segunda-feira, 12 de março de 2018

UE: a desafetação das pessoas


Manuel Carvalho da Silva | Jornal de Notícias | opinião

Eduardo Lourenço, grande ensaísta, professor e filósofo tem dito que a Europa que hoje referenciamos como União Europeia (UE) nasceu e viveu, até à queda do Muro de Berlim ou até 1991, como "um projeto político entre parêntesis" com os Estados Unidos da América de um lado e a União Soviética do outro. Quando esta desapareceu, o projeto ficou ainda mais encostado ao outro parêntesis, mas à deriva no seu todo e com os seus grandes atores políticos desorientados. Essa desorientação agravou-se face a alterações de poderes à escala global e ao reforço do neoliberalismo.

A social-democracia europeia não conseguiu ou não quis interpretar objetivamente a nova situação, acentuou contradições genéticas e, desde aí, caminha de recuo em recuo subjugada a medos decorrentes do irrealismo do compromisso que tem com forças conservadoras: entrega da finança e da economia aos mercados, e atribuição aos estados - que na década anterior chegaram a ser governados na esmagadora maioria por partidos sociais-democratas - da missão de assegurar as políticas sociais, em parte com o Estado a financiar e os privados a executarem. A essa estratégia acrescentou o erro de implementar uma das ideias mais desastrosas da Europa do pós-guerra: a de que a integração económica europeia, no seu avanço, embora suscitasse problemas haveria de inevitavelmente conduzir à união política, ou seja, esta tornar-se-ia um facto sem necessidade de uma decisão explícita de constituição de um Estado federal.

Enquanto a integração esteve confinada a um núcleo relativamente homogéneo de países e não se traduziu em muito mais do que uma união aduaneira, o projeto europeu avançou com solavancos suportáveis. Mas quando, em sucessivos alargamentos, se expandiu para incluir países muito diversos nos seus níveis de desenvolvimento económico e nas suas instituições, e ao mesmo tempo se aprofundou na forma de uma União Monetária, a impossibilidade daquele modelo de integração revelou-se na expressão de uma crise existencial, que já tem quase dez anos e está longe de acabar.

Todo o processo de "construção europeia" das últimas décadas dispensa a participação dos cidadãos, não promove o diálogo, secundariza a cooperação entre povos e países. É também por isso que a UE não é capaz de lidar com o complexo problema das migrações. O "mais Europa" significa cada vez mais controlo, desde a política orçamental à supervisão bancária, passando pelas políticas laborais e sociais, as privatizações e os regimes de Segurança Social. O estado de exceção da crise foi (e continua a ser) usado para alargar as prerrogativas da UE e impor políticas de Direita, se necessário com suspensão da democracia e da soberania dos países.

As mensagens que chegam do topo da UE, nomeadamente pelas vozes sociais-democratas mais relevantes, prosseguem reclamando "mais Europa" numa espécie de obsessão pelo abismo. Continuam teimosamente na fuga para a frente, indiferentes ao que vem de baixo, expresso nos protestos contínuos dos cidadãos e nas suas opções de voto, como agora em Itália. Como convém a esta retórica europeísta, todos os que estão contra ou desconfiam do rumo em curso são catalogados de "antieuropeus". Se aqueles que o são efetivamente, no essencial forças fascistas e aventureiros políticos, saem reforçados das eleições nos países, isso pouco importa. A estratégia parece ser a de que as estruturas europeias e os poderes que lhes estão por detrás tudo suportarão: governos ultraconservadores ou fascistas (que os mecanismos da UE pretensamente adaptarão), ou a gestão da desafetação popular face à União Europeia, negando a democracia.

O caminho da "mais Europa" sem consentimento popular acabará por aumentar as tensões. A estrutura pode quebrar, quer a nível europeu, quer dos países. O bom senso aconselharia ao alívio das tensões favorecendo verdadeiras reformas: um arranjo monetário flexível no lugar da moeda única, uma devolução de políticas ao nível nacional que dê aos governos instrumentos para realizar os programas sufragados, espaço para a afirmação da democracia em cada país, e para a cooperação no plano europeu em torno das questões de interesse comum.

*Investigador e professor universitário

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