As corporações globais destroem o
planeta. Mas apoiam-se numa ideia que nasce em Platão, cresce em Santo
Agostinho e reverbera em Descartes: a de que a Alma, ou a Razão, devem vencer a
Natureza e nossos sentidos
George Monbiot | Outras
Palavras | Tradução: Inês Castilho | Imagem: Sandro
Boticelli, Agostinho de Hippo
Sabemos para onde estamos indo.
Faz muitos anos os cientistas avisam que estamos explodindo os limites ecológicos
da Terra. Sabemos bem que estamos no meio de uma ruptura climática e um colapso
ecológico. Apesar disso, parecemos fisicamente incapazes de agir a partir desse
conhecimento.
Os Estados Unidos elegeram para
presidi-los um homem que prometeu desencadear um gigantesco ataque ecológico, e
infelizmente cumpriu a
promessa. O governo do Reino Unido produziu 150
páginas de greenwash que chama de Plano
Ambiental de 25 Anos: a mesma tagarelice que governos covardes vêm
publicando nos últimos 25 anos. Como sempre, foi descrito em determinados círculos
como “um bom começo”. Nenhuma política, em lugar nenhum, é proporcional à escala do
desafio que temos diante de nós.
O que nos impede de responder à
ameaça? Durante anos suspeitei que a causa fosse ainda mais profunda que o
poder das grandes corporações e a obsessão oficial pelo crescimento econômico,
apesar de serem forças tão poderosas. Agora, graças ao livro mais profundo e de
amplo alcance que jamais li, sinto que começo a entender o que pode ser.
The Patterning
Instinct (O Instinto de Modelagem, em tradução livre), de Jeremy Lent, foi publicado
há alguns meses, mas demorei um tempo para processá-lo, já que quase cada
página me fez repensar o que considerava verdade. Unindo história cultural e
neurociência, Lent desenvolve uma nova disciplina que denomina história
cognitiva.
Desde a infância, nossas mentes
são modeladas pela cultura em que crescemos – o que produz trilhas que
aprendemos a seguir, como se fossem caminhos através de um campo de grama alta.
Ajudam a construir esses padrões de significado poderosas metáforas de raiz encravadas
em nossa linguagem. Sem conhecimento consciente, elas guiam as escolhas que
fazemos.
Lent argumenta que o caráter
peculiar ao pensamento religioso e científico do Ocidente, que dominou o resto
do mundo, empurrou a civilização humana e todo o mundo vivo para a beira do
colapso. Mas mostra também como, compreendendo suas metáforas e padrões,
podemos sair de nosso caminho e desenvolver novas trilhas através do campo de
grama, o que nos afastaria da beira do precipício.
Há muitas questões pelas quais poderíamos
começar, mas talvez uma das mais cruciais seja entender a influência do
pensamento de Platão no início da teologia cristã. Ele propôs um mundo ideal
percebido pela alma, existente numa esfera apartada do mundo material vivido
pelo corpo. Para alcançar o conhecimento puro que existe acima do mundo
material, a alma precisa separar-se dos sentidos e dos desejos do corpo. Platão
ajudou a firmar uma profunda moldura no entendimento ocidental, associando
capacidade de pensamento abstrato com alma, alma com verdade, verdade com
imortalidade.
Alguns dos primeiros pensadores
cristãos, em particular Santo Agostinho, levaram mais longe essas metáforas,
até um ponto em que não apenas o corpo humano, mas todo o mundo natural passou
a ser visto como anátema, que distrai e corrompe a alma. Deveríamos odiar nossa
vida neste mundo para assegurar a vida no próximo.
O cristianismo, por sua vez,
exerceu influência poderosa sobre o conhecimento científico moderno. Longe de
romper com padrões de pensamento anteriores, a famosa crença de
René Descartes – de que este consistia em “uma substância cuja essência ou
natureza inteira é pensar e cujo ser não requer lugar e não depende de coisas
materiais” – foi uma extensão das cosmologias platônicas e cristãs, com uma
diferença crucial: substituiu a alma pela mente.
Se nossa identidade está
estabelecida somente na mente, então, como insistiam os cristãos, nosso corpo e
o resto da natureza, sendo incapazes de ter razão, não têm valor intrínseco.
Descartes foi explícito sobre isso: ele insistiu que não há diferença “entre as
máquinas feitas por artesãos e os vários corpos criados pela própria natureza”.
A mente ou alma era sagrada, enquanto o mundo natural não possuía nem valor
inerente nem significado. Existia para ser dissecado e explorado sem remorso.
Essa visão de mundo sustentou a
revolução científica, que nos trouxe espantosas maravilhas e benefícios que
transformaram nossas vidas. Mas também incorporou em nossas mentes metáforas de
raiz catastróficas, que ajudam a explicar nossa atual relação com o mundo vivo.
Entre elas estão as noções do humano desconectado da natureza, do nosso domínio
sobre a natureza, da natureza como máquina e, mais recentemente, da mente como
software e o corpo como hardware.
Essas metáforas de raiz continuam
a informar o discurso público. O biólogo britânico Richard
Dawkins, por exemplo, argumentou que
“um morcego é uma máquina, cuja eletrônica interna está tão ligada que os
músculos de sua asa miram automaticamente os insetos”. Se uma máquina com a
complexidade, auto-organização e autoperpetuação de um morcego foi
desenvolvida, o professor Dawkins deveria nos dizer onde encontrá-la.
Num mundo em que falta
supostamente valor inerente, mas no qual muitos de nós perderam a crença na
alma imortal ou na santidade da razão pura, estamos diante de um vazio de
significado. Buscamos preenchê-lo com um consumismo desenfreado. Para mudar
nosso comportamento, afirma Lent, é preciso mudar nossas metáforas de raiz.
Isso não significa que deveríamos
abandonar a ciência: longe disso. O estudo de sistemas complexos revela a
natureza como uma série de sistemas auto-organizados, auto-regenerativos, cujos
componentes estão conectados uns aos outros de maneiras até há pouco inimagináveis.
Isso mostra que, como propôs o grande conservacionista John Muir, “Quando tentamos selecionar
uma coisa por si só, descobrimos que está atrelada a tudo o mais no universo.”
Longe de estarmos afastados da natureza ou poder dominá-la, estamos
incorporados nela, intimamente conectados a processos que nunca podemos
controlar completamente. Potencialmente, isso nos possibilita ver o próprio
universo como uma teia de significados: uma poderosa nova metáfora de raiz que
poderia, talvez, mudar a maneira como vivemos.
Há muito trabalho a fazer até
traduzir esses insights em políticas práticas. Mas me parece que Lent
explicou por que, a despeito de nosso conhecimento ou mesmo de nossas
intenções, continuamos a seguir o caminho do precipício. Para resolver um
problema, precisamos primeiro entendê-lo: “um bom começo” é assim. Não podemos
mudar o destino até que mudemos o trajeto.
*George Monbiot - Jornalista,
escritor, acadêmico e ambientalista do Reino Unido. Escreve uma coluna semanal
no jornal The Guardian.
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