Miguel
Guedes | Jornal de Notícias | opinião
Hoje
é o dia em que saímos do luto nacional com tudo por resolver. Findos que estão
os três dias institucionais de dor, não há nada que tenha ficado diferente. Nem
podia. Numa dor destas, o silêncio é das poucas companhias recomendáveis pela
forma como nos propicia um tempo que seja. À distância de um oceano do país, a
comoção sofre um verdadeiro bloqueio e embarga-se pelo choque. Vejo o país nas
notícias por uma alegoria de inferno e somam-se os especialistas internacionais
a explicar, à boleia da catástrofe, o que é isso do "dry lightning"
ou trovoada seca. Pausa. Não há decreto que nos enterre o coração na areia
quando a cabeça não pára para pensar. Não pode haver soluções enquanto o fogo
caminha a passos de gigante, parecendo que voa. A luta começa agora.
A
rendição absoluta de gratidão aos bombeiros que lutam e aos civis que ajudam.
Isso e a pouca comiseração para quem tenta encontrar culpados em tempo de
inferno. É impressionante a fogueira de vaidades e pouco tento que impele
certas pessoas a abrir fracturas em tempo de terramoto. Para esses agentes
sumários da punição, mais velozes do que o próprio vento que dá asas ao fogo a
encontrar bodes expiatórios, não se limpam armas em tempo de guerra. E atacam,
mesmo quando na paz podre de todos os invernos nunca os vi a deixar de dar
beijinhos no dói-dói. À semelhança de quem tenta fazer notícia ao lado de um
corpo carbonizado, aqueles que tentam encontrar culpados entre o sofrimento
apenas descem mais um degrau do palco para onde imaginam estar a subir.
Pedrógão
terá que ser o nosso público "ground zero". Nunca conseguimos
trabalhar a propriedade privada da floresta que acaba por nos ser comum em
catástrofe, nunca deixámos de ceder aos interesses e ao facilitismo. Sempre
soubemos que a natureza não nos dá apenas pores-do-sol de excelência e nasceres
do dia radiosos. A força natural da humanidade, de resto, não é impedir o seu
curso. Compete-nos criar as estratégias para a acomodar e antecipar na
violência perante um conjunto disperso de propriedades avulso sem investimento
e sem o mínimo de zelo, desertificação populacional num agregado de restos de
país votados ao abandono. Sempre olhámos para a floresta numa visão-túnel onde
lá ao longe se vislumbra uma saída clara. Mas quando lá chegamos, pela
proximidade do simples andar da carruagem, só vemos que arde. E assim vamos,
todos os anos, em típicos lamentos que ninguém leva a sério. Acredito que até
agora.
No
momento em que escrevo, contam-se 64 mortos e centenas de pessoas que morreram
por dentro e por tempo indefinido. Milhões de pessoas impossibilitadas de sair
do luto. "Is dry lightning on the horizon line/ Just dry lightning and you
on my mind", escrevia Springsteen. Para eles, o nosso pensamento. O
coração diz coragem.
O
autor escreve segundo a antiga ortografia
*
Músico e advogado
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