015, apoiam a monarquia espanhola.

Já o Podemos, que nasceu do movimento dos Indignados no 15M, não se posiciona claramente sobre o assunto. Em 2014, logo após a abdicação de Juan Carlos I, Pablo Iglesias, líder do partido, afirmou que a monarquia estava vinculada “ao passado e à corrupção” e pediu um referendo. No entanto, em 2015, o partido posicionou-se afirmando que essa não era uma questão que interessava à cidadania naquele momento.

“É como ter um carro com uma carroceria incrível e um motor ruim. As ideias e intenções são boas, mas não funcionam no sistema que temos. Há republicanos em partidos como PSOE, Podemos, etc, mas existe uma autorrepressão. Os políticos não se atrevem a falar de república”, diz Pastrana.

A Unidad Popular, coalizão de esquerda em que está integrado o partido Izquierda Unida, que pede o fim da monarquia, conseguiu apenas duas cadeiras no Congresso nas últimas eleições. Assim como o Eh Bildu, outro partido que levanta a bandeira de uma democracia mais participativa.

Um país sem governo

Dois meses após as eleições gerais, a Espanha continua sem governo. Mariano Rajoy, candidato do PP, partido que teve o maior número de votos da população espanhola, renunciou à investidura porque não contava com apoio suficiente para formar um governo. O rei Felipe VI ofereceu então a possibilidade a Pedro Sánchez, do PSOE. Ele tem até o dia 1º de março para tentar acordos e alianças com o restante dos partidos políticos.

Com essa situação de instabilidade, muito se questionou sobre o poder de Felipe VI para resolver a situação. Laborda lembra, no entanto, que o monarca é uma figura neutra e deve permanecer assim. “Ele está cumprindo a Constituição. O rei não vota, está acima dos partidos políticos. E, nesse momento, é importante que alguma instância do poder tenha certa neutralidade”.

Para Pastrana, a situação é interessante para o rei. “Exemplifica a imagem que a monarquia quer passar: que o rei está acima da política e é importante para resolver impasses como esse.”

Otaduy ressalta que a figura do rei não é apenas simbólica como pode parecer para quem não vive o regime monárquico. “Ele é chefe do Estado e comanda o Exército, que é quem tem soberania sobre as fronteiras territoriais.”

“O poder do rei não é simbólico, mas potencial. Ele pode não exercê-lo, mas o simples fato de tê-lo muda o cenário e as atitudes de quem está a sua volta. Ele é uma parte que se manifesta quando as outras não se entendem. Age como um árbitro, mas os árbitros sempre têm poderes. Além disso, diante de determinadas circunstâncias, ele pode chegar a ter todos os poderes do país em suas mãos. E há mais uma questão: os presidentes de governos passam, mas o rei fica. Com quem as pessoas querem negociar?”, diz Pastrana.

Para ele, o caminho para uma república espanhola é o ativismo. “Precisamos criar uma maioria social republicana que antes ou depois tenha um reflexo político.”

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