quarta-feira, 20 de setembro de 2017

BRASIL | O Maestro negro e as três versões do Hino Farroupilha



Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite* | Porto Alegre | Brasil  
   
Em 11 de setembro de 1836, o general Antônio de Sousa Netto (1801-1866) proclamou a República Rio-Grandense, após vencer a Batalha do Seival, próximo à cidade de Bagé, ocorrida durante Revolução Farroupilha (1835-1845). A partir deste ato, o conflito que tinha a princípio um caráter reivindicatório, combatendo o centralismo político do império, os altos impostos sobre o charque, o couro e a propriedade rural, resultou na mais longeva guerra civil da história do Brasil.

O maestro e sua banda são presos

No ano de 1837, o maestro Joaquim José de Mendanha (1800-1885), natural de Minas Gerais, assumiu, como regente, a banda do 2º Batalhão de Caçadores de Primeira Linha, que havia se deslocado para a Província de São Pedro (RS) em apoio às forças imperiais. Em 30 de abril de 1838, o maestro se encontrava com sua banda, na Vila de Rio Pardo, quando o local foi atacado pelos farroupilhas. Neste importante combate, conhecido como o do Barro Vermelho, os liberais farroupilhas venceram e aprisionaram-no com sua banda.

Mendanha compõe o Hino

Aprisionado o maestro e seus músicos, os farroupilhas aproveitaram a ocasião para exigir-lhe que compusesse um hino para a novel República Rio-Grandense. Diante da condição de prisioneiro de guerra, compôs o que lhe foi exigido. Esta primeira versão do hino publicada, em 1955, pelo historiador Walter Spalding (1901-1976), teve a letra escrita pelo capitão farroupilha Serafim Joaquim de Alencastre e foi executado pela primeira vez no dia 06 de maio de 1838. O maestro e sua banda acompanharam os farroupilhas durante um ano

Sua 2ª versão

Em sua edição de 4/05/1839, o Órgão Oficial da República Riograndense, “O Povo” (1839-1840), publicou uma letra do Hino Farroupilha, conforme foi cantada, na 2ª Capital farroupilha, Caçapava, no baile em comemoração ao primeiro aniversário do Combate do Barro Vermelho, ocorrido, em 1838, na cidade de Rio Pardo. Esta versão é diferente da primeira letra e de autor desconhecido. O jornal denominou de Hino da Nação. Ao ser executado num baile comemorativo, com a presença de nomes importantes, consolidou o nome do maestro Mendanha na história do Rio Grande do Sul. De acordo com Walter Spalding, em seu livro “Revolução Farroupilha”, publicado em 1987, p. 146:

“Foi esta música, por se ter conservado, que deu celebridade a Joaquim José Mendanha. Não fosse isso, em virtude de sua modéstia, talvez jamais seu nome fosse recordado, pois, conforme dissemos, tudo quanto compôs se perdeu ou perdeu sua identidade ao cair em domínio público, passando para o campo do folclore”.
Sua 3ª versão

No ano de 1933, quando se iniciavam os preparativos para comemorar o Centenário da Revolução Farroupilha (1935), o Instituto Histórico e Geográfico do RS (IHGRS) aprovou uma letra, que agradou o gosto popular, ficando esta como versão definitiva. O responsável, pela terceira letra do hino, foi o poeta e compositor Francisco Pinto da Fontoura (1793 -?), cuja alcunha era “Chiquinho da Vovó”. Esta versão aprovada, como oficial, teria sido escrita após o término da Revolução Farroupilha.

A partitura desta versão já havia sido publicada no jornal “A Federação” (1884-1937), do Partido Republicano Rio-grandense (PRR), em 03 de dezembro de 1887. Em 1934, o professor e doutor Antônio Tavares Corte Real revisou a música composta pelo maestro Mendanha, visando à adaptação dos versos de “Chiquinho da Vovó”.

Um Hino polêmico

No Diário Oficial do Estado de 07 de janeiro de 1966, em plena Ditadura Militar, a melodia e a letra foram oficializadas como Hino Farroupilha ou Hino Rio-grandense, de acordo com a Lei 5213, de 05 de janeiro de 1966, sendo cortada a segunda estrofe da letra original do “Chiquinho da Vovó”.  É bem provável que a palavra “tiranos”, presente num verso, não tenha agradado aos militares.

“Entre nós reviva Atenas /Para assombro dos tiranos; /Sejamos gregos na glória / Virtude, romanos”.

Outra questão que desperta polêmica é quanto aos versos presentes no estribilho do Hino Oficial, aos quais alguns críticos atribuem a presença de um componente racista, embora isto não se constitua numa opinião generalizada. Alguns concluem: a estrofe registra que a ausência da virtude resulta em escravidão; logo o negro que resistiu e lutou, a exemplo dos bravos “Lanceiros Negros”, em busca de liberdade, seria destituído de virtude. O Jornal “A Federação” (1884-1937) reproduziu esta letra em 3/12/1887. Segue a estrofe que gera discussão:

“Mas não basta para ser livre / Ser forte, aguerrido e bravo. / Povo que não tem virtude, /Acaba por ser escravo.”

A dúvida de plágio

Durante um período, propagou-se que a música do Hino Rio-Grandense era baseada numa valsa de Johann Strauss (1825-1899). Esta ideia, após minuciosa pesquisa de Antônio Tavares Corte Real, doutor em Música, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), foi desconsiderada.

Embora o hino tenha suscitado, no transcorrer do tempo, algumas polêmicas, é indiscutível o seu valor estético e sua importância para os gaúchos. O maestro negro, como ficou conhecido, legou-nos, por meio de seu talento, uma bela composição que é executada nas cerimônias mais significativas do Rio Grande do Sul junto com o Hino Nacional.

O maestro adota Porto Alegre

A Revolução Farroupilha, ainda, transcorria, quando o maestro Mendanha fixou residência, em 1842, em Porto Alegre. Ele contou com o apoio de seu amigo o Barão de Caxias, presidente da província, para que se dedicasse, exclusivamente, à música. E assim o fez… O maestro fundou uma orquestra, criou um coral com as senhoras da sociedade porto-alegrense e dirigiu os coros da Igreja das Dores e da Matriz. Em 02 de dezembro de 1855, ele fundou a Sociedade Musical de Porto Alegre. Um momento significativo e bastante emocionante, na vida do maestro Joaquim Mendanha, ocorreu, em 27 de junho de 1858, quando ele regeu na inauguração do Teatro São Pedro uma orquestra de 24 músicos para deleite da elite local.

No ano de 1877, O maestro recebeu a comenda imperial da Ordem da Rosa por iniciativa do seu amigo o Duque de Caxias, na época, presidente do Conselho de Ministros do Império. Figura simpática e amável, o maestro conquistava amizades por onde passava e teve seu nome registrado numa crônica de Achyles Porto Alegre (1848-1926), cujo título “O velho Mendanha” foi uma homenagem do escritor ao maestro. Segue um trecho:

“Diante de seus músicos, com a sua casaca bem talhada, gravata branca, e comenda ao peito, riscando no ar o compasso musical com a sua batuta, o velho maestro nada mais ambicionava na vida”.

Joaquim Mendanha também criou a Irmandade de Santa Cecília, padroeira dos músicos, dando um grande destaque às festividades, que, ainda, acontecem no dia 22 de novembro a cada ano.

Segue o comentário do nosso cronista, Achylles Porto Alegre, sobre o maestro Mendanha:

“Nos últimos dias da existência subia a escada do coro agarrado ao braço de um de seus discípulos. Quase sempre era o professor Lino quem se incumbia de levá–lo às alturas, com paciência e carinho. E quando o maestro chegava ao coro criava alma nova, parecia que havia remoçado alguns anos, era outra criatura”.

Ao final da Revolução Farroupilha, segundo o historiador Dante de Laytano (1908-2000), ele retornou a Rio Pardo, visando a exumar os restos mortais de seu comandante, o coronel Lisboa, para dar-lhe um destino apropriado de acordo com sua dedicação ao Exército Imperial.

Após o acordo de Paz, em Ponche Verde, em 1845, o maestro, que era monarquista convicto, regeu à porta do antigo Palácio, em Porto Alegre, uma banda de música, prestando uma homenagem ao Barão de Caxias, seu amigo e presidente da Província, que havia ganho de dom Pedro II o título de “O Pacificador”. O nome do maestro se encontra entre os subsescritores das despesas para o banquete, em 1845, em homenagem ao imperador dom Pedro II e à sua esposa imperatriz Teresa Cristina.

O maestro negro, Joaquim Mendanha, faleceu, em 02 de setembro de 1885, aos 85 anos, legando às gerações vindouras a composição do Hino Rio-Grandense, além de várias realizações importantes no campo da música. Seu talento e o pioneirismo de seu trabalho se destacaram numa época de conservadorismo e escravidão. Com certeza, o maestro, natural de Minas Gerais,, que viveu em Porto Alegre, por quase 50 anos, dedicando-se à música, merece o reconhecimento dos gaúchos de todas as querências que apreciam a arte musical.
  
* Pesquisador e Coordenador do setor de imprensa do Musecom


Bibliografia
FAGUNDES, Antônio Augusto. Revolução Farroupilha / Cronologia do Decênio Heroico (1835-1845). Porto Alegre: Martins Livreiro, 2008.
FLORES, Moacyr. Negros na Revolução Farroupilha: Traição em Porongos e farsa em Ponche Verde. Porto Alegre: EST, 2004.
LAYTANO, Dante. História da República Rio-Grandense. Porto Alegre: Sulina,1983.
MIRANDA, Marcia Eckert; LEITE, Carlos Roberto Saraiva da Costa. Jornais raros do Musecom: 1808-1924. Porto Alegre: Comunicação Impressa, 2008.
PESAVENTO, Sandra Jathahy. A Revolução Farroupilha. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2014.
REAL, Antonio T. Corte. Em torno da Música do Hino Rio-Grandense. Porto Alegre:
Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, 1976.
SAVARIS, Manoelito Carlos (Org,). Nossos Símbolos: Nosso Orgulho. Porto Alegre: Edelbra Gráfica Ltda. / Instiituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF), 2008.
SPALDING, Walter. A epopéia Farroupilha. Biblioteca do Exército, 1963.

Sem comentários:

Mais lidas da semana