Ao
contrário do que muitos leitores, ouvintes e espectadores poderão imaginar, de
um modo geral os jornalistas não gozam de autonomia editorial nem sequer para
escolher as áreas e os temas que tratam, nem são eles a decidir, pelo menos em
última instância, o que é notícia.
Alfredo Maia* - opinião
rá
útil assentarmos desde já no seguinte: os jornalistas são trabalhadores por
conta de outrem, assalariados mais ou menos precários mas geralmente
subordinados a uma hierarquia que o patrão estabeleceu, escolheu e mantém
enquanto merecer a sua confiança. As excepções são estatisticamente
negligenciáveis para o que agora importa discutir.
Pelo
menos formalmente, os jornalistas gozam das garantias constitucionais da
liberdade de expressão, da liberdade de imprensa e do pluralismo. Mas as
liberdades estão de algum modo limitadas pelos estatutos editoriais dos órgãos
de informação aos quais eles prestam serviço, pelas orientações e pela
disciplina editorial determinada pelas respectivas hierarquias editoriais –
essas mesmas, as escolhidas pelos donos através de um sistema de delegação de
confiança em cascata: os accionistas escolhem os directores; os directores
escolhem os chefes de redacção, os editores de secção…
Ao
contrário do que muitos leitores, ouvintes e espectadores poderão imaginar, de
um modo geral os jornalistas não gozam de autonomia editorial nem sequer para
escolher as áreas e os temas que tratam, nem são eles a decidir, pelo menos em
última instância, o que é notícia. É à hierarquia, mais ou menos complexa, de
acordo com a dimensão e/ou o modelo organizativo, que cabe estruturar as
redacções, geralmente por áreas temáticas, bem como alocar a cada uma delas
determinado conjunto de profissionais, coordenados por um superior hierárquico directo.
É
a hierarquia editorial que distribui tarefas e aceita, ou não, as sugestões de
trabalhos e estabelece as prioridades, atribui os espaços e define os
destaques. Nalguns casos (os jornalistas queixam-se de tratar-se de casos a
mais, com prejuízo da autonomia técnica que deveria ser-lhes reconhecida) são
as chefias a determinar a orientação concreta das notícias e reportagens – os
ângulos de abordagem, os pormenores a valorizar ou a desvalorizar, as perguntas
a fazer, as pessoas «certas» a ouvir…
É
útil termos presente esta descrição chã e simplificada da organização e
funcionamento das redacções, para compreendermos as tensões de poder no seio
destes organismos e as limitações e constrangimentos que elas produzem, com
consequências necessariamente na qualidade da informação disponibilizada ao
público. Mas também tomarmos consciência de que os próprios modelos e culturas
organizativas traduzem dinâmicas inibidoras de uma expressão mais ampla da
diversidade de opiniões no interior das redacções.
De
um modo geral, e sem prejuízo do reconhecimento do mérito próprio nalguns
casos, são as relações de poder interno que justificam o acesso ao monopólio da
opinião, com direito a coluna regular, habitualmente dividido pelos detentores
dos cargos de topo e intermédios da hierarquia, por um ou outro redactor, os
quais, juntamente com colunistas externos, constituem a elite editorial.
É
essa elite que, com frequência, ocupa simultaneamente espaços de opinião nos
principais jornais e revistas, possui lugar cativo de comentário na rádios e
nas televisões, determina as tendências, desenha o consenso sobre os principais
temas e projecta uma agenda comum da actualidade – salvo algumas honrosas
excepções.
Neste
contexto, a maior parte dos jornalistas não tem acesso a esse clube, seja pela
natureza restritiva resultante das relações de poder e de confiança, seja
também pela compreensível escassez de espaço útil.
Não
admira, por isso, que inúmeros profissionais tenham encontrado, no espaço
público democratizado pela gratuitidade dos meios electrónicos, uma espécie de
trincheira da liberdade de expressão, alimentando blogues e perfis em meios
sociais, ora retransmitindo criações suas produzidas para os meios onde
trabalham, ora publicando textos e imagens produzidos no âmbito da sua
liberdade de criação, de opinião e de difusão.
É
uma prática que a própria elite com o privilégio da opinião nos media muito
valoriza também, replicando as suas colunas, utilizando-a como plataforma
adicional para intervenções supletivas, por vezes mais acutilantes, ou versando
temas diversos daqueles que habitualmente tratam.
Uns
e outros fazem assim uso de uma liberdade protegida pela Declaração Universal
dos Direitos do Homem1 e
pela Constituição da República2 que
nem sequer o malfadado Código do Trabalho põe em causa, já que os poderes de
direcção e disciplinar do empregador estão limitados à organização do trabalho,
não podendo estes prejudicar a liberdade de expressão e de opinião e de
divulgação do pensamento e da opinião 3.
Por
conseguinte, é de estranhar que, entre os jornalistas, haja quem proponha o
estabelecimento de restrições à utilização de meios sociais, designadamente
para expressar opiniões próprias, para subscrever opiniões de terceiros ou para
manifestar apoio a posições, propostas e correntes de pensamento, políticas,
religiosas e outras. Uns poucos, com acesso às colunas de opinião e aos espaços
de comentários nos media, passariam a deter em definitivo o exclusivo da
opinião; os restantes, a maioria, veria capturado o que resta da sua liberdade.
A
tendência regulamentista, em nome da preservação da «independência» dos
jornalistas e, sobretudo, para não comprometer a «independência» dos órgãos
para os quais trabalham, está fazendo caminho e receia-se que desague no
congresso convocado para o próximo fim-de-semana, em cujo programa se enuncia a
questão «Como conciliar o exercício profissional com blogues e páginas pessoais
de jornalistas profissionais em redes sociais?».
O
tema não pode ser tabu, mas aconselha toda a prudência, sob pena de lançar os
jornalistas numa deriva «purificadora» e de verdadeira captura do derradeiro
reduto de expressão da liberdade dos seus próprios camaradas. Se tal acontecer,
será uma enorme tragédia para o Jornalismo e sobretudo para a Democracia.
A
questão não é isolada – e porventura não é inocente –, compaginando-se com
outras lançadas para um debate, que se espera franco e democrático, que causam
legítima inquietação, girando em torno de ideias aparentemente consensuais,
como a «independência individual dos jornalistas» e de eventuais propostas de
revisão do regime de incompatibilidades da profissão, talvez incluindo nelas a
participação cívica e política, e até de previsão legal dos «conflitos de
interesses».
Há
quem proponha até que os jornalistas declarem regularmente os seus «interesses»
– todos, dos económicos próprios e de familiares, filosóficos, ideológicos,
partidários, religiosos – numa espécie de ecografia pública capaz de perscrutar
até ao mais ínfimo átomo das nossas consciências e fixar indelevelmente um
retrato moral a escrutinar sabe-se lá por quem.
Mas
não há dúvidas de que tais derivas, se não forem travadas pelo bom senso, pela
prudência e pela sã camaradagem da diferença e da diversidade, sê-lo-ão pelo
menos em razão da inconstitucionalidade e pela ostensiva agressão aos direitos,
liberdades e garantias dos quais os jornalistas não estão desapossados.
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1. Artigo
19.º da DUDH – Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de
expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e
o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações
e ideias por qualquer meio de expressão
2. Artigo
37.º, n.º 1 da CRP – Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o
seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o
direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem
discriminações.
3. Artigo
14.º do CT – É reconhecido, no âmbito da empresa, a liberdade de expressão e de
divulgação do pensamento e opinião, com respeito pelos direitos de
personalidade do trabalhador e do empregador, incluindo as pessoas singulares
que o representam, e do normal funcionamento da empresa.
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