Manuel Carvalho da Silva | Jornal
de Notícias | opinião
Certas práticas que se procuram
impor no mundo do trabalho, e as fundamentações teóricas que as acompanham,
parecem anunciar uma nova divisão do tempo conducente a uma relação metabólica
Homem/sociedade/ natureza disfuncional. Somos incitados a pôr de lado a ideia
de que a noite é para descansar, a autoconvencermo-nos de que podemos ser
plenamente ativos a qualquer das 24 horas do dia e em qualquer dia da semana.
Assim se constrói o permanente caos entre tempos de trabalho, de descanso, de
formação, de lazer, de consumo, de exercício de direitos de cidadania. É a
total desordem entre os conceitos de trabalho e de não trabalho visando a
desvalorização dos dois. Direi que está em gestação uma nova semana com estes
sete dias: segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, quinta-feira, sexta-feira,
sábado-feira, domingo-feira. Talvez a seguir se encontrem novas palavras para
substituir sábado e domingo.
Dizem-nos que nada há a fazer
perante os determinismos da financeirização da economia e da inovação
tecnológica. Daí nasce a competição internacional com todas as atividades e
tempos da nossa vida convertidos em mercadorias, bem como a necessidade
"de o sol nunca se pôr" no império do mercado em contínua expansão.
Ao mesmo tempo terá sido descoberto que afinal o Homem não é um ser social,
logo o que há a incentivar é o individualismo e a total responsabilização de
cada indivíduo pelos seus êxitos e, principalmente, pelos fracassos.
Paremos para refletir e
coloquemos algumas interrogações. i) Será que caminhamos para uma sociedade em
que cada ser humano, em particular os que trabalham, terão a totalidade dos
seus tempos de vida regulados individualmente segundo as necessidades do
mercado? ii) Será que a interação esporádica e digital substituirá os tempos de
partilha e comunhão com que se constroem a família, os grupos de amigos, os
clubes e associações? iii) Será que a necessidade "imperiosa" de
haver grandes espaços comerciais e de outros serviços e consumos abertos numa
lógica 24/7 torna desejável também o funcionamento contínuo de creches,
infantários e escolas, onde os pais possam "depositar" os filhos?
Espremendo até ao tutano a tese
de que o pleno emprego é um objetivo obsoleto, de que estamos à porta do
desaparecimento do próprio conceito "trabalho", substituído por um
difuso conceito "atividades", surgem pretensas utopias tecnológicas a
pregar que no futuro uns seres humanos trabalharão, outros não, mas todos terão
acesso a rendimentos que lhes hão de permitir escolhas livres. Mas será que vai
ser mesmo assim? As promessas de "lazer" como resultado tecnológico
esquecem duas coisas fundamentais: primeira, as verdadeiras causas do atual
desemprego de massas são fruto de uma crise financeira ainda não ultrapassada e
não de alterações tecnológicas; segunda, a tecnologia pode acelerar processos
de controlo e disciplina do trabalho desumanizados e a desregulação horária.
Quando observamos o que se passa
hoje no mundo do trabalho, vemos a efetivação do trabalho a exigir que
abdiquemos dos direitos e deveres que lhe deram dignidade: o direito e o dever
de usufruir de um salário justo e de um horário de trabalho definido e
controlável, de conciliar vida familiar com trabalho, de contribuir para
sistemas públicos, solidários e universais de saúde, de educação, de proteção
no desemprego, na doença e na reforma. Nos contratos ou acordos coletivos
"modernos", que grande parte das organizações patronais vão
apresentando, são estas as propostas que surgem para os
"privilegiados" que queiram trabalhar e manifestem total
disponibilidade nos sete dias-feira da nova semana.
A tecnologia contribuirá para o
desenvolvimento das sociedades e deve ser um meio de libertação coletiva,
poupando-nos das tarefas mais duras e abrindo horizontes à nossa emancipação,
mas isso não depende tanto da sua suposta "essência", mas sim dos
usos que lhe dermos através de processos coletivos, deliberativos e
democráticos. O melhor meio de condicionar positivamente a trajetória do
desenvolvimento tecnológico e de prevenir eventuais distopias futuras é
assegurando direitos no trabalho, regulando os seus tempos e as condições da
sua prestação.
* Investigador e professor
universitário
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