No
século XIX, as grandes nações europeias assumem uma política imperialista,
expandindo seus domínios na África e na Ásia. Estas colônias eram fornecedoras
de matéria prima e mão de obra barata, aumentando, desta forma, a produção e o
lucro dos países europeus.
O Racismo
É
dentro deste contexto, de expansão do imperialismo europeu, que despontam as
primeiras teorias racialistas, justificando a superioridade intelectual, moral
e física do homem branco europeu. Um dos primeiros a defender esta superioridade
étnica foi o conde francês Joseph Arthur Gobineau (1816–1882). Literato,
diplomata e escultor, Gobineau se tornou conhecido a partir da obra “Ensaio
sobre a desigualdade das raças humanas”, que foi publicada em 1855.
O
conceito de superioridade racial foi um dos mecanismos do qual se utilizou a
política imperialista, naquele período, para legitimar a corrida expansionista
em busca de novos mercados. Estas teorias buscavam reforçar a ideia de um mundo
igualitário e fraterno entre os brancos, justificando assim a exploração de
outras etnias para um bom funcionamento da economia internacional.
No
Brasil, o negro, após a Abolição da Escravatura (1888), enfrenta uma sociedade, em transformação, onde se
depara com o preconceito, a miséria, além da invisibilidade social, engrossando
as fileiras dos excluídos e deserdados da novel República dos Estados Unidos do
Brasil.
O
novo regime e os excluídos
Implantada
pelo Exército, por meio de um golpe, em 15 de novembro de 1889, a República
trazia o lema positivista de “Ordem e Progresso”, em sua bandeira, acenando com
um novo tempo de mudanças que não coadunavam com o desgastado regime
monárquico. Acusado, pelos republicanos, de ser culpado pelo atraso econômico e
social do nosso país, o antigo regime, que vigorou por 67 anos, foi derrubado e
o imperador dom Pedro II partiu para o exílio na Europa.
Infelizmente, a mudança do regime não alterou as antigas estruturas
representadas pelo sistema patriarcal, exploratório, latifundiário e
oligárquico da nossa elite. O aumento do índice numérico de desocupados,
trabalhadores temporários, indigentes e menores abandonados pelas ruas
acarretou, entre outras coisas, o crescimento da violência, que pode ser
ratificado pelo espaço dedicado ao tema nas páginas dos periódicos da época. Ao
analisar esse período, o nosso grande escritor negro Lima Barreto
(1881-1922) declarou: “Nunca houve anos no Brasil em que os pretos (...) fossem
mais postos à margem”.
O
historiador Luiz Edmundo (1878-1961), em sua obra “O Rio de Janeiro do meu
tempo”, aborda o morro de Santo Antônio, suas moradias e vielas miseráveis,
retratando um recorte da cartografia humana do antigo Rio de Janeiro então
capital do Brasil, Segue um trecho:
“Por
elas vivem mendigos, os autênticos, quando não se vão instalar pelas
hospedarias da rua da Misericórdia, capoeiras, malandros, vagabundos de toda
sorte: mulheres sem arrimo de parentes, velhos que já não podem mais trabalhar,
crianças, enjeitados em meio a gente válida, porém o que é pior, sem ajuda de
trabalho, verdadeiros desprezados da sorte, esquecidos de Deus... (...) No
morro, os sem-trabalho surgem a cada canto”.
A
República, embora a promessa de renovação, sempre acompanhada de discursos
ufanistas, não priorizava a democratização da sociedade ou uma maior mobilidade
social. Com características oligárquicas, a República brasileira se
estabeleceu, preservando a estrutura elitista e excludente, herdada desde o
Brasil Colônia.
A
Abolição da Escravatura
Assinada
a Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, os negros libertos - desprovidos de
recursos financeiros e sem nenhum apoio - buscaram moradia em regiões precárias
e afastadas do centro urbano, a exemplo do que ocorreu no Rio de Janeiro onde
uma grande reforma urbana, em 1904, expulsou as populações pobres para os
morros, destruindo os cortiços. Surgiam as favelas...
Diante
deste contexto, com características conservadoras e excludentes, as autoridades
demostram e agem com repressão às diversas manifestações das camadas populares
e pobres, a exemplo da Capoeira, das rodas de Samba e do Candomblé. A partir do
ano de 1890, os caipoeiristas - que eram em sua maioria afrodescendentes e
pobres - são impiedosamente perseguidos pelas ruas do Rio de Janeiro.
Reforma
agrária e Instrução
Ainda
que se considerem algumas exceções, em episódios específicos, o cerne principal
da campanha abolicionista, movida pelos setores da nossa elite econômica, dos anos
1880, estava longe de ter um caráter humanitário e solidário, em relação ao
escravizado, ou de existir uma real intenção de buscar reformas sociais
democratizantes, que trouxessem benefícios ao escravizado. Isso ficou bastante
evidente, ao longo dos anos, embora um discurso contraditório de alguns setores
de classes dominantes que eram simpáticos à abolição. Neste caso, podemos
citar, por exemplo, o caso do projeto abolicionista de Joaquim Nabuco
(1849-1910). Rejeitado pela Câmara dos Deputados, em fins de 1880, o texto do
projeto trazia essa preocupação social.
O
artigo 49 dizia: “Serão estabelecidas nas cidades e vilas aulas primárias para
os escravos. Os senhores de fazendas e engenhos são obrigados a mandar ensinar
a ler, escrever, e os princípios de moralidade aos escravos”.
De
acordo com o brasilianista Robert Conrad:
“Os
abolicionistas radicais, como Nabuco, André ‘Rebouças, José do Patrocínio,
Antonio Bento, Rui Barbosa, Senador Dantas e outros esperavam que a extensão da
educação a todas as classes, a participação política em massa e uma ampliação
de oportunidades econômicas para milhões de negros e mulatos e outros setores
menos privilegiados da sociedade brasileira viessem a permitir que estes grupos
assumissem um lugar de igualdade numa nação mais homogênea e próspera”.
O
mesmo pesquisador registra, ainda, o fato de que “durante os anos
abolicionistas, a reforma agrária foi proposta frequente e urgentemente”. Isto
nos remete ao plano do engenheiro André Rebouças (1838-1898). Nele, os grandes
proprietários venderiam ou alugariam lotes de terras aos negros libertos,
imigrantes e lavradores. Trata-se de um tipo de reforma que prescinde da
democratização fundiária, restringindo-se às normas do mercado então vigentes.
Quando
a campanha abolicionista se avultou, essas propostas foram, de forma
sistemática, sendo deixadas de lado. Uma análise bastante interessante sobre
esta questão foi realizada, em 1964, pelo sociólogo Florestan Fernandes
(1920-1995). Em sua clássica obra, cujo título é “A integração do negro na
sociedade de classes”, o autor foi no cerne da questão:
“A
preocupação pelo destino do escravo se mantivera em foco enquanto se ligou a
ele o futuro da lavoura. Ela aparece nos vários projetos que visaram a regular,
legalmente, a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, desde 1823
até a assinatura da Lei Áurea.
(...)
Com a Abolição pura e simples, porém, a atenção dos senhores se volta
especialmente para seus próprios interesses. (...) A posição do negro no
sistema de trabalho e sua integração à ordem social deixam de ser matéria
política. Era fatal que isso sucedesse”.
Assim,
efetivou-se a Abolição da Escravatura com uma intervenção que se restringiu à
libertação e sem nenhuma outra medida complementar, em relação, principalmente,
à reforma agrária, à ampliação do mercado de trabalho e ao acesso à educação e
à saúde.
O
que era fundamental, naquele momento, para a nossa elite não era uma reforma
social, mas a liberação das forças produtivas dos custos de manutenção de um
enorme contingente de mão de obra confinada. A escravidão, ao encerrar o século
19, havia se tornado um entrave ao desenvolvimento econômico.
Em
30 de abril de 1887, um artigo importante foi publicado no semanário
abolicionista “Revista Illustrada” (1876-1898), argumentando que a nossa
economia, àquela altura dos acontecimentos, já não dependia de forma majoritária
do trabalho servil. O Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, localizado
em Porto Alegre (RS) guarda e preserva, em sua hemeroteca, alguns exemplares
deste periódico, cujas charges políticas de teor antiescravagista foram
desenhadas pelo importante artista italiano Ângelo Agostini (1843-1910). Segue
um trecho deste artigo:
“Pelos
dados do Ministério da Agricultura, calcula-se que a cifra dos escravizados não
chegue a 500 mil. Tirem-se as mulheres (50%), tirem-se os escravos das cidades,
que nada produzem, e ver-se-á que o que fica para auxiliar a produção nacional
é uma cifra tão irrisória, que podemos, com orgulho, afirmar, que a produção do
nosso país já é devida aos livres”.
A
campanha em prol da abolição, ao final do século 19, conseguiu atingir vários
setores da sociedade brasileira. O Brasil foi o último país das Américas a
abolir a escravidão, assim como a única monarquia num contexto de um continente
composto por países republicanos.
Dois
importantes nomes com visões diferentes
Quanto
ao rumo que deveria tomar a campanha abolicionista, o latifundiário Joaquim
Nabuco (1849-1910) assim se posicionou:
“A
escravidão não há de ser suprimida no Brasil por uma guerra servil, muito menos
por insurreições ou atentados locais. (...) A emancipação há de ser feita entre
nós por uma lei que tenha os requisitos, externos e internos, de todas as
outras. É, assim, no Parlamento, e não em fazendas ou quilombos do interior,
nem nas ruas e nas praças das cidades que se há de ganhar ou perder a causa da
liberdade”.
Em
sua visão, o escravizado não tem consciência nem voz e precisa de alguém para
defendê-lo, sendo natural que quem o faça seja um homem branco, culto e
influente. O escravizado não deveria participar das mobilizações que visassem a
mudar seu destino, sob a pena da sociedade vivenciar um cenário imprevisível.
O
jornalista José do Patrocínio (1853-1905), tido como um abolicionista radical,
não apresentava uma visão muito distinta. No entanto, defendia a ideia de que a
campanha ganhasse as ruas. Tendo como alcunha o“ Tigre da Abolição”, ele falava
em “revolução”, apontando, porém, a necessidade de uma “aliança do soberano com
o povo”, pois era simpatizante do regime monárquico. Quanto à Abolição, ele
afirmou:
“É
uma revolução de cima para baixo. O povo não teria força por si só para
realizar a abolição da escravidão”.
A
herança de 400 anos de escravidão
Após
a assinatura da Lei Áurea, pela Princesa Isabel , em 13 de maio de 1888, os
negros libertos foram abandonados à sua própria sorte, sem que efetivamente
ocorressem reformas que os integrassem numa sociedade, na qual havia mudado as
relações de produção e trabalho a partir da Revolução Industrial, liderada pela
Inglaterra. O historiador inglês Eric Hobsbawm (1917-2012) registrou em seu
livro, “A Era dos Impérios”, este importante dado:
“O
investimento estrangeiro na América Latina atingiu níveis assombrosos nos anos
1880, quando a extensão da rede ferroviária argentina foi quintuplicada, e
tanto a Argentina como o Brasil atraíram até 200 mil imigrantes por ano”.
Em
relação ao surto imigratório, a jornalista e historiadora Celia Maria Marinho
de Azevedo nos faz refletir e lembrar de que:
“A
força de atração destas propostas imigrantistas foi tão grande que, em fins do
século, a antiga preocupação com o destino dos ex-escravos e pobres livres foi
praticamente sobrepujada pelo grande debate em torno do imigrante ideal ou do
tipo racial mais adequado para purificar a ‘raça brasílica’ e engendrar por fim
a identidade nacional”.
Diante
destas inevitáveis transformações econômicas, adquirir no mercado um
escravizado foi se tornando bastante caro a partir da criação , em 1850, da Lei
Eusébio de Queirós que decretou a extinção do tráfico negreiro no Brasil.
Evidente que havia um tráfico interno, entre as províncias, com custos muito
altos, além de escravizados que entravam de forma clandestina no país, burlando
a proibição. Com o tempo, o trabalho forçado, de maior custo monetário,
mostrou-se menos rentável que o assalariado.
O
historiador Caio Prado Jr. (1907-1990), em sua obra clássica “História
econômica do Brasil”, que já se encontra em sua 43ª edição, comenta com
propriedade esta questão:
“O
escravo corresponde a um capital fixo cujo ciclo tem a duração da vida de um
indivíduo; assim sendo, (...) forma um adiantamento a longo prazo do
sobretrabalho eventual a ser produzido. O assalariado, pelo contrário, fornece
este sobretrabalho sem adiantamento ou risco algum. Nestas condições, o
capitalismo é incompatível com a escravidão”.
Na
realidade, com a Abolição da Escravatura (1888) foi concedida, juridicamente, a
liberdade ao escravizado, mas não o passaporte da cidadania plena, que,
infelizmente, até os dias atuais, mascara-se com um discurso de uma
pseudo-democracia racial. Como “pano de fundo”, na época, havia um projeto de
modernização conservadora que não alterou o sistema do latifúndio e exacerbou o
racismo como forma de discriminação.
De
acordo com o saudoso historiador gaúcho, Décio Freitas (1922-2004), houve uma
abolição inconclusa e sentimos o seu nefasto legado, cuja consequência é o alto
percentual de afrodescendentes que ainda lutam contra um sistema excludente,
visando a ocupar, de forma legítima, espaços de poder e de atuação junto à
sociedade que, tradicionalmente e de forma majoritária, são ocupados por
brancos e com uma ínfima participação de afrodescendentes, como nos demostram
os dados estatísticos do IBGE.
*Pesquisador e Coordenador do Setor de Imprensa do Musecom
Segue a Bibliografia:
CONRAD,
Roberto. Os últimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1975.
FLORES,
Moacyr (Org). Cultura Afro-brasileira. Cultura Afro-brasileira. Porto Alegre:
Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1980.
FRANCO,
Sérgio da Costa. Ensaios de História Política. Porto Alegre : Editora Pradense,
2013.
FREITAS,
Décio. Brasil Inconcluso. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia, 1986.
MOURA,
Clóvis. Rebeliões da Senzala. Porto Alegre: Mercado Aberto,1988.
PESAVENTO,
Sandra Jatahy. De escravo a liberto um difícil caminho. Porto Alegre: CODEC /
Instituto Estadual do Livro (IEL), 1988.
PINSKY,
Jaime. Escravidão no Brasil. São Paulo. Global, 1972.
SCHWARCZ,
Lília Moritz. Retrato em Preto e Branco. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
Site:
acessado em 29 de abril de 2017. Artigo: "O destino dos negros após a
abolição" de Gilberto Maringoni.
http://www.ipea.gov.br/desafios/index.ph.Imagens:
1)
Alegoria sobre a Escravidão
2
Morro ocupado por negros libertos
3)
Capoeira
4)
André Rebolças (1838-1898).
5) Joaquim
Nabuco (1849-1910)
6) José
do Patrocínio (1853-1905)
7)
Princesa Isabel (1846-1921)
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