sábado, 24 de junho de 2017

KARL MARX, QUEM DIRIA, JÁ PODE VOLTAR



Desigualdade brutal e ataque aos direitos sociais levam até os liberais ilustrados a reconhecer certas teses do filósofo. Mas como atualizá-las, para transformar o mundo de hoje?

Vicenç Navarro | Outras Palavras | Tradução: Inês Castilho

Uma das colunas mais conhecidas da revista semanal The Economist, a Bagehot (que tem como responsável Adrian Wooldridge) publicou, na edição de 13 de maio, um artigo que seria impensável encontrar nas páginas de qualquer revista econômica de orientação igualmente liberal, na Espanha [ou no Brasil].

Sob o título “O momento marxista” e o subtítulo “Os trabalhistas têm razão: Karl Marx tem muito a ensinar aos políticos de hoje”, Bagehot analisa o debate entre o dirigente do Partido Trabalhista do Reino Unido, Jeremy Corbyn, e seu ministro sombra da Economia e Fazenda, o John McDonnell, por um lado, e os dirigentes do Partido Conservador e os jornais conservadores Daily Telegraph e Daily Mail, por outro. Definir esse diálogo como debate é, sem dúvida, excessivamente generoso por parte da coluna Bagehot, pois a resposta dos jornais conservadores e dos dirigentes conservadores aos dirigentes trabalhistas é uma demonização tosca, grosseira e ignorante de Marx e do marxismo, confundindo marxismo com stalinismo, coisa que também acontece constantemente nos maiores meios de comunicação, em sua maioria de orientação conservadora ou neoliberal.

Uma vez descartados os argumentos da direita britânica, a coluna Bagehot passa a discutir o que considera as grandes profecias de Karl Marx (assim as define), para entender o que está acontecendo hoje no mundo capitalista desenvolvido. Conclui que muitas das previsões do velho economista resultaram corretas. Entre elas destaca que:

1. A classe capitalista (que a coluna Bagehot insiste que continua a existir, ainda que não use esse termo para defini-la), a dos proprietários e gestores do grande capital produtivo, está sendo substituída – como anunciou Marx – cada vez mais pelos proprietários e gestores do capital especulativo e financeiro, que Marx (e a coluna Bagehot) consideram parasitários da riqueza criada pelo capital produtivo. Essa classe parasitária é a que, segundo a coluna, domina o mundo do capital, sendo tal situação a maior responsável pelo “abusivo” e “escandaloso” (termo utilizado por Bagehot) crescimento das desigualdades.

Os capitalistas conseguiram cada vez mais benefícios, à custa de todos os demais. Para demonstrá-lo, o colunista do The Economist assinala que, enquanto em 1980 os executivos-chefes das cem mais importantes empresas britânicas tinham rendimento 25 vezes maior que o do empregado típico de suas empresas, hoje, ganham 130 vezes mais. As equipes dirigentes dessas corporações inflaram sua remuneração às custas de seus empregados, ao receber das empresas pagamentos (além do salário) por meio de ações, aposentadorias especiais e outros privilégios e benefícios. Mais uma vez, Bagehot ressalta que Marx havia previsto o que ocorreu. E mais: a coluna descarta o argumento segundo o qul essas remunerações devam-se às exigências do mercado de talentos, pois a maioria desses salários escandalosos dos executivos foi atribuída por eles mesmos, através de seus contatos nos Comitês Executivos das empresas.

2. Marx e Bagehot questionam a legitimidade dos Estados, instrumentalizados pelos poderes financeiros e econômicos. As evidências acumuladas mostram que o casamento do poder econômico com o poder político caracterizou a natureza dos Estados. A coluna Bagehot faz referência, por exemplo, ao caso de Tony Blair, que de dirigente do Partido Trabalhista britânico, passou a ser assessor de entidades financeiras e de governos indignos. Em qualquer outro país, poderíamos incluir uma longa lista de ex-políticos que hoje trabalham para as grandes empresas, colocando a seu serviço todo o conhecimento e contatos adquiridos no exercício do seu cargo político.

3. Outra característica do capitalismo prevista por Marx – segundo a coluna Bagehot – é a crescente monopolização do capital, tanto produtivo como especulativo, que está ocorrendo nos países capitalistas mais desenvolvidos. Bagehot aponta como essa monopolização foi ocorrendo.

4. E, como se não bastasse, Bagehot assinala que Marx também tinha razão quando observou que o capitalismo cria pobreza por si só, através da redução salarial. Na realidade, Bagehot esclarece que Marx falava de “pauperização”, que é – segundo o colunista – um termo exagerado mas correto na essência, pois os salários foram baixando desde que a atual crise teve início, em 2008, de tal maneira que, no ritmo atual, a tão proclamada “recuperação” econômica não permitirá que se alcancem, por muitos anos, os níveis de emprego e de salário anteriores à Grande Recessão. Além dessas grandes previsões, a coluna Bagehot ainda afirma que a crise atual não pode ser entendida, como observou Marx, sem compreender as mudanças dentro do capital, por um lado, e o crescimento da exploração da classe trabalhadora, por outro,

Pode o leitor imaginar algum grande jornal espanhol [ou brasileiro], seja de economia ou não, que permita a publicação de um artigo como esse? The Economist é o semanário liberal mais importante do mundo. Promove constantemente essa ideologia. Mas alguns de seus principais colunistas são capazes de aceitar que, depois de tudo, Marx, o maior crítico do capitalismo, tinha muita razão. Seria, repito, impensável que, em outros países, qualquer grande jornal publicasse tal artigo, com o tom e a análise que tornam a coluna uma das maiores da revista, assinada por um dos liberais mais ativos e conhecidos. A coluna e seu responsável não se converteram ao marxismo, com certeza. Mas reconhecem que o marxismo é uma ferramenta essencial para entender a crise atual. Na realidade, não são os primeiros que o fizeram. Outros economistas reconheceram essa verdade ainda que, em geral, não se enquadrem na sensibilidade liberal. Paul Krugman, um dos economias keynesianos mais conhecidos hoje, disse recentemente que o economista que melhor havia previsto e analisado as crises cíclicas do capitalismo, como a atual, havia sido Michal Kalecki, que pertenceu à tradição marxista.

Onde a coluna Bagehot se engana, por certo, é no final do artigo, quando atribui a Marx políticas levadas a cabo por alguns de seus seguidores. Confundindo marxismo com leninismo, a coluna conclui que a resposta histórica e a solução que Marx propõe seriam um desastre. O fato de o leninismo ter uma base no marxismo não quer dizer que todo marxismo tenha sido leninista, erro frequentemente cometido por autores pouco familiarizados com a literatura científica dessa tradição. Na verdade, Marx deixou para o final o terceiro volume de O Capital, que deveria dedicar-se precisamente na análise do Estado. Por desgraça, nunca pude iniciá-lo. Mas o que ele escreveu sobre a natureza do capitalismo foi bastante acertado, de modo que não se pode entender a crise sem recorrer a suas categorias analíticas. A evidência disso é claramente contundente, e o grande interesse que surgiu no mundo acadêmico e intelectual anglo-saxão, sobretudo nos EUA e no Reino Unido (onde The Economist é publicado) é um indicador disso. Mas temo que o que está ocorrendo la não se repetirá neste país, onde os maiores meios de informação são predominantemente de desinformação e persuasão.

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