Sem
“euforias” e a encarar os direitos dos trabalhadores em Portugal como uma
prioridade, Carvalho da Silva tece elogios ao Governo à Esquerda e deixa alguns
alertas. Além dos “ pequenos sinais positivos”, o “fundamental está por fazer”,
afirma.
Goreti
Pera | Notícias ao Minuto
Depois
de 25 anos à frente da CGTP, Manuel Carvalho da Silva mantém-se a acompanhar de
perto o que de mais significativo acontece no mundo do trabalho e proteção
social. Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o investigador no Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra fez uma retrospetiva do movimento
sindical em Portugal e teceu elogios à atual solução governativa.
Mas
é “preciso que não haja euforias”, alertou, manifestando a convicção de que “o
fundamental está por fazer” e é preciso continuar a “pedalar na bicicleta”.
As
pessoas viram-no durante 25 anos à frente da CGTP. Por onde anda agora Carvalho
da Silva?
A
minha atividade fundamental é no polo de Lisboa do Centro de Estudos Sociais
(CES) da Universidade de Coimbra, que integrei em 2009 e onde sou investigador.
Coordeno o Observatório sobre Crises e Alternativas, que analisa as políticas
na área do trabalho, emprego, segurança social e proteção social. Este ano
letivo, pus termo a um contrato com a Universidade Lusófona, onde fui professor
catedrático. De resto, escrevo, participo em conferências e sou membro do
conselho geral da Universidade do Minho.
Como
é que olha para a central sindical dos dias de hoje e que diferenças aponta em
relação ao tempo em que a liderou?
O
projeto mantém-se do ponto de vista dos objetivos e grandes traços de
intervenção. A diferença está essencialmente nos tempos e nas caraterísticas da
atualidade: as tensões sobre o emprego, o problema dos salários, horários e
condições de prestação de trabalho. O movimento sindical está num período de
grande esforço para tentar recuperar perdas que foram impostas aos
trabalhadores em nome da inevitabilidade da austeridade. O mundo do trabalho é
muito marcado por um individualismo exacerbado – as pessoas pensam que o
individual e o coletivo são opostos – e o movimento sindical é vítima da
conceção de que pode haver direitos individuais sem haver direitos coletivos,
quando os direitos coletivos são a âncora dos direitos individuais.
Admite
que estamos num período de recuperação de direitos por parte dos trabalhadores.
Quais foram os anos de maiores conquistas?
O
processo de conquista e estabilização dos direitos do trabalho é muito longo e
tem altos e baixos ao longo de dois séculos. O período que atualmente se vive é
de reformulação e recuperação. Portugal teve, a seguir ao 25 de Abril, um
período de conquista extraordinário, mas algumas conquistas já vinham de antes
da Revolução dos Cravos. O movimento sindical português tem muitas
características que resultaram de uma mudança profunda no mundo do trabalho que
se operou no final dos anos 60 e início dos anos 70. O período entre 1966/7 e
1974 foi de ofensiva, criou-se uma base que, aproveitando depois a democracia,
deu todo o impulso fortíssimo pós-25 de Abril. Foi extraordinário, os
trabalhadores estavam credores de tudo. Antes disso, não havia salário mínimo,
não havia férias, não havia proteção na doença para todos, não havia proteção
na maternidade, a Segurança Social estava em início de processo.
Nos
anos 80 e início dos anos 90 houve uma fase de tensão grave em relação à
legislação laboral. Tal levou a que o movimento sindical unisse forças e
projetasse uma década boa: a década de 90, em que houve a consagração das 40
horas como horário máximo de trabalho semanal. Esse é um período áureo que vem
até 2000/2001. A partir de 2003, com o surgimento do código do trabalho e a
revisão da legislação laboral, houve um processo de quebras significativas,
muito agravadas depois pelo período de 2011-2015. Aí houve uma perda monumental
que se refletiu na destruição do PIB. Espero que os próximos anos sejam de
recuperação e reposição de equilíbrios.
Veem-se
poucas caras novas na liderança das centrais sindicais. Uma liderança tão longa
traz mais vantagens ou desvantagens? No seu tempo, sentia que já fazia falta
uma renovação de ideias?
Eu
fui para a coordenação da central sindical quando tinha 37 anos e saí em
janeiro de 2012. A minha intenção pessoal era ter saído oito anos mais cedo,
não o fiz por pressões diversas. Não há um limite pré-definido. Penso, contudo,
que é bom o rejuvenescimento e reformulação de equipas. É bom que se vá
mudando. Acho que a central encontrará os caminhos mais adequados para
responder às necessidades. Com o movimento sindical eu tenho uma profunda
identidade – costumo dizer que serei sindicalista do ponto de vista conceptual
até morrer –, mas retirei-me mesmo. No dia em que deixei de exercer a função
[de secretário-geral da CGTP], para mim o sindicalista ativo terminou ali e
ponto final. Não tenho de interferir.
Soube-se
em 2013 que se havia desvinculado do PCP. O que é que o levou a tomar esta
decisão?
O
meu afastamento formal do partido não pode ser desligado de um distanciamento
em relação a alguns aspetos. Tive uma militância extraordinariamente rica
enquanto estive no Partido Comunista, sempre como sindicalista e não com cargos
políticos. Só sinto gratidão por esses ensinamentos e partilhas, pela
extraordinária escola que foi a militância. Mas tive, em vários momentos,
posições à margem do que eram os posicionamentos do partido. A minha
desvinculação formal (deixar de participar em reuniões, etc.) foi acontecendo
progressivamente, não há uma data fixa. Deixei de ser militante bem antes de
2013, mas não tem interesse nenhum dizer quando foi. Desde então, mantive
sempre contactos e relações de amizade.
Sente
que o Partido Comunista está a descaracterizar-se com a associação ao Partido
Socialista?
Não
há uma associação, há um apoio parlamentar a um governo. O Partido Comunista
fez muito bem e até agora, no fundamental, o que me parece é que tem conduzido
bem este compromisso com vantagens para o povo português. Aquilo que há de novo
e mais significativo em Portugal é uma solução política que, contra muitos
vaticínios, se está a afirmar como positiva para o país. Para mim, este devia
ser caminho, foi para isso que lutei. Levei muita ‘porrada’ por andar em muitos
combates a defender a aproximação das forças de Esquerda. Tinha a esperança de
que isto acontecesse. Só há que aplaudir aqueles que deram sustentação a esta
solução política.
Mas
não tenho ilusões e é preciso que não haja euforias. O fundamental está por
fazer. Até agora o que foi feito dá pequenos sinais positivos, mas uma grande
parte das famílias portuguesas continua a viver com grandes problemas, há um
desafio enorme que é estancar a emigração e atrair as pessoas para o seu país.
Se mantivermos salários baixos, desatenção às carreiras e qualificações dos
jovens e esta precariedade toda, não há atração para as jovens gerações e o
país pode viver uma euforia momentânea e ir tudo abaixo.
A
saída de Portugal do procedimento por défice excessivo prova que havia
alternativa à austeridade implementada pelo anterior governo?
Há
alternativas à austeridade e toda a gente sabe que há. A afirmação de que não
há alternativas à austeridade é uma mentira construída para subjugar. É
possível ir por outros caminhos, havendo rigor na gestão das empresas, do
Estado e da vida das pessoas. Nós não devemos buscar o sacrifício, mas a
felicidade. É perfeitamente possível, com a riqueza que existe, com uma melhor
distribuição e utilizando as nossas capacidades, não nos subjugarmos à lógica
da austeridade.
Devemos
falar em boas notícias com alguma cautela ou o pior já passou?
Há
alguns dias, um amigo meu [o professor Licínio Lima, professor na Universidade
do Minho] usava uma metáfora para dizer que a democracia é como uma bicicleta,
tem os diversos componentes mas, para se equilibrar, tem de estar em movimento.
É bom que os portugueses recusem a ideia ‘Acabou-se a austeridade e agora
estamos à vontade’. É preciso uma responsabilidade permanente, vivida em
condições justas que permitam que as pessoas tenham uma vida minimamente feliz.
São positivos os sinais da economia, mas não abrandemos, não deixemos de
pedalar na bicicleta.
O
braço de ferro entre PCP e Bloco de Esquerda é um equilíbrio de forças
necessário para levar a Geringonça a bom porto?
Na
luta política há confrontos de posições. PCP e Bloco de Esquerda são forças
políticas que se afirmam e é provável e até bom que existam conflitos entre
elas, isso não tem nada de mal. Quando estudei organização do trabalho com
alemães aprendi que no trabalho há sempre conflito, o que é preciso é preparar
as pessoas para saberem gerir o conflito. Em Portugal fala-se de conflito como
se fosse algo estranho à sociedade. Em política, o conflito é absolutamente
indispensável.
"A
meio da legislatura, os governantes tendem a empurrar com a barriga"
Carvalho
da Silva é o entrevistado desta terça-feira do Vozes ao Minuto. Acompanhe a
segunda parte da entrevista ao ex-líder da CGTP.
Quase
duas semanas após uma paralisação na Função Pública e perto do meio da atual
legislatura, é “saudável que haja haja acutilância” e “pressão” sobre o
Executivo. A convicção é de Manuel Carvalho da Silva.
O
antigo líder da CGTP dá como certo que “a meio da legislatura, os governantes
tendem a empurrar com a barriga” e diz ser fundamental uma reforma estrutural
da legislação do trabalho e, a prazo, a redução de horários.
“Não
estamos muito longe de o número seis ser o número mágico nos horários de
trabalho”, vaticinou, numa entrevista concedida do Notícias ao Minuto.
Mais
de um ano depois de o Executivo ter tomado posse, surgiram as primeiras grandes
greves e os sinais de descontentamento...
O
que aconteceu é que houve pequenos passos corajosos e positivos. Esses passos
foram dados em relação aos trabalhadores e em relação às empresas. Isso
favoreceu o clima e, portanto, não se andou a montar fatores de luta só pela
luta.
O
clima de romance entre o Governo e os sindicatos está a chegar ao fim?
Há
muito tempo que digo que respostas pontuais não chegam e que têm de ser
conjugadas com medidas estratégicas, acima de tudo no que respeita àquilo que
foram medidas de exceção. A retoma da normalidade é imperiosa sob pena de as
pressões se começarem a expressar fortemente e a estoirar.
Além
disso, há uma coisa que a ciência política nos ensina: a meio da legislatura,
se não houver uma dinâmica forte de exigência de cumprimento do que foi
prometido, a tendência natural dos governantes é para empurrarem com a barriga
e não resolverem o que se comprometeram a resolver. E nós estamos a
aproximar-nos do meio da legislatura.
Será
muito saudável para o país que, no plano laboral e no plano social mais amplo,
haja acutilância por parte dos atores. Estamos numa fase decisiva e é
importante que seja feita maior pressão para que a segunda parte da legislatura
seja a continuação de resposta a problemas e não um arrastar feito de
taticismos eleitorais.
O
Governo tem-se mostrado intransigente no que toca à possibilidade de rever a
legislação laboral pelo menos até 2018. Considera que há mudanças que deviam
ser feitas?
Há
um calendário que o Governo tem de gerir com habilidade política, mas nós
precisamos mesmo de uma dinamização dos compromissos coletivos. O Executivo não
pode permitir que possa haver caducidade unilateral dos contratos coletivos de
trabalho e tem de criar mecanismos que levem a uma efetivação da negociação
coletiva.
Nós
olhamos para os salários dos mais jovens e percebemos que se está a fixar um
patamar de remuneração muito baixo, com uma tendência para o salário mínimo se
tornar o salário nacional. Isto não pode acontecer. O salário mínimo tem de ser
valorizado e atualizado, mas tem de ser complementado com uma política salarial
dinâmica. Portanto, a negociação coletiva tem de existir e há muito caminho por
onde encontrar saídas.
O
Governo tem de responder a isto e a muitas outras coisas, como a situação dos
trabalhadores da administração pública e dos reformados. Tem de deixar
compromissos claros de que exceção não se vai tornar normalidade – esta
legislatura é decisiva quanto a isso –, senão o patamar de desenvolvimento da
sociedade desce.
Há
quase um ano que o regime das 35 horas de trabalho semanal na Função Pública
foi reposto, mas deixou de fora os funcionários com contrato individual de
trabalho. É aceitável esta exceção?
Não.
Toda a gente que trabalha na administração pública deve ter o mesmo horário.
Pode ser que agora, com o tratamento da precariedade, algumas correções venham
por aí. Mas não vai chegar e vão ser precisas medidas de reposição da
igualdade. Julgo que é possível perspetivar-se um contributo positivo dos
pronunciamentos dos tribunais.
E
pode falar-se em igualdade quando trabalhadores do setor público trabalham 35
horas por semana e trabalhadores do setor privado trabalham 40 horas semanais?
Não,
todos deviam trabalhar 35 horas ou até menos. Thomas More dizia em 1516, na
obra ‘Utopia’, que se todos trabalhassem bastava que trabalhássemos seis horas
por dia [ou seja, 30 horas por semana]. As reduções dos horários de trabalho
vão-se impor nas sociedades como uma inevitabilidade. Estou convencido de que,
ainda que a umas décadas de distância, não estamos muito longe de o número seis
ser o número mágico nos horário de trabalho, como foi o número oito.
Hoje,
com o mesmo tempo de trabalho, produz-se muito mais: há mais meios tecnológicos
e científicos, mais capacitação nos instrumentos de trabalho, melhor
possibilidade de distribuição do trabalho e universalizou-se o conceito de
trabalho com que lidamos. É possível em 30 horas de trabalho produzir muito
mais riqueza do que se produzia há 50 anos com 40 horas. Só que essa é a
batalha maior. Para nós chegarmos às 40 horas fizemos uma caminhada de um
século.
A
idade da reforma volta a aumentar no próximo ano e está já nos 66 anos e quatro
meses. Considera aceitável que um trabalhador exerça funções com esta idade?
Não
tenho a opinião de que a idade da reforma possa estabelecer-se num patamar
muito mais baixo do que está estabelecido. Se há aumento da esperança média de
vida, é necessário encontrar forma de as pessoas terem uma reforma
significativa com uma vida digna, mas não criemos a ilusão de que é possível
reduzir a idade da reforma. Ela tem tendência a manter-se ou até aumentar.
Porém, há que discutir algumas coisas que estão por fazer, com por exemplo a
adaptação de horários a pessoas a quem a idade traz limitações para desempenharem
o seu trabalho sem sacrifício.
A
CGTP não subscreveu o acordo que resultou no aumento do salário mínimo e
é criticada por raramente assinar acordos. ‘Ser do contra’ já está no
ADN da CGTP?
O
fundamental é que cada parceiro entre no processo de forma construtiva.
A CGTP tem uma história de participação construtiva: nunca se recusou a
negociar, não há nenhum processo que tenha dado origem a acordos em que a CGTP
não apresentado propostas. O ato de assinatura é outra questão, tem a ver com um
processo muito complexo de como funciona em Portugal o sistema de concertação
social. A CGTP sempre disse e continua a dizer que não se pode falar em
concertação social quando não há negociação coletiva, porque esta é um
instrumento base na negociação.
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