Martinho Júnior | Luanda
Aproxima-se
a data do lançamento do terceiro livro em que comparticipo, desta feita com
Leopoldo Baio, que foi o Director do desaparecido semanário “ACTUAL”.
O
livro “Angola – Séculos de solidão – do colonialismo à democracia –
cronologia histórica baseada numa pesquisa analítica” vai ser lançado em
Angola pela Editora LeArtes, com uma tiragem de 1000 exemplares, com produção
duma gráfica de Luanda e em resultado de alguns financiamentos locais.
Foi
graças ao esforço e à tenacidade de Leopoldo Baio que o livro dá à estampa.
O
livro enquadra-se, em época eleitoral, na necessidade de reforçar as linhas
progressistas do MPLA, tendo em conta muitas lições que nos acodem não só do
seu passado de luta, mas também e inclusive da contemporaneidade.
Das
mais terríveis experiências vividas, no presente cabe aos patriotas
progressistas angolanos recolher as lições, de modo a que a independência, a
soberania, a paz e a democracia tão duramente alcançadas sejam não só
defendidas, mas também que com inteligência se vão abrindo os caminhos de
futuro com a dignidade que o povo angolano, todos s povos africanos e a
humanidade merecem.
Mantenho
a necessidade de se seguir a trilha que advém do Movimento de Libertação em
África, integrando uma lógica com sentido de vida capaz de lutar contra o
subdesenvolvimento crónico que é um dos resultados antropológicos e históricos
da longa treva colonial e isso só será possível em paz e mobilizando a
inteligência, a juventude, as universidades e todos aqueles patriotas que podem
dar suas contribuições nos termos duma geoestratégia de desenvolvimento
sustentável que poderá ser um caminho para os próximos séculos, revertendo duma
vez por todas os “séculos de solidão”.
Assim
vou destacar, antes de sua apresentação, alguns dos trechos que compõem o
livro!
MERCENÁRIOS
NAS “TERRAS PROIBIDAS” DE ANGOLA
“A
este Tribunal, evidentemente, que o que interessa é o crime de mercenarismo
praticado por estes réus.
Mas
os réus quiseram cumprir o seu código de mercenários: Estabeleceram uma táctica
e uma estratégia para depor. Cada um à sua maneira e em relação ao grupo, em
relação ao bando. Tentaram a todo o transe criar o mito Callan neste Tribunal.
A criação desse mito falhou redondamente. É um pseudo–herói destroçado que não
serve para ser personagem dos livros de Latérguy. Perderam!
Não
podemos deixar de salientar a paródia que os réus utilizaram para sua defesa.
Desde os doentes mentais que, entretanto, nos Estados Unidos desempenharam
funções de segurança de armas nucleares num porta aviões e foram orientadores
de campanhas contra a droga e que agora aqui se nos apareciam com a veste de
doentes mentais”.
(
… )
“Mas
os réus erraram a sua táctica e a sua estratégia. Menosprezaram o crime
principal que vinha referido no instrumento de acusação e que é precisamente o
mercenarismo”.
Estas
palavras foram extraídas da acusação do Procurador no Tribunal que julgou os
mercenários, que haviam sido capturados pelas tropas governamentais angolanas
em 1975 e 1976 e ditavam naquela época, o repúdio que tal tipo de guerreiros e
organizações que lhes davam sustentáculo, mereciam.
A
Independência de Angola, pode ter servido para muitas controvérsias e repasto
de muitas interpretações políticas no quadro da Guerra Fria e ainda hoje, mas o
emprego de mercenários, acabou por merecer de parte da opinião pública
internacional, ao longo dos anos, condenações unânimes de tal ordem, que a
actividade do mercenarismo em África, durante as últimas décadas, ficaria
reduzida a espaços crónicos onde a sua cobertura era antecipadamente garantida,
como no então Zaire, na então Rodésia, ou ainda com o então regime do “apartheid” pelo
menos desde a “Operação Savanah” e só despontou de novo precisamente
com a globalização.
A
Organização de Unidade Africana, perante as conjunturas de meados da década de
setenta, decidiu com base no exemplo angolano, estabelecer uma Convenção sobre
a eliminação de mercenários em África:
“Nós,
Chefes de Estado e de Governo membros da OUA, considerando a grave ameaça que
as actividades dos mercenários representam para a independência, a soberania, a
integridade territorial e o desenvolvimento harmonioso dos estados membros da
OUA;
Preocupados
com a ameaça que representam as actividades dos mercenários para o exercício
legítimo do direito dos povos africanos vivendo sob o jugo da dominação
colonial e racista, à sua independência e liberdade;
Convencidos
que uma solidariedade e uma cooperação total entre os estados membros são
indispensáveis para meter fim às actividades subversivas dos mercenários em
África;
Considerando
que as Resoluções das Nações Unidas e da OUA, as declarações de princípio e a
prática dum grande número de estados são indicadores do desenvolvimento de
novas regras do direito internacional, tendendo a caracterizar o mercenarismo
como um crime internacional;
Determinados
a tomar todas as medidas necessárias para eliminar do continente africano a
perigo que representam os mercenários;
Adoptamos
as disposições seguintes”
A “Comissão
dos Direitos do Homem” das Nações Unidas, a 27 de Janeiro de 1998,
elaborou um Relatório“sobre a questão de utilização de mercenários como meio de
violar os Direitos do Homem e de impedir os direitos dos povos a dispor deles
mesmos”, conhecido por “Relatório Ballesteros”, conforme à Resolução
1995/5 e à decisão 1997/120 da “Comissão dos Direitos do Homem”, em que a
situação global e em África, sobre a utilização de “PMC” e de
mercenários, era passada em revista.
Relativamente
aos aspectos gerais que caracterizam o mercenarismo em África no final do
século XX, o Relatório sintetizava:
“24.
Em razão de circunstâncias complexas referentes à situação política e social
agitada que conhecem vários Estados em África, mas também com o objectivo de
tirar proveito dos importantes recursos naturais e fontes de energia desse
continente, é África o continente que mais sofre com a presença de mercenários,
os quais se imiscuem nos assuntos internos dos estados, entravando assim o
direito dos povos a disporem de si mesmos. O perigo de intervenção de forças
mercenárias, que tiram partido dos conflitos armados, das confrontações inter
étnicas e das lutas pelo poder, tornou-se numa constante, que se tornou
contestada na maior parte dos casos, quando a violência se tornou num atentado
ao direito dos povos africanos de viver em paz, em segurança e em plena
actividade política.
25.
Os modos correntes de recrutamento dos mercenários, que consistem em engajar
directamente os mercenários, fazendo apelo a um agente que é geralmente ele
mesmo um antigo mercenário, ou a um gabinete de recrutamento que opera num
terceiro país, juntam-se depois de alguns anos, Empresas privadas de
Consultoria, de Instrução Militar e de Segurança. Essas Sociedades
apresentam-se de forma mais moderna, eficaz e os seus actos apresentam toda a
aparência de legalidade, mas no fundo elas trabalham com os mercenários e
representam um perigo para a economia, a democracia e a auto determinação dos
povos.
26.
As investigações que o Inspector Especial encarregue de analisar a situação e
de propor soluções originais para pôr fim às actividades de mercenários reuniu
após 10 anos, permitem-lhe sublinhar que se pode tornar num fenómeno
capaz de se produzir num qualquer país, qualquer que seja o continente , sendo
África o terreno de acção privilegiado. Nos anos 70, isso devia-se aos
vestígios de colonialismo e à evidente hostilidade dos que pensavam que o
acesso à independência e à criação de estados africanos soberanos, ameaçavam os
seus interesses.
27.
Ao longo dos anos 80 e 90, entretanto, houve agressões de forças mercenárias,
que permitiram dar uma nova definição ao fenómeno, que é preciso ter em conta
para reforçar a paz em África e se pré munir contra os mercenários.”
Para
os Angolanos, em 1975 e 1976, para lá das conjunturas típicas da Guerra Fria, a
neutralização dos mercenários em Angola, foi um fenómeno que expressava o
nacionalismo emergente que norteava ideologicamente as elites de então e se
assumia por inteiro nos primeiros anos de Angola, apesar de tudo,
orgulhosamente independente.
A “neutralização” das
correntes do movimento de libertação a partir de 1985, por alturas da
neutralização, pela via da manipulação, dos instrumentos do poder de estado
angolano a começar pela sua Segurança, estaria na raiz das condições que
possibilitaram o ressurgimento do mercenarismo em Angola, só possível numa
conjuntura típica do final da Guerra Fria e início da globalização, que
comportou a ascensão de correntes directamente estimuladas pela aristocracia
financeira mundial, através dos poderosos “lobbies” sob sua tutela
(particularmente aqueles implicados na exploração de minerais) e no quadro de
políticas que tiravam partido do emaranhado de interesses privados, com
aparentes interesses de estado à mistura, com a utilização das potências mais
desenvolvidas, principalmente a emergente potência hegemónica, decompondo de
facto a democracia representativa, como se a democracia fosse um multi facetado
diamante que “naturalmente” decompõe em múltiplos arco íris a própria
luz.
Por
ironia desse destino do diamante, um destino provavelmente tão eterno como o do
carbono puro, foi a“Nação Arco Íris” que melhor se esmerou em África, com
a criação dos sucedâneos do “apartheid”, confundindo “PMCs” com
o mercenarismo mais vulgar, até por que o recrutamento foi realizado, em grande
parte, nas mesmas origens: o Batalhão Búfalo.
A
crise angolana post eleitoral, surgiu pois numa conjuntura em que o fenómeno do
mercenarismo tinha todas as possibilidades de voltar a emergir: foram
precisamente os regimes que garantiam em África os interesses dos grandes “lobbies” dos
minerais e do cartel dos diamantes, como os de Mobutu, de Ian Smith, ou de
Botha, que deixando de existir, passaram tal tipo de “encargos” para
aqueles que se lhes seguiram em “novas” conjunturas, incluindo muitas
multi nacionais mineiras, elas próprias tirando proveitos directos e indirectos
das contradições, antagonismos e dos sucessivos conflitos de que foram
inusitadamente parte integrante, apesar da “independência” dos
estados africanos e do “lapidado arco íris”da tão propagandeada África
do Sul Democrática.
Os
fenómenos desencadeados com o processo de globalização, foram-se à panela de
pressão africana, retiraram as tampas do “apartheid” e da “autenticité” e
o conteúdo dessa panela de pressão veio, a quente, inevitavelmente à
superfície, contribuindo “a ferver”, para o fermento das acções de
manipulação.
Isso
espelha bem, quanto é falível o quadro propiciado pelas democracias
representativas, por mais aparentemente poderosas que elas sejam, ao
enfraquecerem, inibirem, ou subverterem muitas vezes, actividades que, ao invés
de só serem levadas a cabo através de políticas concertadas de estados e usando
exclusivamente os seus próprios instrumentos de poder e de intervenção, passam
a ser desenvolvidas por“Companhias”, de ética duvidosa, mas de indubitável
sinal: o sinal da velha aristocracia que tutela a própria globalização e corrói
o tecido político internacional, misturando ainda nesse aspecto, os interesses
dos estados, com os interesses privados, com a arrogância duma extrema-direita.
A “nova” elite
angolana, quando se reacendeu a guerra depois das eleições, tinha perdido as
FAPLA por força dos mal parados Acordos de Bicesse e de Lusaka, o que não podia
deixar de ter sido deliberado, propositado e as FAA, em embrião, estavam
incapazes de por si, dar resposta à máquina de guerra de Savimbi, explorando os
interesses do cartel de diamantes.
Savimbi
contudo não fez uma avaliação correcta das correlações de forças entre os “lobbies”,
particularmente no seu relativo peso específico contraditório nos Estados
Unidos, apesar dos sinais de desgaste de uns face a outros, que trouxeram como
resultados, o fim do regime do “apartheid” na África do Sul e a
progressiva derrapagem do regime de Mobutu, incapaz sequer de partir para um
quadro de democracia representativa mínima, no então Zaire.
Para
quem tutela a globalização, como a aristocracia financeira mundial, a “nova” elite
angolana que renascia nos novos governos post eleições, dera sinais muito mais “pragmáticos”,
quanto mais não fosse por razões de sobrevivência, mas também, foi-se
verificando, por razões que só diziam respeito às leis típicas das economias de
mercado, tão vulneráveis aos detentores do grande capital e aos seus interesses
e, de facto, tão pouco democráticas, tão pouco nacionalistas…
Seguir-se
em Angola, conjunturas com a arteriosclerose típica do sinal democrata, no
fundo obediente às alas mais ultra conservadoras do poder que tutela a
globalização, é mergulhar na crise post eleitoral do início da década de 90 e
percebermos quão, por caminhos por vezes escusos, se foi formando pelo menos
uma parte das “novas” elites, à medida que Savimbi radicalizando uma
vez mais seu discurso e sua prática, inevitavelmente se esgotava.
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