quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Portugal. OS ILUSIONISTAS



Rafael Barbosa – Jornal de Notícias, opinião

1. Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, a 3 de agosto de 2014: "A medida de resolução agora decidida pelo Banco de Portugal, e em contraste com outras soluções que foram adotadas no passado, não terá qualquer custo para o erário público, nem para os contribuintes". Passos Coelho, a 4 de agosto: [A solução] é aquela que oferece, seguramente, maiores garantias de que os contribuintes portugueses não serão chamados a suportar as perdas". Maria Luís Albuquerque, ministra das Finanças, a 7 de agosto: "Aconteça o que acontecer ao Novo Banco, [o Estado] não vai ser chamado a pagar eventuais prejuízos. Isso tem de ficar muito, muito claro". Cavaco Silva, presidente da República, a 26 de setembro de 2014: "A autoridade de supervisão, entre as alternativas que se colocavam, escolheu aquela que melhor servia o interesse nacional e que não trazia ónus para o contribuinte".

2. Este conjunto de garantias foram avançadas pelos responsáveis políticos que, em agosto de 2014, e confrontados com a falência do BES, decidiram dividir o banco, criando aquilo a que se chamou na altura o "banco bom", ou seja, o Novo Banco. Dois anos e meio depois, temos dados mais do que suficientes para perceber que foi uma ilusão. Ora, segundo o dicionário online Priberam, ilusionismo pode ser definido como "tendência para se iludir", uma "crença fundada numa ilusão" ou "a arte de produzir uma ilusão". Quando Carlos Costa, Passos Coelho, Maria Luís Albuquerque e Cavaco Silva nos venderam a solução para o BES, não estavam a lidar com a verdade. Só falta saber se foi ou não deliberado. Ou seja, se foram apenas irresponsáveis (deixaram-se iludir), se a isso acrescentaram a incompetência (acreditaram na ilusão) ou, pior ainda, se nos mentiram (produziram a ilusão).

3. É impossível dizer qual das três soluções que estão agora em cima da mesa para o Novo Banco será a melhor para os portugueses: se a liquidação, se a venda por meia dúzia de patacos a um fundo que acabará por liquidar, se a nacionalização (temporária ou definitiva). Certo é que haverá sempre perdas para os contribuintes, certo é que haverá sempre perdas para os restantes bancos (incluindo a CGD), certo é que a dívida do país cresceu por causa desta gigantesca fraude, que começou por ser de índole criminal e se vai transformando numa fraude política. E se é certo que o impacto será sempre negativo e com múltiplos efeitos (por exemplo, no facto de os juros da dívida pública estarem a subir), o que se espera é que quem toma agora as decisões abandone os truques de ilusionismo e fale com verdade. Mas talvez seja melhor esperarmos sentados...

*Editor executivo

MAIS DE 15 MIL NOTÍCIAS SOBRE A MORTE DE MÁRIO SOARES


Em informação da Cision* ficamos a saber que a morte de Mário Soares foi “badana para toda a semana” e que em vez de luto nacional vimos espetáculo do mais tétrico e meditabundo. Mais de 15 mil notícias sobre a morte de Mário Soares, sendo metade obra dos média estrangeiros. 230 horas de emissão sobre acontecimento em rádio e televisão. Luto? Ao contrário disso foi um grande show. Os média que meditem. E os oportunistas que não repitam tal fartum. É que Eanes e Cavaco, ex-presidentes, estão na calha. É assim, é a vida. Ou melhor, é a morte que a todos nos leva. (Redação PG)

AS CONTAS DA CISION

Desde o início da tarde de sábado, altura em que foi noticiada a morte de Mário Soares, que os principais canais de televisão e estações de rádio do país se desdobraram em diretos, emissões especiais, entrevistas e debates sobre a vida do ex-Presidente da República. De acordo com um estudo da Cision, foram publicadas 15.947 notícias e mais de 230 horas – o equivalente a mais de nove dias – de emissão de rádio e televisão dedicadas ao adeus ao homem que, em 1985, assinou o tratado de adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia (CEE).

Os canais de informação foram aqueles que mais tempo dedicaram às reações à morte de Soares, às exéquias fúnebres e às inúmeras homenagens realizadas ao longo do fim-de-semana e dos três dias de luto nacional que se seguiram. RTP3, SIC Notícias, TVI 24 e CMTV realizaram exaustivas coberturas da despedida ao fundador do Partido Socialista, somando cerca de 162 horas (quase sete dias) de emissão sobre o óbito.

Os principais canais generalistas também reservaram grande parte da sua programação para abordarem a vida e a morte de Mário Soares. Entre RTP1, RTP2, SIC e TVI, contabilizaram-se cerca de 36 horas (um dia e meio) de transmissões televisivas sobre a despedida ao fundador do Partido Socialista. Do mesmo modo, as rádios fizeram um acompanhamento pormenorizado do último adeus ao antigo chefe de Estado, com a Antena 1, a TSF e a Rádio Renascença a dedicarem cerca de 34 horas das suas emissões ao desaparecimento de Soares.

Não foi só na rádio e televisão que a morte de Mário Soares e todas as reações que se seguiram foram amplamente noticiadas. Também nos jornais e nos meios online a cobertura foi pormenorizada. Só em Portugal, foram publicados 699 artigos na imprensa e 4.486 notícias na internet. Lá por fora, a Cision detetou 8.351 artigos publicados nos meios de comunicação social internacionais sobre o desaparecimento do ex-Presidente da República.

O objeto de análise deste estudo realizado pela Cision – empresa líder global em serviços e software de pesquisa, monitorização e análise de media – são todas as notícias sobre a morte de Mário Soares, veiculadas no espaço editorial português e internacional. O estudo incide sobre o período decorrido entre os dias 7 de janeiro, data da morte de Soares, e 11 de janeiro de 2017, último dos três dias de luto nacional decretado pelo Governo.

* A Cision é líder global em serviços de media intelligence, estando na base de todo o processo de trabalho dos profissionais de comunicação.

Onde estava Meryl Streep enquanto Obama processava denunciantes e bombardeava casamentos?


O discurso anti-Trump de Streep, no domingo, no Golden Globes, foi uma performance sublime. De uma hipocrisia pura e inalterada.

Danielle Ryan, RT News*

Certo, primeiro vamos tirar uma coisa do caminho: eu adoro a Meryl Streep. Julguem o quanto quiser, mas o Diabo Veste Prada é um clássico e não vou me desculpar por isso.

O discurso anti-Trump de Streep no domingo no Golden Globes foi uma performance sublime. Foi entregue com emoção e graça. Um verdadeiro momento emotivo para qualquer um preocupado com a era Trump que se aproxima.

E ainda assim...fedeu. Foi podre, de fato. De uma hipocrisia pura e inalterada. Porque Streep, infelizmente, é da raça comum de hipócritas liberais de Hollywood. Sabe, aqueles cujas credenciais de coração partido não são encontradas enquanto o ocupante da Casa Branca é um Democrata legal que é amigo da Beyoncé.

Em seu discurso apaixonante, Streep convocou seus colegas e fãs a se unirem a ela e doarem para o Comitê de Proteção aos Jornalistas: “Precisamos que a imprensa tenha poder de responsabilizá-los por cada escândalo. É por isso que nossos Pais Fundadores consagraram a imprensa e sua liberdade na nossa constituição”, ela disse.

Ela está certa, é claro. Mas me pergunto se Streep sabe, por exemplo, que a administração Obama foi a que mais perseguiu denunciantes em comparação aos seus predecessores combinados? É uma tradição que Trump provavelmente continuará, é claro, mas é estranho que a questão não tenha passado por sua cabeça até agora.

E onde estava Streep – repentinamente preocupada sobre como “violência incita violência” – quando Obama estava ajudando a Arábia Saudita a detonar o Iêmen, bombardeando funerais e festas de casamento? Ou quando sua “intervenção humanitária” na Líbia deu tão errado que transformou o país em um estado falido, permitindo a criação de grupos terroristas como o Estado Islâmico? Ou quando o grande unificador conquistou o apelido de ‘Reio dos Drones’ enquanto expandia o programa de Drones dos EUA e conduzia 10 vezes mais ataques aéreos que George W. Bush? Também uma tradição que Trump seguirá com prazer.

Onde estava Streep quando o ganhador do Prêmio Nobel da Paz bombardeava não um, dois, ou três – mas sete países diferentes? Para ser justa com Streep, ela provavelmente não percebeu que a imprensa não deu bola também. Algo engraçado sobre isso também, já que Streep e seus amigos estão preocupados com o desdém aparente de Trump com os estrangeiros: todos os países bombardeados pela administração Obama eram muçulmanos.

E onde estava Streep quando a administração Obama estava negociando em nome dos rebeldes “moderados” ligados à al-Qaeda na Síria? Na realidade, onde estavam todos os hipócritas no evento, quando Obama lançava 26.171 bombas em 2016? Ah é, estavam festejando na casa dele!

Olha, todas essas pessoas têm o direito de transmitir suas reclamações sobre Trump – e deveriam. Têm muitas discordâncias legítimas a serem expostas. Mas quando enterram suas cabeças na areia tão fundo assim, não merecem uma rodada de aplausos e adulação das massas. Merecem ser alertados para que acordem. Sua indignação moral é vazia ao menos que sejam consistentes em aplicá-la.

Quanto à Trump, seu ego facilmente atingido estava à mostra em sua reposta ao discurso de Streep quando a chamou de “atriz superestimada” – o que provavelmente não vai magoá-la como ela o magoou. Para ele, pode ser a hora de reconhecer que fará muito pouco em quatro anos se responder a cada insulto e desdém no Twitter.

A questão é, muitas das indignações que Streep e seus colegas da elite de Hollywood estão se debruçando agora não são específicas de Trump – e não são novas. Já estão acontecendo. Obama, o herói de Hollywood tornou ainda mais fácil para Trump perseguir jornalistas e denunciantes e bombardear inocentes se esse for o caminho que escolher. É hora de acordar.

Você é ótima atriz Meryl. A melhor, alguns dizem. Você poderia ao menos fingir se importar com isso, também.

Em Carta Maior – Foto: Reuters


O QUE OBAMA REPRESENTOU E O QUE REALIZOU


Haroldo Ceravolo Sereza, São Paulo  - Opera Mundi

Há um descompasso entre o Obama simbólico e o Obama prático, entre o dito e o feito. Se a vida dos norte-americanos mais pobres melhorou sob sua gestão, a política externa de seu mandato foi a de implantar o terror e a barafunda em outras terras

Barack Obama fez um belo discurso na noite desta terça-feira (10/01). O centro do seu discurso foi a valorização da democracia norte-americana, a necessidade de ampliar o número de eleitores no país, de engajar cada cidadão na narrativa histórica que precisa, nas suas palavras, ser cada vez mais inclusiva, o que significa respeito ao outro, combate permanente ao racismo e busca por mais igualdade.

Entre os feitos, destacou o programa de saúde (Medicare, mais conhecido pelo apelido, Obamacare) para a população mais pobre, a redução do desemprego, a retomada da economia. No campo da segurança, comemorou o fato de nos seus oito anos de mandato não ter ocorrido nenhum ataque promovido por organizações extremistas sediadas no exterior. E, na diplomacia, destacou o acordo que freou o programa nuclear iraniano sem disparar um único tiro.

Foi um discurso empolgante, cheio de aplausos e vitalidade, diante de uma plateia que vê em Obama um legítimo representante de seus sonhos. O discurso de despedida de Obama em 2017 nada fica a dever ao seu discurso de posse, em janeiro de 2009.

Desse modo, Obama sai fazendo um discurso coerente com sua eleição, oito anos atrás. Mas que, infelizmente, não se sustenta na sua atuação como presidente, especialmente fora dos Estados Unidos.

Acompanhada e aparentemente estimulada a partir de decisões tomadas em Washington, a chamada Primavera Árabe, com poucas exceções (certamente a Tunísia e, em menor escala, o Marrocos), desaguou em menos democracia, onde ela já era escassa. Os movimentos contraditórios dos Estados Unidos na Síria fortaleceram o extremismo do Estado Islâmico.

Num movimento semelhante ao ocorrido no Afeganistão sob Ronald Reagan, o regime de Bashar Al-Assad foi combatido estimulando o que há de mais reacionário, e não as forças que, de algum modo, poderiam de fato conduzir o país a um regime mais democrático. A interferência descarada no combate em chão e nas redes sociais também fortaleceu o argumento contrário: o do vale-tudo de Assad para manter um regime, nitidamente atacado não apenas pela resistência síria.

As intervenções mais ou menos explícitas no Oriente Médio alimentaram o caos e, por consequência, movimentos migratórios em massa, dentro dos próprios países da região e também em direção, sobretudo, à Europa – que, além da crise econômica desencadeada a partir de 2008, passou a ter de lidar também uma crise humanitária que desestabiliza a política local.

Na América Latina, as oposições venezuelana, brasileira, argentina, paraguaia e hondurenha não têm do que reclamar de sua gestão. De um modo ou de outro, foram todas reforçadas com dinheiro, know-how e discursos que enfraqueceram ou desestabilizaram regimes progressistas, que vinham obtendo resultados significativos no combate à miséria na região, incluindo massas de trabalhadores na economia, tanto na produção quanto no consumo.

Quanto ao Brasil, a simpatia pessoal expressa a Dilma não contou com um só movimento efetivo de apoio diante das pressões que levaram ao impeachment. Pelo contrário, foi visível a satisfação com a instabilidade criada, que certamente fragilizou os instrumentos multilaterais em que o Brasil se envolveu ao longo dos últimos anos: Unasul, Mercosul, Celac e Brics (com seu banco próprio de financiamento ao desenvolvimento).

Assim, há um descompasso entre o Obama simbólico e o Obama prático, entre o dito e o feito. Se a vida dos norte-americanos mais pobres de fato melhorou sob sua gestão, a política externa de seu mandato foi a de implantar o terror e a barafunda em outras terras, alimentando o racismo, o machismo e a xenofobia por todo o planeta – inclusive nos Estados Unidos, paradoxalmente, o que favoreceu a eleição de Trump.

Essa combinação que faz de Obama o presidente contraditório, que agrada uma esquerda ávida por simbolismos (não estou negando a importância deles, quero deixar claro) e uma direita que queria ver a América Grande novamente, talvez explique por que ele acaba o mandato tão popular.

Pode parecer insano, mas os eleitores de Donald Trump têm muito a agradecer à gestão Barack Obama.

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Portugal. O JORNALISMO NÃO MORREU, MAS NÃO SEI SE QUER SOBREVIVER



Francisco Louçã, opinião – Público

Um dia, num restaurante de um país do hemisfério sul, pedi um prato, já não sei qual. O empregado explicou, condescendente, que “tem, mas acabou”. Creio que o jornalismo está a passar por um risco semelhante: tem, existe, mas muda tanto que pode acabar. É um risco, não uma conclusão: os dias recentes, aliás, demonstraram que existem regras e que existe jornalismo. Por exemplo, ao que me dei conta, nenhuma televisão usou imagens integrais do caixão aberto de Mário Soares, transmitindo portanto unicamente as cerimónias, mas mantendo respeito pela imagem do seu corpo e da sua morte. Elogio esta escolha digna.

Refiro-me antes a três questões: a tempestade perfeita que se abateu sobre o jornalismo (ou, ainda pode haver independência?), o recurso às estratégias da banalização anestesiante ou obsessiva (ou, ainda quer informar?) e a inclinação política do jornalismo por via do comentário engajado (ou, abandonou a busca de objectividade?). Não sei se o Congresso dos Jornalistas as discutirá, mas estas são para já as questões cépticas para as quais preciso de ter resposta (o texto desenvolvido está no online).

Primeira questão, a comunicação social vive uma tempestade perfeita: a recessão esvaiu a publicidade, a concentração empresarial acentuou-se, a tecnologia destroçou circuitos de informação. Nada disto vai melhorar. O espaço noticioso é portanto gerido por uma certeza: a da inevitável degradação da informação, que foi transformada em entretenimento. Assim, em vez de notícias, produzem-se senso comum, ou ideias, ideologias e conformação. Portanto, a comunicação transformou-se em órgão de poder e não de contrapoder.

Segundo, ao abdicar da independência, o jornalismo muda também o seu procedimento. O que então usa é futebol e discussão de futebol, de modo que o acontecimento seja a discussão do acontecimento. Este trabalho de produção de senso comum é construído como uma banalidade banal, baseada na distração.

Mas há também um contraponto, a banalidade perturbante (a exploração da emoção de vizinhos sobre o desaparecimento da mulher de Grândola). Afinal, a perturbação é uma regra muito usada. Assim, o Correio da Manhã torna-se parte de um processo judicial para criar manchetes, usando o que ainda está em segredo de justiça – qual é então o limite? Não há, acabou.

A terceira questão que quero tratar é o comentário pelos jornalistas, que se fez parte da luta política. Já era assim, bem se pode dizer, veja-se o comentário económico na TV: é monopolizado por defensores da solução austeridade. Não há lugar para alternativas, mesmo quando o fracasso da financeirização entra pelos olhos dentro. Outro exemplo, este do comentário que se arvora em juízo, as colunas de “setas”, uma arrogância que descamba em ajustes de contas e são o resultado de um “estilo matarruano”. O julgamento é sumário: tal acto político é “imbecil”, tal iniciativa é “asinina”, tal proposta é uma “náusea”, tal ideia é “estúpida”, tal dirigente política é “troll” – cada uma destas expressões foi de facto escrita por editorialistas e directores nos últimos meses.

Portanto, tudo inevitável? Nem pensar. Há vida para além do twitter. A comunicação social sempre se reinventou perante a evolução do seu próprio meio: os jornais sobreviveram à rádio e a rádio sobreviveu à televisão. A televisão pode sobreviver à internet e continuará ao lado dos jornais e rádios. Mas não precisava de limitar o jornalismo a uma função de pivot de continuidade.

Esse jornalismo está a obrar para a sua própria destruição – no dia em que a informação só for vista como entretenimento ou como análise crispada, passou a ser outra coisa. Tem, mas parece que aceita que acabou.

Portugal. JORNALISMO: “ESTE CAMINHO ESTÁ A LEVAR-NOS À AUTODESTRUIÇÃO”


No meio de uma crise de identidade jornalistas reúnem-se em congresso. Maior inquérito de sempre aos jornalistas portugueses revela longas jornadas de trabalho, salários baixos, condicionalismos à autonomia e alguma vontade de virar costas à profissão.

Portugal perdeu quase dois mil jornalistas nos últimos dez anos. E dois terços dos actuais titulares de carteira profissional já pensaram pelo menos uma vez na possibilidade de abandonar a profissão. Abalados por uma crise de identidade, que deslocou a ênfase na produção das notícias para a distribuição na Internet, os jornalistas reúnem-se a partir de quinta-feira, até domingo, no Cinema São Jorge, em Lisboa.

Não há congresso há 18 anos. Fazê-lo foi uma promessa proferida por Sofia Branco durante a corrida à direcção do Sindicato de Jornalistas. Já lá vão dois anos. O sindicato não avançou sozinho. Envolveu o Clube de Jornalistas e a Casa da Imprensa. As inscrições já fecharam. Há uma lista de 700 nomes. E a conferência inaugural, às 18h30, cabe a Michael Rezendes, prémio Pulitzer 2003 pelo trabalho no The Boston Globe, que inspirou o filme Spotlight.

"Esperamos que o congresso sirva para que os jornalistas reflictam sobre os seus principais problemas”, declarou à Lusa Maria Flor Pedroso, presidente da comissão organizadora. “A minha expectativa é que se reflicta e que se decida”, disse Sofia Branco ao PÚBLICO. “No fim, devemos ter uma folha A4 com medidas concretas.”

“É preciso separar as águas”

Joaquim Fidalgo, jornalista e professor da Universidade do Minho, contou a um amigo que irá estar num painel a falar de ética e o amigo espantou-se: “O Titanic a afundar e tu a tocar violino!”, “Isto está a ir abaixo porque está a haver uma misturada”, entende aquele fundador do PÚBLICO. Há os blogues, as redes sociais, os comentários em cima da informação, os conteúdos patrocinados. “É preciso separar as águas”, adverte. “Sucedâneos de jornalismo não são jornalismo. Não pelo rótulo, mas pela substância.” O jornalismo exige saber. E atenção, ética e deontologia.

Os resultados do maior inquérito feito aos jornalistas portugueses – a apresentar ao congresso no sábado – mostram o descontentamento: 64,2% já pensaram, pelo menos uma vez, em virar as costas à profissão. Porquê? Pelo baixo rendimento (21%), a degradação da profissão (20,4%) e a precariedade (14,3%).

Os jornalistas têm escolaridade superior à média (79,6% com licenciatura), mas um terço não possui um vínculo laboral sólido, três quartos não vêem progressão de carreira há mais de quatro anos e, no final de cada mês, mais de metade (57,3%) leva para casa menos de mil euros. Trabalham longas horas. A maioria mais de 40 por semana. Muitos afligem-se para conciliar a vida profissional com a vida pessoal: 46% considera difícil, muito difícil ou extremamente difícil fazê-lo. Quase metade não tem relação conjugal (47,8%). Mais de metade não tem filhos.

Jornalistas com salário mínimo 

“Há a ideia que somos uma elite que ganha muito bem e isso não é verdade”, sublinha Sofia Branco. A média salarial é 1113 euros líquidos. “A margem de pessoas que ganha menos de mil euros [57,3%] é significativa”, lamenta. Há 21,8% a auferir entre 501 e 700 euros e 11,6% menos de 500. “Esta é uma profissão qualificada. As pessoas entram com licenciaturas e continuam a fazer formação. Muitas fazem mestrados, pós-graduações. Não acho ‘normal’ que haja jornalistas a ganhar o salário mínimo. Acho chocante que isso seja pago a alguém que tem a missão de informar”, enfatiza.

O estudo – conduzido por uma equipa do CIES/ISCTE-IUL e intitulado Os jornalistas portugueses são bem pagos? – parte de um inquérito às condições laborais composto por 78 perguntas. Entre 1 de Maio e 13 de Junho de 2016, responderam perto de 1600 jornalistas (1494 inquéritos válidos).

“Tínhamos algumas ideias sobre o que poderíamos encontrar, algumas foram confirmadas, outras desfeitas”, conta Miguel Crespo, da equipa de investigadores. “Acabámos por concluir que não há assim tantas diferenças entre homens e mulheres”, exemplifica. Não nota diferença nas horas de trabalho, na dificuldade de gerir a vida, nem nos salários baixos ou médios, apenas nos mais altos.

Longe vão os tempos em que as redacções eram um exclusivo masculino. As mulheres têm estado a ganhar terreno. Em 2016 representavam 41% dos titulares da carteira profissional, mas os homens continuam a dominar os lugares de topo. Ainda na quarta-feira o Jornal de Negócios publicou um artigo a chamar a atenção para o facto de na direcção de 16 jornais e revistas ter encontrado 50 directores e oito directoras (esqueceu-se da directora de arte do PÚBLICO).

Sofia Branco acredita que as discrepâncias de género são maiores do que este inquérito mostra. Ocorre-lhe um levantamento feito na Lusa em 2015 que indicava disparidades até superiores à média nacional. “As pessoas muitas vezes não percepcionam estas questões”, diz. “Há falta de treino.”

O estudo desfaz outras ideias feitas. Prova que há algum espaço para renovação geracional (6,6 dos jornalistas têm menos de 25 anos) e que é grande o esforço de formação continua, o que, na opinião de Miguel Crespo, revela “uma classe profissional dinâmica, interessada em evoluir”.

 “Para quem está de fora, é fácil ver um erro e embarcar numa teoria da conspiração”, concebe ainda Miguel Crespo. Os jornalistas até resistem bem às pressões externas. Sentem-se é afectados por pressões internas: “31,5% dizem ser pouco ou nada autónomos em relação às decisões das chefias, e 41% em relação às decisões das administrações”. A agenda toma-lhes demasiado tempo. É esse o maior condicionamento à sua autonomia. Seguem-se as condições de trabalho.

“Alguma coisa tem de mudar aqui – este não pode ser o único caminho porque este caminho está a levar-nos à autodestruição”, considera Sofia Branco. "Eu acho que o mundo está em crise de identidade, os jornalistas fazem parte do mundo, o mundo está constantemente a mudar e, portanto, há aqui um processo de adaptação”, entende Flor Pedroso. “A crise de identidade é também uma crise de credibilidade” e a responsabilidade, julga Fidalgo, “não é só dos jornalistas, é também das empresa, que também têm obrigações éticas".

Ana Cristina Pereira – Público – Foto Rui Gaudêncio

ASSALTO À ÚLTIMA FRONTEIRA DA LIBERDADE?


Ao contrário do que muitos leitores, ouvintes e espectadores poderão imaginar, de um modo geral os jornalistas não gozam de autonomia editorial nem sequer para escolher as áreas e os temas que tratam, nem são eles a decidir, pelo menos em última instância, o que é notícia.

Alfredo Maia* - opinião

rá útil assentarmos desde já no seguinte: os jornalistas são trabalhadores por conta de outrem, assalariados mais ou menos precários mas geralmente subordinados a uma hierarquia que o patrão estabeleceu, escolheu e mantém enquanto merecer a sua confiança. As excepções são estatisticamente negligenciáveis para o que agora importa discutir.

Pelo menos formalmente, os jornalistas gozam das garantias constitucionais da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa e do pluralismo. Mas as liberdades estão de algum modo limitadas pelos estatutos editoriais dos órgãos de informação aos quais eles prestam serviço, pelas orientações e pela disciplina editorial determinada pelas respectivas hierarquias editoriais – essas mesmas, as escolhidas pelos donos através de um sistema de delegação de confiança em cascata: os accionistas escolhem os directores; os directores escolhem os chefes de redacção, os editores de secção…

Ao contrário do que muitos leitores, ouvintes e espectadores poderão imaginar, de um modo geral os jornalistas não gozam de autonomia editorial nem sequer para escolher as áreas e os temas que tratam, nem são eles a decidir, pelo menos em última instância, o que é notícia. É à hierarquia, mais ou menos complexa, de acordo com a dimensão e/ou o modelo organizativo, que cabe estruturar as redacções, geralmente por áreas temáticas, bem como alocar a cada uma delas determinado conjunto de profissionais, coordenados por um superior hierárquico directo.

É a hierarquia editorial que distribui tarefas e aceita, ou não, as sugestões de trabalhos e estabelece as prioridades, atribui os espaços e define os destaques. Nalguns casos (os jornalistas queixam-se de tratar-se de casos a mais, com prejuízo da autonomia técnica que deveria ser-lhes reconhecida) são as chefias a determinar a orientação concreta das notícias e reportagens – os ângulos de abordagem, os pormenores a valorizar ou a desvalorizar, as perguntas a fazer, as pessoas «certas» a ouvir…

É útil termos presente esta descrição chã e simplificada da organização e funcionamento das redacções, para compreendermos as tensões de poder no seio destes organismos e as limitações e constrangimentos que elas produzem, com consequências necessariamente na qualidade da informação disponibilizada ao público. Mas também tomarmos consciência de que os próprios modelos e culturas organizativas traduzem dinâmicas inibidoras de uma expressão mais ampla da diversidade de opiniões no interior das redacções.

De um modo geral, e sem prejuízo do reconhecimento do mérito próprio nalguns casos, são as relações de poder interno que justificam o acesso ao monopólio da opinião, com direito a coluna regular, habitualmente dividido pelos detentores dos cargos de topo e intermédios da hierarquia, por um ou outro redactor, os quais, juntamente com colunistas externos, constituem a elite editorial.

É essa elite que, com frequência, ocupa simultaneamente espaços de opinião nos principais jornais e revistas, possui lugar cativo de comentário na rádios e nas televisões, determina as tendências, desenha o consenso sobre os principais temas e projecta uma agenda comum da actualidade – salvo algumas honrosas excepções.

Neste contexto, a maior parte dos jornalistas não tem acesso a esse clube, seja pela natureza restritiva resultante das relações de poder e de confiança, seja também pela compreensível escassez de espaço útil.

Não admira, por isso, que inúmeros profissionais tenham encontrado, no espaço público democratizado pela gratuitidade dos meios electrónicos, uma espécie de trincheira da liberdade de expressão, alimentando blogues e perfis em meios sociais, ora retransmitindo criações suas produzidas para os meios onde trabalham, ora publicando textos e imagens produzidos no âmbito da sua liberdade de criação, de opinião e de difusão.

É uma prática que a própria elite com o privilégio da opinião nos media muito valoriza também, replicando as suas colunas, utilizando-a como plataforma adicional para intervenções supletivas, por vezes mais acutilantes, ou versando temas diversos daqueles que habitualmente tratam.

Uns e outros fazem assim uso de uma liberdade protegida pela Declaração Universal dos Direitos do Homem1 e pela Constituição da República2 que nem sequer o malfadado Código do Trabalho põe em causa, já que os poderes de direcção e disciplinar do empregador estão limitados à organização do trabalho, não podendo estes prejudicar a liberdade de expressão e de opinião e de divulgação do pensamento e da opinião 3.

Por conseguinte, é de estranhar que, entre os jornalistas, haja quem proponha o estabelecimento de restrições à utilização de meios sociais, designadamente para expressar opiniões próprias, para subscrever opiniões de terceiros ou para manifestar apoio a posições, propostas e correntes de pensamento, políticas, religiosas e outras. Uns poucos, com acesso às colunas de opinião e aos espaços de comentários nos media, passariam a deter em definitivo o exclusivo da opinião; os restantes, a maioria, veria capturado o que resta da sua liberdade.

A tendência regulamentista, em nome da preservação da «independência» dos jornalistas e, sobretudo, para não comprometer a «independência» dos órgãos para os quais trabalham, está fazendo caminho e receia-se que desague no congresso convocado para o próximo fim-de-semana, em cujo programa se enuncia a questão «Como conciliar o exercício profissional com blogues e páginas pessoais de jornalistas profissionais em redes sociais?».

O tema não pode ser tabu, mas aconselha toda a prudência, sob pena de lançar os jornalistas numa deriva «purificadora» e de verdadeira captura do derradeiro reduto de expressão da liberdade dos seus próprios camaradas. Se tal acontecer, será uma enorme tragédia para o Jornalismo e sobretudo para a Democracia.

A questão não é isolada – e porventura não é inocente –, compaginando-se com outras lançadas para um debate, que se espera franco e democrático, que causam legítima inquietação, girando em torno de ideias aparentemente consensuais, como a «independência individual dos jornalistas» e de eventuais propostas de revisão do regime de incompatibilidades da profissão, talvez incluindo nelas a participação cívica e política, e até de previsão legal dos «conflitos de interesses».

Há quem proponha até que os jornalistas declarem regularmente os seus «interesses» – todos, dos económicos próprios e de familiares, filosóficos, ideológicos, partidários, religiosos – numa espécie de ecografia pública capaz de perscrutar até ao mais ínfimo átomo das nossas consciências e fixar indelevelmente um retrato moral a escrutinar sabe-se lá por quem.

Mas não há dúvidas de que tais derivas, se não forem travadas pelo bom senso, pela prudência e pela sã camaradagem da diferença e da diversidade, sê-lo-ão pelo menos em razão da inconstitucionalidade e pela ostensiva agressão aos direitos, liberdades e garantias dos quais os jornalistas não estão desapossados.

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1. Artigo 19.º da DUDH – Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão
2. Artigo 37.º, n.º 1 da CRP – Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.
3. Artigo 14.º do CT – É reconhecido, no âmbito da empresa, a liberdade de expressão e de divulgação do pensamento e opinião, com respeito pelos direitos de personalidade do trabalhador e do empregador, incluindo as pessoas singulares que o representam, e do normal funcionamento da empresa.


Portugal. Só a gestão pública da água garante a sua universalidade e acessibilidade


Paula Santos – Expresso, opinião

1. Os defensores da privatização dos serviços públicos de abastecimento de água e saneamento (podem chamar-lhe o que quiserem, privatização, concessão, a verdade é que há uma gestão privada em que, obviamente a sua principal preocupação não é qualidade do serviço público prestado, mas a obtenção de lucro) veem na água não um direito, mas mais uma mercadoria e uma oportunidade de negócio.

Não foi por acaso que muitos fontanários foram fechados no nosso país. Foram fechados exatamente para criar as condições de rentabilidade económica e financeira, em claro prejuízo das populações.

Embora procurem enaltecer as vantagens da gestão privada, a verdade é que no mundo se constata que há uma tendência de remunicipalização dos serviços de água. Muitas populações compreenderam da pior maneira que a privatização dos serviços públicos de água não era solução. São disso exemplo as cidades de Berlim, de Paris, de Buenos Aires, de Atlanta ou de Maputo. Há países europeus, como a Dinamarca, o Luxemburgo, a Holanda e a Áustria em que os serviços de água são exclusivamente públicos. Em Portugal conhece-se as consequências profundamente negativas da privatização dos serviços públicos de águas em Barcelos e veio a público recentemente que Mafra iria remunicipalizar os serviços públicos de água.


As razões para a remunicipalização são comuns: mau desempenho das empresas privadas, aumento de preços e das tarifas, dificuldades na monitorização da gestão privada, redução de trabalhadores e desrespeito pelos seus direitos e degradação da qualidade do serviço.

A realidade já demonstrou que só a gestão pública dos serviços de abastecimento de água e de saneamento é que defende os interesses públicos e os interesses das populações, bem como a universalidade e a acessibilidade à água.

A defesa dos serviços públicos, da gestão pública de serviços fundamentais como o abastecimento de água e saneamento não são incompatíveis com o respeito e aprofundamento da autonomia do Poder Local Democrático, contrariamente ao que alguns afirmam. O que de facto contraria a autonomia das autarquias é a inaceitável pressão e chantagem exercida sobre estas, para que avancem no sentido da agregação da rede em baixa, com vista à sua verticalização e posterior privatização. Vão ainda mais longe, as autarquias que não avançarem para a agregação em baixa não têm acesso aos fundos comunitários.

2. O PCP, dando voz às populações e aos trabalhadores, decidiu apresentar na Assembleia da República uma iniciativa legislativa que reproduz a iniciativa legislativa de cidadãos “Proteção dos direitos individuais e comuns à Água”, subscrita por mais de 44 mil cidadãos.

Quando esta iniciativa foi discutida em plenário em 2014, contou com os votos favoráveis de PCP, PEV, BE e PS, tendo sido rejeitada com os votos contra de PSD e CDS. Agora, a iniciativa foi novamente discutida e votada, tendo sido rejeitada, devido à alteração do sentido de voto do PS (que votou contra). PS, PSD e CDS optaram por defender os interesses dos grupos económicos em detrimento dos interesses das populações.

A luta em defesa da gestão pública dos serviços de abastecimento de água e de saneamento vai continuar, pelo direito das populações à água, com qualidade e a custos acessíveis.

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