Entre
os matadouros humanos do general Augusto Pinochet, no Chile, e o terror
anunciado e já iniciado por Donald Trump, expoente capitalista entronizado
presidente dos Estados Unidos da América, distam 35 anos.
José Goulão*, opinião
Nesse
período proclamou-se o fim da História, transformou-se o mercado no deus
absoluto de céus e terra; homens e mulheres maravilharam-se, rendendo-se às
novas missangas da tecnologia e da globalização; revolucionaram-se mapas nos
quais se desfizeram, nasceram, renasceram e inventaram países.
Para
que tais milagres, celebrados em mirabolantes farândolas mediáticas, fossem
possíveis liquidaram-se milhões de pessoas, transformaram-se mais milhões ainda
em refugiados, o terrorismo expandiu-se como ameaça global, o fosso das
desigualdades entre os seres humanos cresceu de modo exponencial, o planeta foi
dizimado ambientalmente, os comércios livres de armas, de drogas e de dinheiros
sujos funcionam como alavancas clandestinas do poder económico e financeiro; um
único exército de mil exércitos controla o mundo.
E,
contudo, a crise afectando o sistema que determina a ordem mundial chegou, viu,
e teima em resistir a todas as mezinhas. Muitos factos que nos rodeiam indiciam
que o sistema de anarquia capitalista global está a atingir o esgotamento do
prazo de validade – pelo menos nos padrões de funcionamento mais usados – e
procede agora a correcções de rota, neste caso um visível regresso às origens.
É
aqui que se dá o encontro entre Augusto Pinochet e Donald Trump, irmanados
prosaicamente pelo fascismo político, redescoberto como a solução que resta, e
a mais garantida, de fazer funcionar o fascismo económico e financeiro inerente
à plenitude neoliberal.
O
neoliberalismo, que tem sido entendido como estado supremo e bem-aventurado do
capitalismo, no qual o mercado reina sem peias sociais e de dignidade humana, é
o primado absoluto da economia do lucro máximo e da liberdade de especulação
financeira
A
primeira experiência da passagem à prática das teorias neoliberais renascidas
na chamada Escola de Chicago, sob a tutela do seu mestre Milton Friedman, foi o
Chile de Pinochet, estabelecido em Setembro de 1973 por acção do golpe militar
fascista que derrubou o presidente Salvador Allende e o seu governo de Unidade
Popular, legitimados por eleições livres e democráticas.
Os
enviados da Escola de Chicago, os chamados «Chicago boys» na sequência do golpe
preparado por Henry Kissinger e pela CIA – como outros na mesma época, na
América Latina… E também na Europa – tomaram as rédeas da economia chilena sob
a protecção de uma feroz ditadura política.
O
sanguinário processo deu origem a milhares de democratas assassinados e
desaparecidos, sindicatos e partidos dizimados, liberalização absoluta das leis
de trabalho e do mercado laboral, privatizações sem limites e a preços de saldo,
substituição da segurança social por seguros de saúde para alguns, enfim não é
preciso enumerar a longa lista de malfeitorias pois algumas até as conhecemos
por experiência própria, via União Europeia.
Da
passagem da experiência chilena à institucionalização regimental do
neoliberalismo foi um ápice. No Reino Unido, a primeira-ministra Margaret
Thatcher, admiradora confessa de Friedman e Pinochet, procedeu a transformações
económicas neoliberais sob o enquadramento do sistema político vigente,
adaptado às circunstâncias – por isso ficou conhecida como «dama de ferro»,
devido à maneira como dizimou a vertente social da economia e reduziu a pó o
poder sindical, sem hesitar em recorrer a acções de repressão de tipo fascista.
Rumo
idêntico seguiu a administração Reagan nos Estados Unidos da América, a partir
de 1980, ano em que se iniciou a chamada «revolução conservadora» que trouxe o
mundo à situação em que se encontra. Membros da administração de Ronald Reagan
e seus discípulos tornaram-se determinantes nas presidências seguintes, tanto
sob os rótulos republicano, Bush pai e filho, como democrata – casos da família
Clinton e de Obama.
Do
mesmo modo, no Reino Unido e através da Europa a política neoliberal instaurada
por Thatcher foi seguida, no essencial, pelos trabalhistas como Tony Blair e
outros descobridores da «terceira via», de Felipe Gonzalez a Hollande, sem
esquecer os sociais-democratas nórdicos e alemães.
Daí
que a transformação da Comunidade Europeia em União Europeia, nos anos noventa,
se tenha processado, por inteiro, sob os cânones neoliberais, de que são
exemplos as destruições dos aparelhos públicos e sociais nos Estados membros,
os intermináveis processos de privatizações, de agonia austeritária, de
«liberalização» dos sistemas laborais, de ditaduras das dívidas e dos défices.
Eis
então que a crise explode em 2009, depois de ter amadurecido durante os
primeiros anos do século. É significativo que entre os principais instrumentos
de combate ao fenómeno, nos dois lados do Atlântico, tenham estado a degradação
ainda mais ostensiva da democracia e a multiplicação de guerras e agressões,
ditas “humanitárias” e “democráticas”, nas regiões mais geoestratégicas do
globo.
No
primeiro período da «revolução conservadora», principalmente na Europa, o
sistema de pluralismo democrático foi reduzido ao primado dos chamados «blocos
centrais» ou «arcos da governação», cópias mais ou menos aparentadas do sistema
bipartidário norte-americano: duas siglas obedientes ao mesmo sistema económico
e financeiro e apenas ligeiramente diferenciadas nas práticas política e
social.
A
partir de 2009, sobretudo na União Europeia, o processo de desvalorização
democrática perdeu o pudor e, como hoje podemos testemunhar, o fascismo e a
xenofobia afirmam-se sem disfarces perante a cumplicidade, quando não o apoio,
de Bruxelas. A Hungria, os Estados do Báltico, a Polónia, a Eslováquia seguem o
seu rumo autoritário sem ser incomodados, enquanto todas as antenas da União
fiscalizam o exemplo democrático e plural português como algo de anacrónico e
desafiador, com os instrumentos punitivos à mão.
Por
isso, não têm os agentes da especulação financeira e da exploração económica
acastelados nas estruturas da União Europeia qualquer credibilidade para se
afirmarem como bastiões de defesa da democracia perante a investidura e as
investidas fascistas de Donald Trump.
A
xenofobia e o desprezo de Merkel perante os refugiados e os povos do sul da
Europa, a aliança institucional de Renzi com a extrema-direita berlusconiana em
Itália, os despropósitos de Hollande ao governar há mais de um ano na
arbitrariedade do estado de excepção, enquanto vai cumprindo a agenda social da
família Le Pen pretensamente para travar o passo a Marine Le Pen, são maneiras
mais ou menos encapotadas de estar em sintonia com Trump. Porque, além disso e
como sabemos perante abundantes exemplos, a construção de muros, cercas e
fossas anti-refugiados é uma prática europeia prévia à emergência de Trump; e
também nada obstou a que a União Europeia fosse parte activa na concretização
do golpe fascista na Ucrânia, apresentado como «revolução democrática», e nas
guerras que destruíram países como o Iraque, a Líbia e a Síria.
Aliás,
toda a argumentação dos governos europeus tentando harmonizar as declarações de
fidelidade à NATO e a suposta contestação a Trump caem pela base sabendo-se que
o mesmo Trump é, sem tirar nem pôr, o comandante supremo da NATO.
O
ingresso de Donald Trump na Casa Branca aparenta ser um regresso do
neoliberalismo à experiência original. Embora, visivelmente, a prática do novo
presidente norte-americano esteja a suscitar contradições – que são mais
inquietações – em alguns círculos do grande poder capitalista norte-americano e
transnacional, os seus métodos parecem ser necessidades objectivas para a
sobrevivência do neoliberalismo perante a crise, sob a ameaça de esgotamento
dos efeitos temporariamente favoráveis da globalização, do aviltamento da
democracia e do recurso à multiplicação de guerras.
A
afirmação brutal de um nacionalismo norte-americano fundamentalista,
tradicionalista e doentio, em busca da recuperação de galões económicos
perdidos na globalização e no neoliberalismo exercido em tons formalmente
democráticos, coloca-o em confronto com outros nacionalismos tradicionais ou
renovados, recriando cenários tragicamente semelhantes aos que antecederam a
Primeira Guerra Mundial.
Acresce
que Donald Trump não é um «engano» do establishment norte-americano.
Nem ele enganou ninguém para chegar onde chegou. Foi como candidato com
programa fascista e ultra-nacionalista que foi eleito presidente, dentro do
funcionamento normal do sistema político – mesmo com minoria de votos, como
aliás já sucedeu em outros casos nos Estados Unidos, e também em países
europeus. Sabemos ainda, como regra geral, que a vontade real das maiorias
poucas vezes se casa com a democracia.
Como
talvez nenhum outro presidente norte-americano, Trump entra a cumprir o que
prometeu, não se esconde em eufemismos nem discursos redondos. Surpreendente é
que tantas almas mainstream se declarem agora estupefactas e
continuem a acreditar que existem dissonâncias entre Trump, o establishment e
o próprio neoliberalismo – quando têm todos, e sempre, a mesma essência: poder
absoluto do mercado, ganância de lucros sem limites, exploração máxima,
direitos humanos zero, especulação financeira sem barreiras.
O
que a chegada de Donald Trump à Casa Branca demonstra, em primeiro lugar, é que
o neoliberalismo deu como esgotada a etapa de convívio com a democracia – ainda
que precária – e, nas condições actuais, liga a sua própria sobrevivência ao
autoritarismo político, no limite o próprio fascismo. Aqui chegou o estado
supremo do capitalismo.
Posto
isto, enquanto Donald Trump e Augusto Pinochet selam simbolicamente a sua
cumplicidade, grande borrasca paira sobre o mundo. Quando um ciclo se fecha,
outro deverá estar em formação. O problema mais inquietante são as
circunstâncias do ponto de partida.
Trump
não é um fenómeno, um erro ou engano; é uma consequência natural de um sistema
acossado por uma crise renitente que resiste a terapias cada vez mais extremas.
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