Manuel Carvalho da Silva | Jornal
de Notícias | opinião
Eduardo Lourenço, grande
ensaísta, professor e filósofo tem dito que a Europa que hoje referenciamos
como União Europeia (UE) nasceu e viveu, até à queda do Muro de Berlim ou até
1991, como "um projeto político entre parêntesis" com os Estados Unidos
da América de um lado e a União Soviética do outro. Quando esta desapareceu, o
projeto ficou ainda mais encostado ao outro parêntesis, mas à deriva no seu
todo e com os seus grandes atores políticos desorientados. Essa desorientação
agravou-se face a alterações de poderes à escala global e ao reforço do
neoliberalismo.
A social-democracia europeia não
conseguiu ou não quis interpretar objetivamente a nova situação, acentuou
contradições genéticas e, desde aí, caminha de recuo em recuo subjugada a medos
decorrentes do irrealismo do compromisso que tem com forças conservadoras:
entrega da finança e da economia aos mercados, e atribuição aos estados - que
na década anterior chegaram a ser governados na esmagadora maioria por partidos
sociais-democratas - da missão de assegurar as políticas sociais, em parte com
o Estado a financiar e os privados a executarem. A essa estratégia acrescentou
o erro de implementar uma das ideias mais desastrosas da Europa do pós-guerra:
a de que a integração económica europeia, no seu avanço, embora suscitasse
problemas haveria de inevitavelmente conduzir à união política, ou seja, esta
tornar-se-ia um facto sem necessidade de uma decisão explícita de constituição
de um Estado federal.
Enquanto a integração esteve
confinada a um núcleo relativamente homogéneo de países e não se traduziu em
muito mais do que uma união aduaneira, o projeto europeu avançou com solavancos
suportáveis. Mas quando, em sucessivos alargamentos, se expandiu para incluir
países muito diversos nos seus níveis de desenvolvimento económico e nas suas
instituições, e ao mesmo tempo se aprofundou na forma de uma União Monetária, a
impossibilidade daquele modelo de integração revelou-se na expressão de uma
crise existencial, que já tem quase dez anos e está longe de acabar.
Todo o processo de
"construção europeia" das últimas décadas dispensa a participação dos
cidadãos, não promove o diálogo, secundariza a cooperação entre povos e países.
É também por isso que a UE não é capaz de lidar com o complexo problema das
migrações. O "mais Europa" significa cada vez mais controlo, desde a
política orçamental à supervisão bancária, passando pelas políticas laborais e
sociais, as privatizações e os regimes de Segurança Social. O estado de exceção
da crise foi (e continua a ser) usado para alargar as prerrogativas da UE e
impor políticas de Direita, se necessário com suspensão da democracia e da
soberania dos países.
As mensagens que chegam do topo
da UE, nomeadamente pelas vozes sociais-democratas mais relevantes, prosseguem
reclamando "mais Europa" numa espécie de obsessão pelo abismo.
Continuam teimosamente na fuga para a frente, indiferentes ao que vem de baixo,
expresso nos protestos contínuos dos cidadãos e nas suas opções de voto, como
agora em Itália. Como convém a esta retórica europeísta, todos os que estão
contra ou desconfiam do rumo em curso são catalogados de
"antieuropeus". Se aqueles que o são efetivamente, no essencial
forças fascistas e aventureiros políticos, saem reforçados das eleições nos
países, isso pouco importa. A estratégia parece ser a de que as estruturas
europeias e os poderes que lhes estão por detrás tudo suportarão: governos
ultraconservadores ou fascistas (que os mecanismos da UE pretensamente
adaptarão), ou a gestão da desafetação popular face à União Europeia, negando a
democracia.
O caminho da "mais
Europa" sem consentimento popular acabará por aumentar as tensões. A
estrutura pode quebrar, quer a nível europeu, quer dos países. O bom senso
aconselharia ao alívio das tensões favorecendo verdadeiras reformas: um arranjo
monetário flexível no lugar da moeda única, uma devolução de políticas ao nível
nacional que dê aos governos instrumentos para realizar os programas
sufragados, espaço para a afirmação da democracia em cada país, e para a
cooperação no plano europeu em torno das questões de interesse comum.
*Investigador e professor
universitário
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