História
da perseguição a um dissidente. Como EUA, Suécia e Inglaterra tentam, há cinco
anos, silenciar um jornalista incômodo. A invenção de “crimes” e a violação do
direito internacional. Pergunta: ele finalmente será libertado?
John
Pilger* | Outras Palavras | Tradução Vila Vudu
Julian
Assange foi vingado, porque todo o caso contra ele, construído pelo Judiciário
sueco, foi ato de corrupção da Justiça. A Procuradora Marianne Ny cometeu
crime de obstrução da justiça e tem de ser processada. A obsessão dela contra
Assange não apenas envergonha seus colegas juízes e procuradores, mas também
deixa à vista de todos a colusão entre o Estado sueco e os EUA nos crimes de
guerra dos norte-americanos e suas famigeradas “entregas especiais” [ing. rendition]
de [prisioneiros a governos estrangeiros, para serem torturados, assassinados
ou todas as anteriores (NTs)].
Se
Assange não tivesse procurado abrigo na embaixada do Equador em Londres, teria
sido metido num dos buracos de tortura e ilegalidade que os EUA mantêm, para um
dos quais foi enviada Chelsea Manning.
Essa
ameaça muito real foi mascarada pela farsa que o Judiciário sueco prestou-se a
representar. “Chega a ser cômico” – disse James Catlin, um dos advogados
australianos de Assange. – “Dava a impressão que iam inventando o próximo passo
enquanto um passo se ‘desenvolvia’ no Judiciário sueco”.
Pode
até ter parecido cômico, mas sempre foi feito muito a sério. Em 2008, documento
secreto do Pentágono redigido pelo “Setor de Avaliação de
Cibercontrainteligência” [ing. “Cyber Counterintelligence Assessments Branch”]
expôs um plano detalhado para desacreditar o WikiLeaks e destruir a reputação
pessoal de Assange.
A
missão consistia em destruir a “confiabilidade”, que era o “centro de
gravidade” de WikiLeaks. O objetivo seria alcançado mediante ameaças de
“exposição e processo criminal”. Isso, para silenciar e “criminalizar” uma
fonte não controlável de produção e distribuição, diretamente aos cidadãos, de
informação verdadeira e documentação comprobatória.
Não
que a operação não seja compreensível. O WikiLeaks realmente expôs o modo como
os EUA dominam grande parte de todos os negócios de toda a humanidade,
inclusive os crimes mais épicos, sobretudo no Afeganistão e no Iraque: a
matança indiscriminada, frequentemente homicida, de civis e o absoluto desprezo
pela soberania dos países e pela lei internacional.
O
trabalho de revelar fatos comprovados e comprováveis para conhecimento da
opinião pública é protegido pela Primeira Emenda da Constituição dos EUA.
Quando ainda professor de Direito Constitucional e candidato à presidência dos
EUA, Barack Obama, em 2008, elogiou esses sentinelas da verdade e da democracia
[ing. whistle blowers, lit. “tocadores de apito”] como “parte de uma
democracia saudável [os quais] devem ser protegidos contra revides”.
Em
2012, a campanha de Obama comemorava no website que o presidente
processara mais “sentinelas da verdade e da democracia” só no primeiro mandato,
que todos os demais presidentes dos EUA somados. Antes até de ela ter sido
julgada, Obama, publicamente, já declarara Chelsea Manning culpada.
Poucos
observadores sérios têm qualquer dúvida de que, se os EUA conseguissem pôr as
mãos em Assange, ele teria destino semelhante. Segundo documentos divulgados
por Edward Snowden, ele está numa “lista de homens e mulheres a ser caçados”
[ing.“Manhunt target list”]. Ameaças de sequestro e de assassinato contra
Assange viraram tema político e midiático quase corriqueiro nos EUA, depois que
o vice-presidente Joe Biden declarou, em movimento criminoso, que o fundador do
WikiLeaks seria um “ciberterrorista”.
Hillary
Clinton, a destruidora da Líbia e, como WikiLeaks revelou ano passado,
apoiadora secreta e beneficiária pessoal das mesmas forças que mantêm ativo e
operante o ISIS, propôs solução brotada da própria cabeça: “Não podemos dronar esse
‘cara’?”
Como
se lê em telegramas diplomáticos emitidos da Austrália, o empenho de Washington
para pegar Assange é “de natureza e de escala sem precedentes”. Em Alexandria,
Virginia, um grande juri secreto tentou durante sete anos determinar um crime
(qualquer crime) no qual pudesse enquadrar Assange e processá-lo. Não é
empreitada fácil.
A
Primeira Emenda protege editores, jornalistas e “sentinelas” da informação,
seja o editor do New York Times ou o editor do WikiLeaks. A noção de
“livre manifestação do pensamento” é tida como uma das “virtudes fundantes” dos
EUA, ou como disse Thomas Jefferson, como “nossa moeda”.
Ante
essa dificuldade, o Departamento de Justiça dos EUA forjou acusações de
“espionagem”, “conspiração para cometer espionagem”, “conversion” (roubo de
propriedade do governo), “fraude e abuso com uso de computadores” (computer
hacking) e “conspiração” inespecífica em geral. O notório Espionage Act,
concebido para apanhar pacifistas e opositores de consciência durante a
primeira Guerra Fria, prevê para esses crimes penas de prisão perpétua e pena
capital.
A
capacidade de Assange defender-se nesse processo kafkiano foi gravemente
limitada pelo movimento dos EUA, de declararem “secreto” todo o caso. Em 2015,
uma corte federal em Washington proibiu a circulação de qualquer notícia ou
informação sobre a investigação – dita de “segurança nacional” – contra o
WikiLeaks, porque a investigação estava “ativa e em curso” e qualquer movimento
criaria novas dificuldades para a “acusação e o processo iminentes” de Assange.
A juíza, Barbara J. Rothstein, disse que era necessário manifestar “deferência
adequada ao Executivo em questões de segurança nacional”.
Para
Assange, o julgamento foi feito na e pela mídia. Em 20/8/2010, quando a polícia
sueca abriu uma “investigação de estupro”, já trabalhava em coordenação ilegal
com os tabloides de Estocolmo. As primeiras páginas diziam que Assange fora
acusado pelo “estupro de duas mulheres”. A palavra “estupro” pode até ter
acepções diferentes na lei sueca e na lei britânica, mas a mais perniciosa “realidade”
falsificada já fora convertida em notícia e já corria o mundo.
Mas
menos de 24 horas depois, a Procuradora Geral da Justiça de Estocolmo, Eva
Finne, assumiu a investigação e, sem perder tempo, cancelou o mandado de
prisão: “Não estou convencida de que haja qualquer motivo para que se suspeite
de que [Assange] tenha cometido estupro.” Quatro dias adiante Eva Finne
interrompeu toda a investigação de estupro, já convencida de que “Não há
elementos para que se suspeite nem de estupro, nem de crime algum”.
Foi
quando entrou em cena Claes Borgstrom, figura conhecida e altamente suspeita,
membro do Partido Social Democrata e candidato a eleições então iminentes na
Suécia. Dias depois de a Procuradora Geral ter encerrado a investigação por
falta de indício de qualquer crime, Borgstrom, que é advogado, anunciou à mídia
que assumia a causa, como defensor das duas mulheres que haviam denunciado o
“estupro” e que outra procuradora, em Gotemburgo, aceitara reabrir o caso:
Marianne Ny, velha conhecida de Borgstrom, pessoalmente e politicamente.
Em
30/8, Assange apresentou-se voluntariamente a uma delegacia de polícia em
Estocolmo e respondeu a todas as perguntas que lhe foram feitas. Saiu
convencido de que o assunto estava encerrado. Outros dois dias, e Ny anunciou que
estava reabrindo o caso.
Numa
entrevista coletiva, um jornalista sueco perguntou a Borgstrom por que o caso
continuava, depois de ter sido encerrado; o jornalista lembrou que uma das
mulheres havia declarado que não fora estuprada. “Ah…” – Borgstrom respondeu –
“é que ela não é advogada”…
No
dia em que Marianne Ny reabriu o caso, o diretor do serviço de inteligência
militar da Suécia – cuja sigla em sueco é MUST — denunciou o
Wikileaks publicamente, em artigo intitulado “WikiLeaks [é] ameaça grave aos nossos
soldados” [então no Afeganistão, sob comando dos EUA].
Ambos,
o primeiro-ministro e o ministro de Relações Exteriores da Suécia, atacaram
Assange, que até aí não era acusado de crime algum. Assange foi avisado de que
o serviço de inteligêngia sueco [SAPO] recebera ameaças vindas de seu
contraparte nos EUA, de que todos os arranjos de parceria e cooperação entre
EUA e Suécia para intercâmbio de inteligência seriam “cortados”, se a Suécia
desse abrigo a Assange.
Assange
permaneceu outras cinco semanas na Suécia, à espera de que o novo inquérito
sobre o tal “estupro” tomasse rumo. O Guardian naquele momento estava
a poucos dias de publicar os “Arquivos da Guerra do Iraque” [ing. Iraq
“War Logs”], de documentos recebidos e distribuídos pelo WikiLeaks, que Assange
ainda precisava revisar em Londres.
Finalmente,
Assange recebeu autorização para deixar o país. No instante em que viajou,
Marianne Ny emitiu um Mandado Europeu de Prisão e um “alerta vermelho” da
Interpol, normalmente usado para terroristas e criminosos perigosos.
Assange
apresentou-se a uma delegacia de polícia em Londres, foi devidamente preso e
passou dez dias na Prisão de Wandsworth, confinado em solitária. Libertado sob
fiança de 340 mil libras, recebeu uma tornozeleira eletrônica e ordens para se
apresentar à polícia diariamente, praticamente em prisão domiciliar, enquanto
seu caso começava a longa jornada rumo à Suprema Corte.
Ainda
não havia qualquer acusação formalizada contra ele. Os advogados repetiram a
oferta, de que fosse interrogado em Londres, por vídeo ou pessoalmente,
lembrando que Marianne Ny havia autorizado que Assange saísse da Suécia.
Sugeriram um local especial na Scotland Yard, que autoridades suecas e
europeias costumavam usar para a mesma finalidade. A Procuradora recusou sempre.
Ao
longo de sete anos, enquanto a Suécia interrogava 44 pessoas no Reino Unido, em
conexão com outras investigações policiais, a procuradora Ny sempre se recusou
a interrogar Assange; assim manteve aberto e sem movimentação o caso que ela
mesma inventara.
Em
artigo que publicou na imprensa sueca, um ex-procurador, Rolf Hillegren, acusou
Ny de estar perdendo a imparcialidade. Descreveu como “anormal” o pesado
investimento pessoal que a Procuradora evidenciava ter no caso, e requereu que
ela fosse substituída.
Assange
pediu que as autoridades suecas lhe dessem garantias de que não seria oferecido
como “entrega especial” aos EUA se fosse extraditado para a Suécia. Autoridades
suecas recusaram. Em dezembro de 2010, The Independent revelou que os
dois governos já havia discutido a extradição de Assange para os EUA, que
estaria em andamento.
Ao
contrário do que sugere a reputação que tem como bastião da ilustração liberal,
a Suécia aproximou-se de tal modo de Washington que já recebera “entregas
especiais” secretas de prisioneiros da CIA – incluindo deportação ilegal de
refugiados. A “entrega especial” e subsequente tortura de dois refugiados
políticos egípcios em 2001 foi condenada pelo Comitê da ONU Contra a Tortura,
pela Anistia Internacional e pelo Observatório dos Direitos Humanos; a
cumplicidade e a duplicidade do Estado sueco estão documentados em vários
processos civis bem-sucedidos e nos telegramas distribuídos por WikiLeaks.
“Documentos
divulgados pelo WikiLeaks desde que Assange mudou-se para a Inglaterra” –
escreveu Al Burke, editor do jornal (online) Nordic News Network e
autoridade nas incontáveis idas e vindas e armadilhas criadas contra Assange –
“indicam claramente que a Suécia rendeu-se de modo visível à pressão que fazem
os EUA. Há muitos motivos para temer que, se Assange for preso por autoridades
suecas, acabará entregue aos EUA, sem qualquer consideração aos seus direitos
legais inquestionáveis.”
A
guerra contra Assange intensificou-se. Marianne Ny recusou acesso aos advogados
suecos de Assange e a cortes suecas, às centenas de mensagem tipo SMS que
a Polícia extraiu do celular de uma das duas mulheres envolvidas nas acusações
de “estupro”.
Ny
disse que não era obrigada por lei a revelar essa prova crucial, a menos que
houvesse acusação formal e ela o tivesse interrogado… Mas nesse caso, por que
ela não o interrogava? Ardil 22.
Ao
anunciar semana passada que estava deixando o caso Assange, não fez qualquer
referência à prova que destruiria todo o caso. Uma das mensagens SMS deixava
claro que uma das mulheres não queria que se acusasse Assange, “mas a Polícia
estava decidida a pegá-lo”. A moça declara-se “chocada” quando o prenderam,
porque ela só queria que ele fizesse o teste [de HIV]”. Ela “nunca quis
acusar Assange de coisa alguma” e “a própria Polícia inventou todas as
acusações”. Em declaração como testemunha, a moça diz que foi “detida na
estrada, por policiais e outros que a cercaram”.
Nenhuma
das duas mulheres jamais disse que fora estuprada. Na verdade, as duas negaram
qualquer estupro e uma delas até tuitou: “Não fui estuprada.”As duas mulheres
foram manipuladas pela Polícia, digam o que disserem, agora, os advogados
delas. Com certeza, elas também foram vítimas dessa saga sinistra.
Katrin
Axelsson e Lisa Longstaff, da ONG Mulheres Contra o Estupro, escreveram:
“As
alegações contra [Assange] são cortina de fumaça por trás da qual vários
governos tentam pôr as garras em WikiLeaks por terem audaciosamente revelado os
planos secretos de guerras e ocupações as quais, elas sim, são desfile macabro
de estupro, assassinato e destruição (…) As autoridades dão tão pouca
importância à violência contra mulheres que usam acusações de estupro como bem
lhes interesse. [Assange] disse claramente que estava disponível para ser
interrogado pelas autoridades suecas, na Grã-Bretanha ou via Skype. Por que
evitam esse passo essencial na investigação? Têm medo do quê”?
Assange
teve de enfrentar uma escolha duríssima: extradição para um país que se
recusava a dizer se o entregaria ou não aos EUA, ou procurar o que parecia ser
sua última chance de obter refúgio e segurança.
Apoiado
por grande parte da América Latina, o governo do pequenino Equador garantiu-lhe
status de refugiado apoiado em evidência documental de que havia risco real de
Assange receber tratamento cruel e castigo inédito, dos EUA; que essa ameaça
violava os direitos humanos de Assange; e que o próprio governo da Austrália
[Assange é cidadão australiano] o abandonara e entrara em colusão com
Washington.
O
governo trabalhista da então primeira-ministra da Austrália, Julia Gillard,
chegara a ameaçar cassar o passaporte australiano de Assage – até que foi
informada de que cassar o passaporte seria ato ilegal.
Uma
das advogadas de direitos humanos mais renomados do mundo, Gareth Peirce, que
representa Assange em London, escreveu ao então ministro de Relações Exteriores
da Austrália, Kevin Rudd:
“Dada
a extensão da discussão pública, frequentemente baseada em pressupostos
inteiramente falsos (…) é difícil preservar para [Assange] qualquer presunção
de inocência. Assange tem hoje pendentes sobre a cabeça, não uma, mas duas
espadas de Dâmocles – da extradição potencial para duas diferentes jurisdições
por dois diferentes crimes jamais provados, nenhum dos quais são crimes em seu
próprio país, e a ameaça real que pesa contra sua segurança, hoje exercida em
circunstâncias de alta carga política.”
Só
depois de ter feito contato com o Alto Comissariado da Austrália em Londres foi
que Peirce conseguiu obter uma resposta, que não respondia nenhum dos pontos
muito claros que ela havia levantado. Em reunião da qual participei com Gareth,
o cônsul-geral da Austrália, Ken Pascoe, disse – ante nossos olhos arregalados
de espanto – que só sabia sobre o caso “o que li nos jornais”.
Em
2011, em Sidney, passei várias horas com um membro conservador do Parlamento
Federal da Austrália, Malcolm Turnbull. Discutimos as ameaças que havia contra
Assange e as graves implicações contra a liberdade de expressão e a
justiça, e os motivos pelos quais a Austrália tinha o dever de defender
Assange. Turnbull tinha reputação de defensor da liberdade de expressão. Hoje,
é primeiro-ministro da Austrália.
Entreguei
a ele a carta de Gareth Peirce sobre as ameaças reais contra os direitos e a
vida de Assange. Ele reconheceu que a situação era gravíssima e prometeu levar
o assunto ao conhecimento do governo Gillard. E nunca mais ninguém o ouviu
pronunciar uma palavra sobre esse assunto.
Por
quase sete anos, esse erro épico nos procedimentos e processos da justiça
foi ocultado por campanha de virulência jamais vista contra o fundador de
WikiLeaks. Poucas vezes se viu fúria semelhante contra um acusado. Os ataques
foram pessoais, mesquinhos, perversos, desumanos, dirigidos contra alguém que
não fora acusado por crime algum, mas submetido a tratamento mais furioso do
que seria dado a acusado de matar a própria mulher. A evidência de que a ameaça
dos EUA a Assange era ameaça a todos os jornalistas ficou perdida, soterrada em
montanhas de ambições e sordidez. Pode-se falar aí de antijornalismo.
Publicaram-se
livros, assinaram-se contratos para filmes e incontáveis carreiras foram ou
criadas ou promovidas nas costas do WikiLeaks – sob o pressuposto de que atacar
Assange era passaporte para a fama, dentre outros motivos porque Assange não
tinha dinheiro para processar todos que o ofendiam. Muita gente ganhou dinheiro
– em alguns casos muito dinheiro – enquanto o WikiLeaks lutava para sobreviver.
O
ex-editor do Guardian, Alan Rusbridger, disse que as revelações de
WikiLeaks, que o jornal dele publicou, foram “um dos maiores furos de
reportagem nos últimos 30 anos “. Mas não moveu uma palha para proteger a fonte
daquelas informações, sem cujo trabalho o Guardian nada teria. Em vez
de trabalho que promovesse algum melhor jornalismo, o “furo” converteu-se em
item de um plano de marketing para aumentar o preço de capa do
jornal.
Sem
que Assange recebesse coisa alguma, ou WikiLeaks, um livro super promovido pelo Guardian levou
a um lucrativo filme de Hollywood. Os autores do livro, Luke Harding e David
Leigh, descreveram Assange como “personalidade perturbada” e “intratável”.
Também revelaram a senha que Assange entregara em confiança ao jornal, e que
visava a proteger um arquivo digital no qual estavam os telegramas diplomáticos
dos EUA. Com Assange já sem poder sair da embaixada do Equador, Harding – que
se exibia na calçada em frente protegido por policiais – escrevia em seu blog
que “a Scotland Yard ainda pode rir por último”.
Alunos
de jornalismo devem estudar detidamente esse período, para compreender onde
está a fonte mais abundante de “falsas notícias” [ing. “fake news”]: está
dentro da própria indústria da mídia, toda ela recoberta de falsa
respeitabilidade e, sempre, uma extensão da autoridade e do poder que
jornalistas e empresas de mídia vivem de cortejar e proteger.
A
presunção de inocência jamais foi sequer considerada, e com certeza não na
inesquecível cena, de Kirsty Wark, ao vivo, em 2010, quando perguntou a Assange:
“Por que você se recusa a simplesmente pedir desculpas àquelas senhoras?” E na
sequência: “Você nos dá sua palavra de honra de que não vai escapar?”
No
programa Today da BBC, John Humphrys não se acanhou: “Você é um
predator sexual?” Assange respondeu que pergunta e sugestão eram ridículas.
Humphrys então perguntou “Com quantas mulheres você já dormiu?”
“Será
que Fox News desceria tão baixo?” – pergunta o historiador
norte-americano William Blum. – “Queria que Assange tivesse sido criado nas
ruas do Brooklyn, como eu. Porque nesse caso ele saberia precisamente como
responder essa pergunta canalha: ‘Quantas? Você quer dizer, contando a sua
mãe?'”
Semana
passada, no programa BBC World News, no dia em que a Suécia anunciou que
encerrava o processo contra Assange, fui entrevistado por Greta
Guru-Murthy, que parecia mal informada sobre o caso de Assange. Não parava de
falar das “acusações” contra Assange. Acusou-o de ter posto Trump na Casa
Branca e insistiu em chamar minha atenção para o “fato” de que “líderes em todo
o mundo condenaram Assange”. Entre esses líderes ela incluía o diretor da CIA de
Trump. Tive de perguntar a ela: “Você é jornalista?”
A
injustiça cometida contra Assange é uma das razões pelas quais o Parlamento
reformou a “Lei de Extradição” [Extradition Act] em 2014. “O caso de Assange é
vitorioso e já modificou a lei na Grã-Bretanha” – disse-me Gareth Peirce. –
“Essas mudanças na lei significam que o Reino Unido agora reconhece como
verdade tudo que a defesa argumentou a favor de Assange. Mas ele não se
beneficiará dessa vitória”. Em outras palavras, se a lei que há hoje, motivada
pela defesa de Assange, já existisse no início do caso, Assange não precisaria
ter-se internado na Embaixada do Equador e poderia viver livremente em Londres.
A
decisão do Equador, de garantir proteção a Assange em 2012, foi decisão moral,
extremamente corajosa. Ainda que o asilo seja considerado ato humanitário, e
todos os Estados tenham poder para conceder asilo a qualquer pessoa, nos termos
da lei internacional, dois países – Reino Unido e Suécia – recusaram-se a
reconhecer a legitimidade da decisão do Equador.
A
Embaixada do Equador em Londres foi posta sob cerco policial e o governo
britânico cometeu vários abusos. Quando o ministério de Relações Exteriores de William
Hague ameaçou violar a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, cancelar
a inviolabilidade diplomática da Embaixada e mandar a polícia invadir e prender
Assange, a onda de indignação que cresceu em todo o mundo obrigou o governo
britânico a retroceder.
Numa
noite, surgiram policiais nas janelas da Embaixada, em clara tentativa para
intimidar Assange e os que o protegiam.
Desde
então, Assange vive numa sala pequena, sem tomar sol. Esteve doente algumas
vezes e não lhe foi permitido acesso a qualquer hospital para diagnóstico ou
tratamento. Mesmo assim, mostrou-se sempre animado, o mesmo humor afiado de
sempre, impressionante, naquelas circunstâncias. Perguntado sobre como lidava
com o confinamento, respondeu: “Aqui é muito bom. Ganha de qualquer Sing-Sing.”
Ainda
não acabou, mas está em andamento. O Grupo de Trabalho da ONU sobre Detenção
Arbitrária [ing. United Nations Working Group on Arbitrary Detention] – o
tribunal que julga e decide se os governos cumprem seus deveres de respeito e
promoção dos direitos humanos – decidiu, ano passado, que a detenção de Assange
foi ilegal nos dois casos: quando foi detido na Suécia e quando foi detido na
Grã-Bretanha. Isso é lei internacional num de seus grandes momentos.
Ambas,
Grã-Bretanha e Suécia, foram partes na investigação na ONU que durou 16 meses,
e apresentaram seus argumentos e suas provas perante o tribunal. Noutros casos
apreciados pelo Grupo de Trabalho – de Aung Sang Suu Kyi em Burma; do líder
Anwar Ibrahim preso na Malásia; do jornalista do Washington Post Jason
Rezaian preso no Irã – Grã-Bretanha e Suécia prestaram irrestrito apoio ao
tribunal da ONU. De diferente, que a perseguição de que Assange é objeto
acontece no coração de Londres.
A
Polícia Metropolitana diz que ainda quer prender Assange por infringir a lei da
fiança, no caso de ele deixar a embaixada. E depois? Uns poucos meses de
prisão, enquanto os tribunais britânicos esperam que chegue a ordem para
extraditá-lo para os EUA?
Se
o governo britânico deixar que aconteça desse modo, acabará coberto de vergonha
aos olhos do mundo e, aos olhos da história, como cúmplice de um crime de
guerra cometido pela potência rampante contra a justiça e a liderdade e contra
todos os cidadãos do mundo.
*
John Pilger teve sua carreira como repórter iniciada em 1958, e ao longo dos
anos tornou-se famoso pelos livros e documentários que escreveu ou produziu.
Especializou-se nas áreas de jornalismo investigativo e direitos humanos.
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