Como
um príncipe audacioso e temerário assumiu na prática o poder na Arábia Saudita.
Por que ele ameaça prolongar a agressão ao Iêmen e incendiar o Oriente Médio,
com o apoio de Washington
A
princípio parecia um revoltante caso de overbooking: em plena noite do
sábado, 4 de novembro, os respeitáveis clientes do Hotel Ritz-Carlton, de Riad,
na Arábia Saudita, se viram obrigados a abandonar apressadamente os seus
quartos de diárias entre 1.000 e 14.000 dólares. Tinham que deixar seus lugares
para outros não menos ilustres (ainda que involuntários) hóspedes. Entre eles
se incluíam uma dúzia de príncipes, dezenas de ministros e ex-ministros e
algumas centenas de empresários. Todos eles haviam sido detidos ao longo
daquele dia, no maior expurgo que se tem notícia na não tão longa nem tão
pacífica história da Arábia Saudita. Mesmo que seja só dessa vez, os que dizem
que há prisões que parecem hotéis de cinco estrelas agora estão literalmente
certos.
Ainda
que as autoridades insistam em apresentar a blitz como uma campanha contra a
corrupção [versão imediatamente comprada pela grande mídia brasileira],
trata-se, a bem da verdade, de episódio de uma encarniçada luta pelo poder. Em
termos concretos, trata-se de uma tentativa do poderoso príncipe herdeiro, Mohammed
bin Salman (MbS), para se consolidar no caminho do trono, que em breve pode vir
a ser rematado. Não obstante, a escalada dessa “noite dos longos punhais” foi de tal magnitude que coisa
assim ainda não tinha sido vista no país ― e não porque a Arábia Saudita seja
algum poço de tranquilidade. Seus desdobramentos na política externa, que já
alcançam o Líbano, podem vir a ser consideravelmente desestabilizadores.
Para
se entender a estranha política desse país é preciso, antes de mais nada, ir à
árvore familiar, porque os conflitos aí são mais genealógicos que ideológicos.
Não é por acaso que o nome do país seja um sobrenome familiar. Arábia Saudita
é, de fato, a propriedade da família al-Saud; e ela deteve o poder no curso de
não mais que três gerações. Ainda que pareça um país “antigo”, a Arábia Saudita
só existe a partir de 1932. Esse curto período, no entanto, foi suficiente para
dar à luz uma família de tal forma extensa que a partilha dos frutos do poder
pode não ser sempre satisfatória. Abdulaziz Ibn Saud, o fundador da dinastia,
teve, só ele, uma centena de filhos, metade deles homens. Atualmente, entre os
15 mi membros da família real, há coisa de 5.000 príncipes de sangue, que
consomem o equivalente a 40 bilhões de dólares por ano. Isso significa uma
carga cada vez mais pesada sobre a riqueza do país, em especial depois de
vários anos de baixos preços do petróleo.
Os
mecanismos de poder, ou a falta deles, agravam a rivalidade implícita. A Arábia
Saudita não faz uso de um sistema de primogenitura estrita, e menos ainda de
instituições democráticas, de modo que a sucessão dos reis sempre foi
traumática. A do príncipe (MbS), quando chegue sua hora, não vai a ser uma
exceção. Seu pai, o ancião rei Salman, colocou-o em uma boa posição de saída,
não só ao nomeá-lo herdeiro como também ao lhe dar o ministério da Defesa. No
entanto, o jovem príncipe desperdiçou esse crédito ao lançar o país em uma
desastrosa guerra no Iêmen. Seus tios e primos, com o apoio de setores
importantes do exército e do empresariado, já planejavam sua queda desde a
última primavera. É essa a origem da tal “campanha contra a corrupção”:
trata-se do contragolpe com o qual o príncipe pretende assegurar a própria
sobrevivência.
A
personalidade de MbS é a chave de tudo. A mídia ocidental se esforça para
pintá-lo como um reformista. Os críticos insistem na sua ambição desmedida. O
que melhor o caracteriza, no entanto, é a temeridade, o excesso de imprudência.
Muitos a imputam à sua juventude (nasceu em agosto de 1985), mas parece que, da
maneira como as coisas andam, não teremos a oportunidade de comprovar se isso
vai mudar com os anos. A intervenção no Iêmen teria sido um desastre mesmo que
alcançasse sucesso. E até suas mais bem intencionadas ideias reformistas até
agora não foram mais que impulsivas e erráticas. Iniciativas como a autorização
[extremamente limitada e condicionada] para que as mulheres dirijam 130 anos
depois da invenção do automóvel [N. do T.: algo que deixara horrorizado e sem
ação o falecido rei Abdalá, ao ser conduzido pela rainha Elizabeth II, em uma
visita ao Reino Unido em 2003, quando esta o levou para passear no seu Land
Rover pelo castelo de Balmoral], ou ainda a limitação do poder da polícia
religiosa, podem até parecer medidas positivas, mas, isoladas e
condescendentes, não constituem parte de qualquer plano efetivo de
transformação de uma sociedade medieval.
De
maior calado parecem ser as mudanças que o príncipe pretende introduzir na
economia saudita, mas nem os objetivos soam realistas, nem os resultados,
satisfatórios.
Príncipes
e mendigos – Se é preciso buscar no sangue e no parentesco a lógica das
lutas pelo poder na Arábia Saudita, seu motor, no entanto, está no petróleo e
na economia. A Arábia Saudita é um “Estado do Mal-Estar”: uma espécie de Estado
do Bem-Estar intrinsecamente falido. O setor privado representa a metade do
PIB, mas é controlado de forma rentista pelos príncipes, e emprega quase
exclusivamente imigrantes estrangeiros e sauditas residentes no exterior, o que
mal permite produzir benefícios para a população em geral, de 32,2 milhões de
habitantes. Os sauditas locais trabalham majoritariamente no setor público,
onde os salários são três vezes mais altos que os dos trabalhadores da
iniciativa privada. No entanto, o mercado de trabalho é de tal forma
ineficiente e a sociedade tão desigual que pelo menos 30% da população vive em
estado de pobreza. Em boa medida para controlar descontentamentos, a energia e
outros bens básicos, como a água, são subsidiados. Uma vez que o petróleo
atualmente não garante mais que uma renda média de 5.000 dólares per capita ao
ano, compreende-se que esse sistema não é sustentável. E provavelmente não seja
reformável, como é usual acontecer com os sistemas rígidos e hipertrofiados.
O
plano de MbS consiste em igualar o mercado de trabalho, rebaixando em um terço
o salário do funcionalismo, reduzir o gasto público eliminando os subsídios da
energia, e privatizar parte da petroleira pública Aramco, abrindo 5% do seu
capital em bolsa, para, com isso, criar uma “cidade da tecnologia” [comprada
como um irreal “pacote pronto”] nas margens no Mar Vermelho, visando, assim,
diversificar a economia.
Essa
“ponte para o futuro” foi batizada de Visão 2030. Entretanto, não como “visão”,
ela está se revelando, antes, como uma miragem no deserto. Ao se implementarem
os cortes nos subsídios da eletricidade e da água, a resposta da população
obrigou seus gestores a darem marcha a ré. Em abril último, diante dos
protestos dos funcionários, também foi preciso levantar as reduções salariais
impostas. E, finalmente, no que respeita à “cidade da tecnologia”, ela parece,
antes, um reconhecimento das insuficiências da economia saudita que a sua
solução. NEOM, como ficou conhecida, custará 500 bilhões de dólares e será
pilotada por meio de robôs. Pode-se dizer que ela é uma metáfora do que o reino
se tornou: um grande desperdício gerido por autômatos.
Isso
nos leva de volta ao Ritz-Carlton. Foi lá onde se fez a apresentação, solene e
triunfalista, do projeto NEOM. Ao redor dos canapés se reuniram a elite do
empresariado saudita e os rostos mais conhecidos da família real. Menos de um
mês mais tarde, muitos deles encontram-se compulsoriamente “hospedados” nesse
mesmo hotel. No salão de baile onde foram apresentados os vídeos em 3D do
projeto, dormem agora, sobre colchonetes, os policiais encarregados de
vigiá-los.
A
obsessão com o Irã – a política exterior saudita tem muito a ver com a
economia, mas esta última não é determinante da primeira. A guerra do Iêmen,
por exemplo, pode ser explicada em parte pela necessidade de explorar ― dado o
esgotamento virtual dos atuais campos sauditas ― a assim chamada Zona Vazia,
uma vasta área rica em petróleo, que está na fronteira entre os dois países. No
entanto, na geoestratégia regional, falam mais alto os imperativos religiosos
que os interesses econômicos concretos. O Irã, a grande fixação de Riad, pode
até ser uma ameaça real, mas o elemento chave para explicar a hostilidade
saudita é de que se trata de uma potência xiita, e não uma potência sunita.
Isso faz com que, ainda que não estejam desprovidas de elementos racionais, as
estratégias exteriores sauditas se inclinem mais para a paranoia e para a falta
de comedimento.
Mais
uma vez, a personalidade de MbS agrava essa deriva. A iniciativa que produziu a
guerra do Iêmen baseou-se no temor de que o Irã pudesse convertê-lo em sua base
― algo sobre o quê parece haver muito poucos indícios. A pressão sobre o Catar,
que chegou à beira da própria guerra, se justificava pela atitude mais amistosa
desse emirado com o Irã. A confrontação acabou tendo o efeito de transformar
aquela amizade em aliança. O mesmo aconteceu na Síria, onde Riad investiu uma
enorme fortuna no apoio a grupos jihadistas sunitas, e o que conseguiu foi
jogar Damasco nos braços de Teerã.
O
conflito atual com o Líbano precisa ser visto nesse contexto de frustração
diante dos repetidos fracassos nesse embate, em parte real, mas em parte
imaginário, com o Irã. Riad interpreta a presença do partido xiita Hezbolá no
governo de Beirute como uma ingerência iraniana. Na realidade, o Hezbolá
participou de vários governos durante anos, sua força eleitoral e o sistema
libanês de governo a partir de quotas faccionais tornam isso praticamente
inevitável. Mesmo os sauditas têm uma presença constante, provavelmente até
maior, na política libanesa. Eles a exerceram durante anos a fio através da
família sunita Hariri; primeiro por meio do empresário da construção Rafiq
Hariri, até seu ainda não elucidado assassinato em 2005, e a partir de então
por seu filho Saad.
Saad
Hariri não é exatamente um entusiasta do Hezbolá. Afinal, muitos creem que
teria sido essa força [outros creem que foi o Mossad, o serviço secreto de
Israel] que teria dado cabo de seu pai. Entretanto, a política libanesa, por
assim dizer, é pragmática, e em 2009 Hariri firmou um pacto de governo com a
milícia xiita, tornando a fazê-lo no ano passado. Por conta desse pacto, Michel
Aoun, um general cristão maronita, aliado do Hezbolá, tornou-se presidente e o
próprio Hariri tornou-se primeiro ministro. Naquele momento, o acordo foi
entendido como uma trégua entre a Arábia Saudita e o Irã. O que aconteceu
agora, em 4 de novembro, no mesmo dia da “noite dos longos punhais”, foi que o
príncipe MbS decidiu romper a trégua, forçando a demissão de Hariri.
De
que essa demissão tenha sido forçada dá pistas o fato de que Hariri fez seu
anúncio em Riad, por meio da televisão saudita, e com um discurso de boneco de
ventríloquo, no mesmo estilo da retórica do reino sunita. Pouco antes, o
celular do primeiro ministro libanês ficou repentinamente sem cobertura; e
pouco depois o próprio Hariri desapareceu durante dias, em meio a rumores
insistentes de que teria sido, na verdade, sequestrado pelas autoridades sauditas.
É verdade que demitir-se em circunstâncias pitorescas parece ser uma
especialidade de Saad Hariri. No seu mandato anterior como primeiro ministro, o
fez durante uma reunião com o presidente Obama, no Despacho Oval da Casa
Branca. Dessa vez, no entanto, a coisa é mais grave.
Se
a família Hariri vem sendo testa de ferro de Riad na política libanesa, o que
ganhariam agora os sauditas obrigando-o a se demitir? Uma hipótese é que Hariri
irritou MbS ao se negar a expulsar o Hezbolá do seu gabinete. Outra, é que se
pretenderia substituir Saad por seu irmão mais velho, Bahaa. Isso é pouco
verossímil. Há vários anos, Bahaa recusou-se a suceder o seu pai à frente do
Movimento Futuro, com a desculpa esfarrapada de que a política libanesa lhe
parecia tediosa ― ela pode ser qualquer coisa, menos isso! O mais provável é
que MbS esteja pondo em prática a sua tática preferida: criar uma situação
caótica, na esperança de que o rio revoltoso acabe lhe beneficiando. Nesse
caso, parece acreditar que, ao forçar uma crise em Beirute, a instabilidade
estimulará Israel a atacar novamente o Hezbolá, como em 2006. Seria melhor que
o príncipe se lembrasse de que, naquela ocasião, o Hezbolá ganhou a parada.
Semear
o caos na política libanesa não chega a ser algo difícil. Com efeito, poderia
ser apenas redundante. Os libaneses estão tão habituados com a instabilidade
que, de imediato, não parece sequer que notem a diferença. Além do mais,
ficaram mais de dois anos sem primeiro ministro, entre 2014 e 2016; alguns dias
sem Hariri não são lá grande coisa. MbS, no entanto, têm outros meios para
causar problemas ao Líbano: como ocorre com outros países do Oriente Médio e do
Norte da África, os sauditas controlam boa parte de sua dívida nacional. Mesmo
que o precedente do assédio ao Catar devesse ter-lhe ensinado que esse tipo de
tática pode ter efeitos francamente indesejados, os precedentes a respeito do
próprio MbS fazem crer que ele não vai levar isso em conta.
Por
outro lado, o contexto favorece as decisões intempestivas, e outro hóspede recente
do Ritz-Carlton tem muito a ver com isso. Quando Donald Trump visitou a Arábia
Saudita em maio ― sua primeira viaje ao exterior como presidente ―, sua eterna
falta de caráter disfarçada de franqueza entrou em sintonia com a
irresponsabilidade disfarçada de espírito visionário de MbS. O resultado foi
que o príncipe ficou com a impressão de que Trump lhe deu luz verde para fazer
e desfazer no Oriente Médio, e pode até ser que assim seja. Agora só resta ver
até onde chega esse projeto pessoal e contraditório do “príncipe louco”: uma
teocracia com pretensão de parecer moderada; uma economia do desperdício,
reformada por meio de obras megalomaníacas; e uma diplomacia guiada por medos,
mais que por alianças
*Miguel-Anxo
Murado - Premiado escritor espanhol em língua galega, é especialista em
política internacional, tendo trabalhado para a ONU em vários postos
diplomáticos no Oriente Médio. Atualmente é articulista de várias publicações
espanholas e do britânico The Guardian
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