sábado, 3 de fevereiro de 2018

A PERSISTÊNCIA DA BARBÁRIE


Martinho Júnior | Luanda

1- Numa época em que a globalização é irreversível, nos processos intestinos que lhe são contraditórios persistem os sinais de barbárie, num esgotamento contínuo em dívida para com a humanidade e em completa irresponsabilidade em relação ao respeito que nos merece a Mãe Terra!

Se com os Estados Unidos a hegemonia unipolar só por via dum avassalador domínio, pela força e pela guerra psicológica em reforço de seu “soft power” pode subsistir, sem hipótese para qualquer cosmética, o arrufo do proteccionismo é mais que um passo atrás no sentido da barbárie e ainda com menos hipóteses para a cosmética: o isolamento é desde logo assumido quando se pretende continuar um “the americans first” que desde a IIª Guerra Mundial não tem feito outra coisa senão semear tensões, divisionismo, desagregação, caos, terrorismo, conflitos e guerras para impor esse domínio, agregando todos os “simpáticos” negócios que estejam de acordo com essa bárbara agenda!...

Essa “involução” está a obrigar os Estados Unidos não só a perder relacionamentos em função de suas concepções execráveis e incomportáveis para com os outros, mas a cultivar relacionamentos com aqueles estados que perfilham trilhas similares, em particular o estado sionista de Israel e as monarquias árabes que apesar do verniz, mantêm um carácter feudal e fundamentalista por via dos seus preconceitos religiosos.

Os vassalos, em nome duma democracia cosmética, aninham-se como pintos debaixo do corpo quente do império!

2- Algumas votações na Assembleia Geral da ONU resultantes de acesos debates, entre outros exemplos, são amostras comprovativas desse fenómeno contemporâneo!

A Assembleia Geral da ONU tem sido aliás palco da diplomacia da guerra psicológica do dominador para com os dominados e raros são aqueles que denunciam “o cheiro a enxofre” que exalam!

Em relação ao bloqueio contínuo e sistemático para com Cuba, só Israel e um ou dois microestados mercenários insulares estão com os Estados Unidos!

O mesmo sinal de ruptura aconteceu recentemente quando foi discutida a nefasta decisão da transferência da embaixada dos Estados Unidos para Jerusalém!

Para cúmulo, a linguagem presidencial estado unidense, não se coíbe e torna-se transparente nas definições do “the americans first”: há que estancar qualquer tipo de veleidade de migração proveniente dos “shithole countries” (Salvador, Haiti, países africanos…), justifica Trump, fazendo uso da mais injustificável linguagem!

É evidente que em Davos isso não pesou no encontro com o presidente Paul Kagame, actual presidente duma União Africana formatada pela hegemonia unipolar, tal o estado de fraqueza do continente!

O encontro parece preparar África para a nova onda de “reaganismo” que para alguns mais atentos está em fase de preparação (Donald Trump será, nesse sentido, um veículo da transição)!

3- Em nada nos surpreende os meandros artificiosos do império no seu exercício global mais retrógrado e degradante de hegemonia unipolar, conforme o tão esclarecedor “the americans first”, próprio da contínua guerra psicológica de que os Estados Unidos não se podem furtar desde as suas origens e dada a natureza de sua expansão!

O que é surpreendente é que os alvos, que são uma esmagadora maioria, assumam posições que sendo quantas vezes parte integrante das cosméticas, estão muito longe de encontrar respostas para resolver as questões que se prendem aos relacionamentos internacionais na profundidade da sua fermentação mais ambígua e fraccionante!

No preciso momento em que o presidente Trump se referiu aos “shithole counstries”, a USNavy (por via do destroyer USS Ross) e a Marinha de Guerra Real de Marrocos, realizavam exercícios navais conjuntos ao largo de Agadir, o que passava despercebido à maioria, africanos incluídos!

Os africanos estavam todos divertidos, a seguir pelas televisões mais anestesiantes as peripécias das selecções nacionais de futebol do CHAN, pois diversão e alienação fossem parte dos mecanismos de que os processos dominantes se servem para injectar o ópio da persuasão em regime de “soft power”, dando corpo à contínua guerra psicológica de que desde suas origens fazem “profissão de fé”!…

É evidente que o relacionamento bilateral entre os Estados Unidos e o Reino de Marrocos, têm muitos pontos de confluência, por exemplo:

- Marrocos é uma monarquia árabe que se aproveita da esteira de relacionamentos que os Estados Unidos mantêm com as monarquias arábicas;

- Marrocos é o país colonizador do Sahara, tal como os Estados Unidos é em relação a Porto Rico e Israel em relação ao espaço palestino;

- Marrocos é um inveterado construtor de muros (com a Argélia e com o Sahara), precisamente numa altura em que o presidente Trump procura a toda o transe realizar a sua promessa eleitoral de construir um muro com o México e o sionismo israelita expande muros em relação a Gaza e à Palestina;

- Marrocos é uma potência média e intermediária, que explora as riquezas minerais e piscatórias do Sahara ocupado e colonizado, algo similar aos apetites mantidos pelos Estados Unidos em relação praticamente a toda a África, em particular no que ao petróleo diz respeito, mesmo que os africanos (como Angola), defendam os interesses das multinacionais estado unidenses do petróleo ainda que não existisse reconhecimento diplomático!

- Marrocos passa submissamente uma esponja em relação ao facto de, tendo assaltado a Líbia e assassinado Kadafi, os Estados Unidos e alguns europeus vassalos (Grã-Bretanha, França e Itália), serem os corresponsáveis não reconhecidos pela espiral de caos e terrorismo que devassa o Sahel até ao Lago Chade, bem como pelas condições de migração humana selvagem oriunda de todos os componentes dessa imensa região, condicionando por completo e desde logo a África do Oeste, como ainda corresponsáveis para a eclosão de condições na Líbia para o reactivar da escravatura em pleno século XXI!

4- Que fazem os africanos perante esse estado de coisas e relativamente aos Estados Unidos?

Por um lado emitem tímidas declarações contra os pronunciamentos do presidente Trump quaisquer que eles sejam, inclusive os mais ofensivos à dignidade humana, por outro, assobiam para o lado em relação à presença militar do Comando África do Pentágono e de vassalos da NATO como a França, não só em Marrocos como no Sahara, mas também na transversal do Sahel dum paralelo que vai do Senegal à Somália, continuam docilmente servis face ao “diktat” do domínio avassalador!

A transição em curso nos Estados Unidos prepara o poder para um regresso republicano às suas doutrinas mais retrógradas de que fazem parte “mccartismo” e “reaganomics”, ou seja uma escalada que fará inveja aos procedimentos da “guerra fria”!

O relacionamento de Marrocos com os Estados Unidos é, em função do carácter do poder nos dois países, relativamente ambíguo: se Marrocos é tido como um aliado no combate ao terrorismo, mas além de retardar a descolonização do Sahara, foi contra a transferência da embaixada dos Estados Unidos para Jerusalém…enquanto em muitos aspectos há semelhanças entre as políticas dos poderes instalados, noutros há um espaço contraditório bastante sensível!

A docilidade, quantas vezes sinónimo de impotência, acompanha o compasso cínico dos vassalos dos Estados Unidos no âmbito da“civilização judaico-cristã ocidental”, como se o caos e o terrorismo não tivessem suas profundas razões causais, tal como os restos de colonialismo e o neocolonialismo que se vai estendendo por toda a África, quantas vezes utilizando o rótulo sugestivo da globalização!

5- Que fazem os estados africanos perante esse estado de coisas e relativamente a Marrocos?

- Colocam num segundo plano, esvaído e cada vez mais silenciado, a ocupação e a colonização do Sahara e, em relação aos muros, tudo fica num sepulcro de areias!

- Atraem Marrocos à Unidade Africana como um parceiro digno, leal e interessado na solução das questões económicas e financeiras de todo o continente, quando Marrocos se apresta à inequívoca função duma “correia de transmissão” do domínio das economias ocidentais, particularmente algumas europeias (Alemanha, Grã-Bretanha, França e Espanha) para dentro do continente!

- Promovem a luta contra a corrupção, que é uma questão sociológica transversal com influência no carácter dos seus próprios poderes, mas são incapazes de fazer sequer uma crítica contra a corrupção que anima os poderes dos Estados Unidos e do Reino de Marrocos (os poderosos “lobbies” que engendram o próprio poder, no caso de Marrocos facilitado pelo simples facto de ser monarquia), muito menos da atracção ao seu modelo de domínio por parte das elites africanas, que é algo que marca as causas profundas da própria corrupção em África (o dólar sendo moeda reitora, serve adequadamente a esse tipo de enredos artificiosos que chegam a partir do exterior)!

6- Ao não abordar muitas questões que se prendem com as razões causais dos fenómenos contemporâneos profundamente injustos, desagregadores e causadores de profundas crises, feridas e fracturas, enquanto os estados africanos preenchem um papel ultraperiférico na economia global, são os próprios africanos que se arrastam nas ambiguidades para fazer face a fenómenos como a expansão do caos e do terrorismo, ou ainda os que semeiam artificiosas rebeliões assentes em questões étnicas ou religiosas!

Os factores da desertificação do continente e a redução do espaço vital rico em terras aráveis, florestas com biodiversidade e água interior, que sob os pontos de vista físico-geográfico-ambiental estão na profundidade das razões da migração humana e reflectem também factores de corrupção, raramente são abordadas, o que diminui a argumentação dos que, como Angola, procuram que o renascimento duma África em paz encontre caminhos de viabilidade vital!

Face à guerra psicológica de quem domina, África revela por inteiro sua ambiguidade submissa, sua ignorância e sua impotência, pelo que quem domina nos termos da hegemonia unipolar recebe inequívocos sinais para ocupar o imenso espaço vazio, que será traduzido em ainda mais opressão e submissão, a corrupção maior em relação à qual todos evitam argumentar!

Martinho Júnior - Luanda, 31 de Janeiro de 2018

Imagens:
Encontro dos presidentes Donald Trump e Paul Kagame, em Davos – na esteira do que vem detrás;
Encontro do presidente Paul kagame e do Rei Mohanned VI em Adis Abeba (28ª Reunião da UA);
O USS Ross esteve em recentes manobras com navios da Marinha real de Marrocos, ao largo de Agadir;
Mapa dos muros de areia entre Marrocos e a argélia e no Sahara ocupado;
Mapa do muro em construção, entre os Estados Unidos e o México.

A consultar de Martinho Júnior:
Pistas e traumas do longo choque neoliberal – I – http://paginaglobal.blogspot.pt/2017/07/pistas-e-traumas-do-longo-choque.html
Pistas e traumas do longo choque neoliberal – II – http://paginaglobal.blogspot.pt/2017/07/pistas-e-traumas-do-longo-choque_29.html
Pistas e traumas do longo choque neoliberal – III – http://paginaglobal.blogspot.pt/2017/08/pistas-e-traumas-do-longo-choque.html
Recolonizar África, evocando um plano Marshall com África – http://paginaglobal.blogspot.pt/2017/06/recolonizar-africa-evocando-um-plano.html

A consultar:
Trump racista chama Haiti e nações africanas de países de merda – http://www.esquerdadiario.com.br/Trump-racista-chama-Haiti-e-nacoes-africanas-de-paises-de-merda
Why Donald Trump Said ‘Shithole Countries’ – https://www.thenation.com/article/why-donald-trump-said-shithole-countries
África expresa su indignación y amargura por insultos de Trump – http://www.hispantv.com/noticias/africa/365387/trump-inmigrantes-eeuu-racismo-insulto
Sahara Ocidental sob ocupação militar | Marrocos expulsa eurodeputados por medo da verdade –  http://paginaglobal.blogspot.pt/2017/10/sahara-ocidental-sob-ocupacao-militar.html
Discurso do Presidente da RASD e SG da Polisario na 41ª Conferência Europeia de Apoio e Solidariedade com o Povo Saharaui (EUCOCO) –https://porunsaharalibre.org/pt/2016/11/discurso-del-presidente-la-rasd-sg-del-polisario-ante-la-41-conferencia-europea-apoyo-solidaridad-pueblo-saharaui-eucoco/
Trump kisses up to Rwanda’s Kagame after ‘sh*thole’ comments – http://www.thezimbabwemail.com/world-news/trump-kisses-rwandas-kagame-shthole-comments/
Donald Trump, Rwanda’s Paul Kagame Meet, Ignore ‘Shithole’ Comments – http://thepearltimes.com/video-donald-trump-rwandas-paul-kagame-meet-ignore-shithole-comments/  

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