Vivemos
um tempo em que nos querem fazer esquecer o passado e abolir o futuro, a favor
de um presente eterno em que dominariam sempre os mesmos. É preciso perceber
que a vida que temos não é imutável, pode sempre piorar se não fizermos nada
para a mudar para melhor
Nuno Ramos de
Almeida – jornal i, opinião
Dizia
um amigo meu, citando alguém que não recordo, que a arquitetura é o mijo dos
príncipes. Os poderosos pretendem deixar em pedra, que julgam eterna, os marcos
do seu poder. Nada dura para sempre, nem a pedra.
“Não
construam monumentos que não possam derrubar”, era o aviso de Wilhelm Reich.
Mas a arquitetura e o urbanismo são muito mais do que psichés de políticos,
eles cristalizam outras relações de força: os bairros pobres são privados de
acessos, infraestruturas e serviços públicos; neles, o urbanismo ganha uma
feição policial em que as estradas, com uma só entrada e saída, permitem cercos
fáceis em operações de detenção e busca. Para além disso, a História parece ter
uma enorme predileção por muros: quando o de Berlim caiu, rapidamente se decretou
o fim da História. Sem perceber que as fundações do muro derrubado estavam em
todos os muros que continuavam por esse mundo fora, quase todos eles a subirem
de altura e de extensão.
O
momento da queda do socialismo real apareceu como falência da possibilidade de
derrube do capitalismo e o estabelecimento de um presente total, feérico,
acelerado, que liquidava de uma penada a memória de um passado de lutas,
revoluções e ruturas e da existência de um futuro diferente. O fim da União
Soviética, que se deve tanto aos seus erros como aos seus inimigos, sepultava a
ideia de rutura, mudança e revolução. Fazia-o não porque a revolta dos
humilhados e ofendidos deixasse de ter razões, mas porque deixava de ser
pensável. A política tornava-se a arte do possível. Os horizontes eram presos
numa caixa de ferro. E esse possível era sempre ditado por quem pretendia
mandar para sempre. Por isso, o grande problema desta época, citando Fredric
Jameson, é que “ninguém considera seriamente possíveis as alternativas ao capitalismo,
enquanto a imaginação popular é assombrada pelas visões do futuro ‘colapso da
natureza’, da eliminação da vida sobre a Terra. Parece mais fácil imaginar o
‘fim do mundo’ que uma mudança muito mais modesta no modo de produção, como se
o capitalismo liberal fosse o ‘real’ que de alguma forma sobreviverá, mesmo na
eventualidade de uma catástrofe ecológica global [...] Assim, pode-se afirmar
categoricamente a existência de uma ideologia como matriz geradora que regula a
relação entre o visível e o invisível, o imaginável e o inimaginável, bem como
as mudanças nessa relação”.
Mas
se, na realidade, as desigualdades cresceram nestas décadas a níveis iguais à
Grande Depressão dos anos 30, que só foi resolvida numa guerra mundial, por que
razão se mantinha o consenso de que a História tinha acabado? Não deviam mandar
mais os factos que as imposições ideológicas? Ao contrário do que pensamos, na
nossa vida, as ilusões têm força material, muitas vezes mesmo quando sabemos
que elas são ilusões. Basta que as aceitemos como algo que nos permite viver
sem permanentemente termos o fardo da morte e da derrota sobre nós. A história
que se segue ilustra na perfeição a função cínica das ilusões que muitas vezes
governam a nossa impotência e que, neste caso, ditavam a não aceitação de uma
realidade.
Estávamos
a 1 de janeiro de 1946, o imperador japonês Hirohito anunciou que chegara o
momento de “suportar o insuportável”, e depois de ter declarado a rendição do
Japão quatro meses antes, confessou que, ao contrário do que os japoneses
pensavam, ele não era nenhuma divindade. Nessa mesma altura nascia em São Paulo
a organização secreta japonesa Shindo Remnei (Liga do Caminho dos Súbditos).
Para os seus seguidores, e para 80% dos japoneses que viviam no Brasil, a
rendição do Japão era uma fraude orquestrada pela propaganda aliada. Tal como
os japoneses perdidos no meio das ilhas do Pacífico, eles não aceitavam a
derrota. A diferença é que os ilhéus estavam privados de informação, enquanto
os japoneses do Brasil tinham acesso a ela.
De
janeiro de 1946 a fevereiro de 1947, os batalhões de assassinos da organização
Shindo Remnei declaram guerra aos japoneses “traidores” que acreditam que o
Japão perdeu a guerra. Matam 23 imigrantes e ferem mais de 150. A polícia
brasileira, para desarticular a organização, é obrigada a prender mais de 30
mil imigrantes japoneses, condena 386 e deporta 80. A força política da
organização é tal que nalgumas câmaras brasileiras são aprovadas moções a
saudar a vitória do Império do Sol Nascente na guerra. A Shindo Remnei chegou a
distribuir edições falsas da revista “Life” em que as fotos da rendição do
Japão aparecem como se fossem da rendição dos Estados Unidos da América. Esta
situação, descrita pelo grande jornalista brasileiro Fernando Morais no seu
livro “Corações Sujos”, inscreve-se profundamente na lógica do pensamento
zizekiano sobre a subjetividade e a ideologia. Os homens do Shindo Remnei não
podiam desconhecer os factos da rendição do Japão; no entanto, não podiam
acreditar neles. Esta distância cínica é parte daquilo que permite que qualquer
sociedade funcione em termos de dominação.
Mas
até o mais cínico dos cínicos pode atingir os seus limites. A crise económica
mundial de 2008 fez rebentar o verniz de democracia que cobria muitos países do
mundo, devido a décadas de domínio absoluto do capitalismo financeiro e seus
parceiros políticos, que esboroaram os frágeis instrumentos de promoção de uma
menor desigualdade social promovidos por um Estado social, criado para manter
um mínimo de paz social.
Esta
ganância do capital é inerente ao próprio capitalismo. O estabelecimento da sua
forma neoliberal, com Margaret Thatcher e Ronald Reagan, é do final dos anos
70. Aqui se traçaram as linhas políticas, inscritas no chamado consenso de
Washington, que nos levaram aos dias de hoje: a retirada de barreiras ao
capital, a destruição do Estado social, a privatização dos serviços públicos, a
diminuição do fator trabalho nos rendimentos e o crescimento exponencial dos
lucros do capital especulativo.
A
multiplicação dos paraísos fiscais foi o aríete desta política de destruição do
Estado social. Foram utilizados sistematicamente, pela primeira vez, após a i
Guerra Mundial, por as nações europeias terem elevado os seus impostos para
pagarem dívidas e financiarem as pensões de veteranos. Como resposta, os ricos
fizeram os seus capitais fugir para a Suíça, onde as práticas bancárias
permitiam receber dinheiro e não fazer perguntas. Entre 1920 e 1929, os ativos
estrangeiros na Suíça cresceram 14% ao ano.
Nos
dias de hoje, como nos relembra Gabriel Zucman, professor na London School of
Economics e na Universidade da Califórnia em Berkeley, a desregulamentação
financeira tem permitido ao capital financeiro lucros muito acima do seu
contributo económico e a existência de offshores e paraísos fiscais é em grande
parte responsável pela crise em que nos encontramos. No seu livro “A Riqueza
Oculta das Nações”, Gabriel Zucman faz uma curta história das offshores, a
forma como operam, a dimensão que atingem na economia mundial e as suas
consequências. O autor é daqueles que acreditam nas virtualidades do
capitalismo e acham que ele pode ser regulamentado para se tornar mais justo. A
sua proposta é que, a exemplo da Revolução Francesa, que fez um inventário da
riqueza, o FMI faça um inventário dos ativos financeiros, recenseando assim a
totalidade do dinheiro estacionado em contas offshore, contribuindo para o
combate ao crime, tráfico de drogas e evasão fiscal. “Uma das propostas
centrais formuladas nesta obra é criar um registo mundial dos títulos
financeiros que indique nominalmente quem possui cada ação e cada obrigação.
Trata-se de uma condição indispensável para poder taxar as fortunas do século
xxi”, defende o autor. Segundo outro autor, James Henry, em 2012 estariam em
contas offshore entre 21 milhões de milhões (biliões) de dólares e 32 milhões
de milhões (biliões) de dólares.
Os
Paulos Núncios desta vida não são gente incompetente que se esquece de fazer
estatísticas, mas gente bem mandada e eficiente para quem o capital deve ser o
menos taxado possível e “livre” de procurar os paraísos que lhe apeteça. Mais
do que o esquecimento estatístico e das listas VIP, há uma permanente
iniciativa para que os grandes grupos possam safar-se de incomodativos
impostos. Arranjaram-se engenhosos expedientes para que os grupos não pagassem
os devidos impostos. Nessa ação fez-se letra morta dos pareceres da
Inspeção-Geral de Finanças e de outros. Não se trata de incompetência, mas de
uma política de classe que defende os mais ricos.
O
crescimento das desigualdades tornou gritante a insatisfação da maioria da
população. A globalização económica fez separar os espaços de decisão
democrática, a nível do Estado-nação, da realidade das decisões económicas.
Decidia quem tinha mais ações e mais dinheiro; votava, para nada, a população.
Aos povos apenas se dava a escolher entre governos que aliviavam os ricos e
governos que tendiam a aliviar os ricos.
O
ar de fim de ciclo em que vivemos, com o aparecimento de sombras negras e a
proliferação de partidos xenófobos e racistas, vem-nos lembrar que a História
liga pouco aos decretos que fazem sobre ela. Podem-na dar como acabada mas,
enquanto houver humanos no planeta, a vida não para. O nosso mais conhecido
poeta garantia que “todo o mundo é composto de mudança”, “Continuamente vemos
novidades/ Diferentes em tudo da esperança/ Do mal ficam as mágoas na
lembrança/ E do bem, se algum houve, as saudades”. Ficava por esclarecer que,
se as coisas podem melhorar, também podem sempre piorar.
A
vitória de criaturas como Donald Trump prova, por más soluções, que a greve da
História acabou. O mundo acelerou ainda mais. A única forma de parar uma caminhada
para o precipício é a ação. Durante muitos anos, os ideólogos dos mercados
impuseram-nos a canga ideológica que defende uma política de carneiros segundo
a qual toda a ação contra o “livre” curso dos mercados e do capital só terá
como resultado as catástrofes e os gulags.
Esse
discurso ideológico escamoteia os milhões de mortos por pobreza, as centenas de
milhões de vidas desperdiçadas sob o manto do natural funcionamento da
economia. Não há nada de natural numa imposição de um poder de poucos sobre
muitos. Não há nada de natural num planeta que produz o suficiente para todos e
só poucos ficam com quase tudo.
O
crescimento dos autoritarismos a que assistimos e a crise ecológica total a que
este caminho da economia dos mercados nos leva exigem, se queremos viver, uma
outra resposta e um outro caminho. É verdade que a História acordou, mas que
esse despertar seja em pesadelo ou não só depende de nós.
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