Manuel
Carvalho da Silva* - Jornal de Notícias, opinião
A
instituição Inspeção do Trabalho em Portugal já tem 100 anos. Ela surgiu na
sequência da criação do Ministério do Trabalho, em 1916. Nas últimas décadas do
século XIX e no início do século XX, forças progressistas - socialistas,
sociais-democratas, anarquistas, republicanos e outros - reclamavam políticas e
práticas laborais que travassem a exploração desenfreada, ao mesmo tempo que se
batiam pelo reconhecimento e ampliação das organizações do movimento operário
que, com lutas heroicas, protegiam os trabalhadores e afirmavam os seus
direitos. Não é por acaso que a Carta Encíclica "Rerum Novarum", de
1891, afirma: "Os trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-se visto, com
o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça duma
concorrência desenfreada".
Hoje,
como há cem anos, por certo de formas diferentes, é imprescindível que os
estados e as instituições internacionais intervenham com instrumentos eficazes
para que seja reconhecida e efetivada a dignidade do Homem no trabalho: a saúde
dos trabalhadores, as suas capacidades físicas, intelectuais e morais serem
garantidas, também em função da idade e do género; afirmadas condições dignas
de prestação do trabalho; assegurados os direitos ao repouso e a usufruir do
tempo do não trabalho, tão necessário para organizar a família e concretizar
participação social, cultural e política.
O
Estado social de direito democrático assenta em "trabalho digno", só
possível com leis adequadas e justas e sua plena aplicação, utilizando para o
efeito, nomeadamente, a ação de organismos especializados, como é o caso da
Inspeção do Trabalho, atualmente organizada na Autoridade para as Condições de
Trabalho (ACT). A este organismo público está atribuída uma ampla ação "no
âmbito das relações laborais privadas, bem como a promoção de políticas de
prevenção de riscos profissionais e, ainda, o controlo do cumprimento da
legislação relativa à segurança e saúde no trabalho, em todos os setores de
atividade, e nos serviços e organismos da administração pública central, direta
e indireta, e local, incluindo os institutos públicos".
Num
país com muitas centenas de milhares de empresas e serviços, como é possível
haver apenas 308 inspetores do Trabalho? É preciso reforçar este quadro de
efetivos, a sua formação geral e as suas especializações. O Governo, outros
órgãos de soberania e instituições devem valorizar estes trabalhadores e as
suas funções, conceder-lhes autoridade reforçada que se consegue também pela
sua dignificação.
Entretanto,
Portugal necessita: i) de uma cultura de efetividade do Direito do Trabalho que
convoca uma melhoria da ética da legalidade e um reforço da contratação
coletiva que tem (e bem) força de lei; ii) que as leis do Trabalho - em
particular na sua interpretação pelos tribunais - sejam equilibradas na
subordinação jurídica, mas muito mais atentas à dependência e vulnerabilidade
económica dos trabalhadores e até, em muitos casos, de umas empresas perante as
outras; iii) de tribunais mais acessíveis, com melhor conhecimento da estrutura
e organização das empresas e das relações de poder aí existentes; iv) de
aperfeiçoar o rendimento da Inspeção do Trabalho e da ACT no seu todo,
ultrapassando-se os défices atrás referidos e reforçando-se a sua ação
preventiva em várias áreas; v) de reforço da liberdade efetiva de organização
dos trabalhadores - sindicatos, comissões de trabalhadores e comissões para a
saúde e segurança no trabalho - que possibilite o exercício pleno dos direitos
consagrados na Lei.
Refiro
apenas três situações que, no âmbito da ação inspetiva e fiscalizadora, obrigam
hoje a intenso trabalho para travar a lei da selva: a) o combate à
informalidade, ao trabalho oculto e a formas gritantes de precariedade; b) a
identificação e denúncia do falso trabalho autónomo; c) uma observação atenta a
serviços considerados mais qualificados no setor financeiro, em grandes
escritórios de advogados e consultoras, em serviços de saúde e outros em que se
desrespeitam horários de trabalho e proliferam ilegalidades.
A
democracia precisa de instituições fortes de trabalho digno e de cidadania.
*Investigador e professor universitário
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