Em regra, um regime autoritário
procura suprimir o poder popular amparando-se em um argumento apresentado como
“técnico”. A concentração do poder em poucas mãos não se deve, segundo esse
argumento, ao impedimento da democracia, mas sim a uma necessidade
Alexandre Ganan de Brites
Figueiredo* – de São Paulo | Correio do Brasil | opinião
Como se não houvesse outro
caminho… “Pouca política e muita administração” foi o lema da longa ditadura de
Porfírio Díaz, no México (curiosamente, esse mesmo lema foi utilizado por um
ex-prefeito de minha cidade natal, José Bonifácio-SP, no começo dos anos 90,
com o mesmo ataque ao que seria o caráter pernicioso da política). Atualmente,
esse é o mote, aqui no Brasil, dos que se apresentam como “gestores” em
oposição aos “políticos”.
Trata-se de um discurso sedutor à
primeira vista, especialmente em momentos de crise, pois ele apresenta a
solução de conflitos e o processo de tomada de decisões como meras questões
matemáticas. Bastaria, deixam deduzir, que um bom solucionador de equações
fizesse suas contas, chegasse à única solução possível e tudo estaria
resolvido. A política democrática – entendida como espaço da liberdade e do
poder popular – seria assim um empecilho ao adequado exercício da “gestão”.
Afinal, o povo não é “técnico”.
Esse pensamento subjaz ao modelo
de Estado pregado pelo neoliberalismo. Seus defensores sustentam a necessidade
da redução dos espaços do poder público; privatização de serviços,
desregulamentação da economia; dentre outros, alegando exatamente que os entes
privados seriam mais “racionais” e “técnicos” que os espaços da política.
Discurso
Tal discurso indica, muito
falsamente, a impossibilidade de um caminho diverso. Ele decreta o fim da
democracia e da esperança; a submissão do povo aos ditames de uma casta
pretensamente iluminada e mais preparada para decidir do que a maioria.
Uma frase que voltou a circular
por colunas de jornais, aulas de faculdades; análises de comentaristas de TV,
discursos em sociedades empresariais e eventos promovidos por baqueiros; além
de teses acadêmicas, ilustra esse pensamento (e sua hipocrisia): “a Constituição
brasileira não cabe no PIB do Brasil”. Ou seja, os recursos à disposição seriam
escassos e insuficientes para garantir a realização dos direitos
constitucionais do povo.
“Recursos escassos”
Porém, não se trata de um dado da
realidade, mas apenas de uma opinião. Para ressaltar isso, basta discutir onde
esses “recursos escassos” estão alocados e por quê? Ou então, indagar quanto às
razões de os mais ricos gozarem de benefícios tributários; enquanto a massa
empobrecida custeia o Estado.
Por muito que digam os “técnicos”
e “especialistas”, o problema da garantia dos direitos constitucionais não é
uma questão de insuficiência dos recursos; mas sim de apropriacao da riqueza
por uma minoria. É o fato de essa minoria ser; em geral, o berço de acadêmicos
e funcionários do Estado que leva a defesa de privilégios a ser apresentada
como “técnica” e invariável.
Portanto, há uma dupla falsidade
nesse discurso.
Luta
Primeiro, nenhuma técnica é
neutra: seja qual for, está sempre ancorada no mundo da vida e da luta,
expressando as contradições desse mundo. Há muitas soluções “técnicas”
diferentes e a escolha cabe à política. Um dia, há pouco tempo, a escravidão
foi uma solução perfeitamente técnica defendida por muitos “especialistas” de
então. Hoje, a reforma da Previdência que o governo Temer pretende emplacar é
vendida como uma necessidade técnica invariável. Contudo, a CPI do Senado
Federal concluiu o contrário, usando também uma linguagem técnica…
Em segundo lugar, a seleção dos
“especialistas” de cada turno tampouco é neutra: ela é produto da luta de
classes e de todas as tensões e desigualdades da sociedade. Para citar um
exemplo importante nosa dias de hoje, basta questionar quantos dos magistrados
brasileiros são negros para perceber a existência de disparidades e privilégios
gritantes.
E quantas são mulheres? Dados do
Censo Judiciário elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça demonstram o
predomínio de homens brancos na magistratura, enquanto tanto os homens como os
brancos são minoria na população do país.
Anti-democrático
Um governo de “técnicos” será
necessariamente anti-democrático tanto porque suas decisões são apresentadas
como o único caminho possível como porque a escolha de quem serão esses
“técnicos” está de saída maculada pela desigualdade social.
Em outras palavras, será sempre o
governo dos mais ricos em defesa dos seus interesses, sem que haja espaço
institucional possível para o questionamento e a busca por alternativas. É
exatamente isso que o neoliberalismo procura impor por meio de golpes de estado
e fraudulentas campanhas midiáticas para solapar direitos.
O Estado de Bem-Estar Social e as
instituições democráticas foram; em alguma medida, tolerados pelo capital na
segunda metade do século XX porque a existência da União Soviética o constrangia
a manter uma aparência de liberdade. Uma vez que o oponente desapareceu; vem
agora essa ofensiva sobre os direitos dos povos.
A democracia, antes peça central
da propaganda “ocidental”; passa a ser vista pelas elites econômicas como o que
sempre foi: um entrave a seus interesses. Radicalizado; o neoliberalismo exige
que o estado de exceção torne-se regra geral enquanto a tecnocracia assume o
poder dizendo a todos que não há outros caminhos.
Brasil
Hoje, no Brasil e pelo mundo, a
crise de legitimidade da política, ou melhor, do sistema político-eleitoral, é
reflexo desse déficit democrático criado pelo avanço do próprio neoliberalismo.
Partidos políticos e instituições do poder são desacreditadas, enquanto se
alastra uma propaganda acadêmica e midiática (o capital tem seus servidores
“técnicos” bem posicionados) afirmando as maravilhas do setor privado em
detrimento do setor público. Quem ganha com isso são os mais ricos.
As instituições públicas e os
partidos políticos são essenciais e devem ser fortalecidos; mas é preciso
compreender que a luta contra o avanço do estado de exceção neoliberal exige
mais que a defesa dos mecanismos da representação política.
É preciso radicalizar também a
democracia, seja com a utilização dos instrumentos constitucionais da
participação popular direta; plebiscistos e referendos, seja com novas
instituições. As experiências das conferências nacionais e a inclusão da
sociedade civil em debates tão complexos como a integração regional (com
espaços próprios no Mercosul e na Unasul) são referências a se retomar e
ampliar.
Os privilegiados
Os privilegiados de todas as
épocas sempre vêem como um cataclisma a ameaça a qualquer de seus privilégios e
reagem com violência quando um adversário toca, por pouco que seja, na sua
posição e na de sua classe.
É isso que vivenciamos
atualmente. A defesa radical da democracia e de sua expansão é o caminho; para
a preservação da política como espaço do exercício da liberdade. Ela é a chama
que pode lançar luzes sobre a escuridão da tecnocracia e do ataque aos
direitos.
*Alexandre Ganan de Brites
Figueiredo, é advogado, bacharel em História e doutor em Integração da
América Latina pelo PROLAM (Program de pós-graduação em Integração da América
Latina) da Universidade de São Paulo (USP).
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