A
história se repete: como no Iraque, em 2003, agências de espionagem dos EUA
acusam sem prova alguma – e jornais publicam sem nada investigar
Matt
Taibbi, na Rolling Stone – Outras Palavras - Tradução: Inês Castilho
Num
passo extraordinário, o governo Obama anunciou na quinta-feira, 29 de
dezembro,uma série de sanções contra a Rússia. Trinta e cinco cidadãos russos
foram expulsos do país. O presidente emitiu uma declaração concisa em que
parece culpar a Rússia por invadir os emails do Comitê Nacional do Partido
Democrata.
“Essa
ação de roubar e divulgar dados só poderia ter sido obra dos mais altos níveis
do governo russo”, escreveu ele. Primeiro a Rússia prometeu retaliar severamente,
e então voltou atrás. Hoje a imprensa russa está informando que Vladimir Putin
está até convidando “os filhos dos diplomatas americanos” para visitar a árvore
de Natal do Kremlin”, não importa quão repulsiva, ameaçadora ou sarcástica cada
um considere a reposta de Putin.
Essa
história dramática coloca a mídia diante de uma grande aposta. Como não se faz
investigação independente, para contar essa história os repórteres terão de
basear-se inteiramente na avaliação das agências de inteligência. Vários
repórteres que conheço estão enlouquecidos — embora calados — por ter de passar
por isso novamente. Ninguém esqueceu o fiasco das supostas armas de destruição
em massa (WMD, na sigla em inglês).
“Isso
é déjà vu, vamos ver tudo de novo” – considera um amigo.
Pode-se
perceber o constrangimento refletido nas manchetes que passaram pela Internet
logo após o anúncio das sanções de Obama. Algumas agências de notícias pareciam
divididas entre declarar inequivocamente que houve hackeamento da Rússia e
cobrir as apostas colocando essas declarações na boca do governo, com a fórmula
“diz Obama”.
O New
York Times foi o mais agressivo, escrevendo direto: “Obama Contra-Ataca a
Rússia por Hackear a Eleição”. O jornal sustentou sua história com o link de um
relatório conjunto FBI/Segurança Interna que detalha como civis russos e
serviços militares de inteligência (grafados como “RIS”, Russian
Intelligence Services no relatório) violaram por duas vezes as defesas de
“um partido político dos EUA”, presumivelmente o Democrata.
Esse
relatório é extenso em jargões, mas curto em detalhes. Mais da metade dele é
apenas uma lista com sugestões de medidas preventivas. A certa altura, vemos
que o nome em código que a comunidade de inteligência norte-americana deu às
supostas cibertravessuras russas é urso da estepe, um detalhe
suficientemente sexy.
Mas
nada ficamos sabendo sobre o que levou a Casa Branca a determinar: a) que esses
ataques foram dirigidos pelo governo russo; ou b) que eles foram feitos com o
objetivo de influenciar o pleito, e em particular ajudar na eleição de Donald
Trump.
O
problema com essa história é que, como no caso do Iraque e das falsas “armas de
destruição em massa”, ela acontece num ambiente altamente partidarizado, no
qual os motivos de todos os atores relevantes são duvidosos. Nada junta-se com
nada.
Se
as agências de segurança norte-americanas apresentassem uma evidência
inequívoca de que os russos organizaram uma campanha para mudar os rumos da
eleição presidencial dos EUA e entregar a Casa Branca a Trump, então expulsar
umas poucas dúzias de diplomatas depois da eleição parece uma resposta
estranhamente fraca e inoportuna. Nos dois partidos há vozes dizendo isso,
agora. Os senadores republicanos John McCain e Lindsey Graham observaram que a
Rússia pagou um “preço barato” por seu “ataque descarado”. Enquanto isso, o
Comitê Nacional Democrata disse na quinta-feira que, tomada isoladamente, a
resposta de Obama é “insuficiente” como resposta a “ataques aos Estados Unidos
por um poder estrangeiro”.
O
“preço barato” levanta dúvidas. Como na história das “armas de destruição em
massa”, há um tipo de marketing sendo usado pela Casa Branca para vender uma
narrativa da hackeamento que poderia deixar os repórteres nervosos. Por
exemplo, esse trecho da fala de Obama sobre os maus tratos sofridos por
diplomatas americanos em Moscou: “Além do mais, nossos diplomatas em Moscou experimentaram,
no último ano, um nível inaceitável de provocação pela polícia e serviços de
segurança russos.”
Isso
parece referir-se a um incidente, durante o verão, em que um diplomata
americano foi espancado em Moscou, fora do contexto diplomático. Foi depois de
um caso, em 2013, em que um diplomata dos EUA chamado Ryan Fogle foi preso de
maneira semelhante.
Fogle
foi descrito como um agente da CIA, de forma inequívoca, em vários relatórios
russos. Fotos do kit espião de Fogle – que incluía perucas e um mapa da cidade
– tornaram-se fonte de muitas piadas na imprensa russa e nas mídias sociais. De
maneira semelhante a essa história de hackers aqui nos EUA, os cidadãos russos
comuns pareciam divididos sobre se deviam ou não acreditar.
Se
os russos atrapalharam uma eleição, isso por si só seria suficiente para
garantir uma resposta maciça – muito pior do que respostas pesadas para
episódios de espionagem comuns. O fato de Obama mencionar essas pelejas
monótonas dá a impressão de que ele está jogando alguma coisa para reforçar um
caso que, em outras condições, seria fraco.
Acrescente-se
ao problema que, nos últimos meses de campanha, e também no período
pós-eleição, assistimos a uma epidemia de informações sobre a Rússia
factualmente fracas e com motivação claramente política. Democratas com vocação
de guru têm sido irritantemente rápidos ao usar frases como “a Rússia hackeou a
eleição”.
Isso
levou a uma confusão generalizada, entre as pessoas que ouvem notícias. Teriam
os russos hackeado os emails do Comitê Nacional Democrata? (uma história que
foi sustentada por ao menos alguma evidência, embora limitada) Ou hackearam a
contagem de votos em estados essenciais? (uma lenda muito mais estranha, sem
nenhuma evidência merecedora de crédito).
Como
notaram The Intercept e outras mídias, uma pesquisa do Economist/YouGov
realizada este mês mostra que 50% dos eleitores de Hillary acreditam que os
russos hackearam a contagem de votos. Esse número é quase tão perturbador
quanto os 62% de eleitores de Trump que acreditam na contenda estapafúrdia e
sem fontes de Trump e Alex Jones, de que “milhões” de imigrantes sem documentos
votaram na eleição.
E
ainda houve o episódio em que o Washington Post publicou aquela
história de tirar o fôlego sobre russos ajudando a espalhar “notícias falsas”.
Uma história irresponsável que, revelou-se, baseava-se numa fonte altamente
dúbia denominada “PropOrNot”. Ela classificou 200 organizações diferentes de
mídia alternativa norte-americana como “inocentes úteis” do Estado russo.
Mais
tarde o Washington Post afastou-se dessa história, dizendo que “não
atesta a validade do que diz o PropOrNot”. Foi muito estranho dizer isso numa
declaração que não era uma clara retratação. A ideia de que não está tudo bem
publicar uma alegação, quando você mesmo não confia no que diz sua fonte, é um
grande desvio daquilo que era antes entendido como norma em um jornal como o Post.
Houve
outros excessos. Uma entrevista de um jornal italiano com Julian Assange foi
alterada ao ser reescrita em outras publicações do Ocidente, com The
Guardian atribuindo a Assange elogios a Trump e comentários aparentemente
elogiosos sobre a Rússia, sem fundamento no texto original. (The Guardian agora
“corrigiu” várias passagens do texto em questão).
Informes
de repórteres amistosos ao Partido Democrata – como Kurt Eichenwald, que gerou
alguns absurdos no período, inclusive “informações” (que ele admitiu não terem
fundamento) de que Trump esteve por algum tempo numa instituição psiquiátrica,
em 1990 — tentaram argumentar que representantes de Trump podem ter colaborado
com os russos, ou porque visitaram a Rússia ou porque apareceram na rede RT.
Reportagens semelhantes sobre o “esquema russo” foram inteiramente baseadas em
fontes de segurança anônimas.
Temos
agora essa história das sanções, que coloca uma nova charada. Parece que grande
parte da imprensa está engolindo com força o cerne das alegações de
interferência eleitoral que emanam do governo Obama. Teriam os russos cometido
o delito? É possível, mas nesse caso o fato deveria ter máxima divulgação. Mas
a imprensa, neste momento, ensaia um voo cego. Continuar com relatos crédulos é
problemático, porque estão em jogo vários cenários diferentes possíveis.
Numa
hipótese extrema, os Estados Unidos poderiam ter sido vítimas de um golpe de
Estado virtual arquitetado por uma combinação de Donald Trump e Vladimir Putin,
o que estaria entre as coisas mais graves jamais ocorridas contra o sistema
político. Mas poderia ser também apenas uma campanha cínica do Partido
Democrata, numa tentativa de desviar a atenção do seu próprio fracasso
eleitoral.
Os
democratas, que estão deixando o poder, poderiam estar apenas usando uma
“avaliação” da inteligência exageradamente interpretada para deslegitimizar o
governo Trump e empurrá-lo a uma situação política embaraçosa: ou ele fala
manso com a Rússia e parece um tonto, ou leva ainda mais longe a escalada
contra uma potência dotada de armas nucleares.
Poderia
também ser algo entre os dois. Talvez o Serviço Federal de Segurança russo
[FSB, em inglês] não tenha cometido a invasão, mas simplesmente permitido que,
de alguma forma, acontecesse. Ou ainda, talvez os russos tivessem hackeado o
Comitê Democrata, mas o material do WikiLeaks veio de outra pessoa. Há até
mesmo um relatório sobre isso, tendo um ex-embaixador britânico como fonte,
embora não mereça nenhum crédito a mais do que qualquer outra coisa aqui
exposta.
Nós
simplesmente não sabemos, e esse é o problema.
Deveríamos
ter aprendido com o episódio Judith Miller. Não apenas os governos mentem, mas
eles também não hesitarão em comprometer agências de notícias. Num momento de
desespero, usarão qualquer otário que possam encontrar para impor seu ponto de
vista.
Não
tenho problema algum para acreditar que Vladimir Putin possa ter tentado
influenciar a eleição americana. Ele é um gangster-espião-escória do mais baixo
nível e capaz de qualquer coisa. E Donald Trump também foi porco o suficiente,
durante a campanha, para expressar, publicamente, o desejo de que os russos
revelasem os emails de Hillary Clinton. De modo que muita coisa, sobre isso, é
bastante plausível.
Mas
os norte-americanos já nos queimamos com histórias como essa, de efeitos
desastrosos. O que torna surpreendente que não estejamos tentando, mais
seriamente, evitar ser enganados de novo.
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