Lula nunca foi dono do triplex de
Guarujá, Lula foi vítima do vazamento de escutas ilegais, Lula foi para prisão
num prazo recorde de nove meses, Lula na cadeia era um desejo que procuradores
da Lava-Jato faziam gala em mostrar em público. Dizer que roubou e deve ser
preso é ver a preto e branco um processo que decorre num país em grave deriva
institucional. É aplaudir o domínio do justicialismo sobre o estado de direito
Manuel Carvalho* | opinião
Roubou, vai para a cadeia. É
muito sedutor pegar neste princípio básico da Justiça, aplicá-lo ao processo de
Lula da Silva e dormir com a consciência tranquila. É essa sensação de
segurança e de confiança que leva muitos a recusar as dúvidas, as perplexidades
e o desconforto dos que suspeitam de que há na história em concreto episódios,
suspeitas, factos e nuances que tornam este caso muito mais complexo
e insusceptível de se reduzir a tão liminar verdade.
Primeiro, porque estamos a falar de um julgamento e de uma condenação que aconteceu no Brasil entre 2016 e 2018, quando o sistema político colapsou sob os escombros da operação Lava-Jato e fez com que a Justiça se tornasse o único poder incólume à devastação institucional; segundo porque o sujeito desta história tinha todos os ingredientes para se tornar num bode expiatório dos males que assolaram o Brasil (Lula é foco de uma devoção religiosa e ao mesmo tempo de um ódio visceral); terceiro, porque num país afundado na desilusão sobre a política e cindido por um clima que dividiu o mundo entre petistas e anti-petistas, a Justiça foi contaminada pela pressão da opinião pública e pressionada pelo consenso condenatório da grande imprensa (com a Rede Globo à cabeça).
Há outros contextos que é necessário invocar. A começar pelo impeachment de Dilma Rousseff, uma encenação que pegou num fait divers (as famosas pedaladas fiscais que todos os governos de todo o mundo fazem em maior ou menor grau) para afastar uma presidente acabada de ser eleita. Mas, esqueçamos este facto para não cair na tentação de acreditar que o que está em causa é apenas uma orquestração das elites brasileiras para afastar o PT do poder.
Vamos então ao que importa: aos passos do processo que condenou e prendeu Lula e à actuação do juiz Sérgio Moro na sua tramitação. Para começar, depois de a polícia ter prendido o “doleiro” (traficante de divisas) Alberto Youssef, em Março de 2014, e de ter detectado o gigantesco esquema de corrupção em torno da Petrobras, o radar da investigação caiu onde devia cair: no Governo do PT, que tutelava a empresa pública. Altas figuras do partido foram condenadas pelo seu envolvimento no esquema, como o tesoureiro João Vaccari Neto. Mas não só: outros políticos da “base aliada” do Governo acabaram na cadeia, como o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Sérgio Moro, o juiz-estrela da Lava-Jato, porém, queria mais. Queria Lula e queria Dilma. Os jornais citavam suspeitas de que negociações sobre delações premiadas com alguns dos acusados acabavam por ser recusadas por não implicarem nem a presidente, nem o guru do PT. A obsessão do juiz com Lula, a cumplicidade que manteve com alguma imprensa para criar o pano de fundo ideal para cercar o ex-presidente, o desejo incontido de altas figuras da Lava-Jato em o ver na cadeia são elementos cruciais para legitimar a suspeita de que no processo não houve imparcialidade.
Dilma acaba por atravessar todo o processo sem nenhuma mácula. Foi necessário recorrer a uma bagatela legal para a tirar do poder. Restava Lula e para o envolver havia um flanco de ataque: um apartamento triplex em Guarujá, no sul do Estado de São Paulo, a cidade onde o ex-Presidente chegou após uma viagem de 2000 km na caixa de um camião desde Garanhuns, no Pernambuco. Lula tinha comprado aí direitos sobre um apartamento a uma cooperativa associada a um sindicato do PT, mas o empreendimento correu mal, foi vendido à construtora OAS e aqui começam os problemas. Um administrador da OAS, no âmbito de uma delação premiada, que contempla uma redução de penas aos delatores, disse à investigação que o triplex foi dado a Lula por toca de favor em contratos com a Petrobras. A pista estava aberta e Moro não a largou.
Ficou provado que a mulher de Lula, falecida no ano passado, visitou o triplex, terá sugerido modificações e chegou a ter em mãos documentos que levariam à sua posse. Mas, na verdade, nem a posse alguma vez se consumou nem a família Lula teve qualquer usufruto do triplex. Lula diria que recusaram a sua compra porque ali, sendo uma figura pública, jamais teria sossego. Mais recentemente, uma juíza de Brasília incluiu o triplex num arrolamento de bens da OAS dados como garantias num processo de dívidas a uma empresa de materiais de construção. Ou seja, um estudo do processo mostra que há legitimidade para se formularem suspeitas, para se abrir um inquérito, para que Lula se constituísse como arguido. Muitos juristas prestigiados dizem que é legítimo que tenha sido acusado e natural até que tenha sido condenado. Mas há muitos outros com o mesmo prestígio, incluindo juristas estrangeiros, que insistem numa questão essencial: uma vez que Lula nunca teve a titularidade do triplex, não se pode provar que ele trocou favores para a sua posse.
Este é, no entanto, apenas um dos muitos focos de perplexidade nesta história. Pelo meio há que analisar a atitude de Sérgio Moro em relação a este caso. Quando um ex-Presidente é alvo de uma investigação judicial por corrupção, é natural que haja cuidados redobrados, sensatez e até alguma parcimónia na forma como as diligências judiciais são feitas. Nada disso aconteceu. Moro impôs um interrogatório a Lula, detendo-o no aeroporto de São Paulo quando nem sequer era acusado, o que suscitou uma enorme vaga de protesto. Moro libertou uma escuta telefónica a uma conversa (miserável, por sinal) entre Dilma e Lula, na qual a Presidente garantia ao seu antecessor um cargo político para o proteger de qualquer veleidade do juiz – o famoso telefonema do “tchau querido”, vazado para a imprensa três horas depois de acontecer juntamente com diálogos entre a mulher de Lula e os seus filhos. O Supremo Tribunal Federal condenou esse gesto, Moro desculpou-se perante os seus juízes, mas não perante Lula.
Lula acabaria condenado a nove anos de prisão por Moro e, já este ano, a sentença seria agravada no Tribunal Regional Federal (o correspondente a um tribunal da Relação) para 12 anos e um mês. Com uma condenação em segunda instância, a carreira de Lula estava arruinada: a Lei da Ficha Limpa impedia-o de passar pelo crivo do Supremo Tribunal Eleitoral. Restava-lhe apresentar recursos e embargos. Apenas como expediente, ou como manobras dilatórias – a sentença do Tribunal Regional Federal foi votada por unanimidade, o que reduzia a zero as suas hipóteses de ver reaberta a discussão da matéria de facto que o condenou. Com as portas da prisão abertas, a defesa de Lula avança com recursos na segunda instância e procura salvação no Supremo Tribunal Federal (STF). Primeiro com um pedido de esclarecimento sobre o princípio de presunção de inocência consagrado constitucionalmente, querendo saber se o trânsito em julgado que o obrigava a ir para a cadeia acontece após a condenação na segunda instância ou apenas após uma confirmação num tribunal superior. Em paralelo, avançara com um pedido de habeas corpusque o manteria livre até à confirmação da sentença pelos tribunais superiores.
Como é sabido, a presidente do STF, Carmen Lúcia, recusou discutir o pedido de esclarecimento do preceito constitucional. Logo, o habeas corpus foi decidido à luz da jurisprudência adoptada pelo tribunal em 2016, que prescreve o trânsito em julgado após decisão da segunda instância, por seis votos contra cinco. Se o STF tivesse discutido o princípio constitucional, pelo menos a juíza Rosa Werner, que chumbou o habeas corpus, teria votado a favor da possibilidade de recurso ao tribunal superior em liberdade. Assim, Lula ficou nas mãos de Sérgio Moro.
Moro não perderia a oportunidade de mostrar que Lula é para ele um troféu fundamental na sua cruzada contra a corrupção. Mal foi notificado pela decisão do STF, decretou a sua prisão. Nem um dia tinha sequer passado. Se durante toda a semana a presidência do tribunal de segunda instância deixou passar para imprensa informações segundo as quais Lula ainda tinha ao seu dispor mais um embargo (que, sendo obviamente dilatório, seria recusado liminarmente), pelo que só na terça-feira desta semana é que deveria ser emitida a sua ordem de prisão. Não foi isso que aconteceu. Moro, de braço dado com a procuradoria, mostrou pressa, o que acabou por dar trunfos aos que suspeitam de que em causa estava uma paranóia persecutória e acirrou gratuitamente os ânimos do lulismo. A forma como se justificou é mais um monumento à sua visão da Justiça justiceira: explicou que a sua pressa procurava travar a “patologia protelatória” dos recursos, uma praga que “devia ser eliminada do mundo jurídico”. Uma garantia legal consagrada na Constituição é assim derretida numa declaração por um juiz cujo dever é defendê-la e aplicá-la.
Muito mais do que as dúvidas sobre as decisões soberanas dos tribunais, é esta atitude persecutória de juízes e procuradores da Lava-Jato que, aliadas ao clima tenso que fractura a política e a sociedade brasileira, fazem suspeitar que Lula não teve direito a um julgamento justo. Quando no dia da votação do habeas corpus o procurador e coordenador da equipa da Lava-Jato, Deltan Dellagnol, escrevia no Twitter estar de jejum e a rezar pelo seu chumbo, há algo no ar no mínimo suspeito. Quando todos os condenados da Lava-Jato tiveram entre 18 e 30 meses para esgotar todos os recursos antes de serem presos e Lula teve apenas nove meses, há no ar algo estranho. A pressa era necessária para que Lula jamais fosse candidato em Outubro, mas não é para obedecer a timings eleitorais que existem tribunais.
São, por isso, dúvidas e coincidências a mais. Lula está na prisão na sequência de um julgamento muito suspeito de contaminação política. Lula não merecia ser eleito nem o Brasil poderia tolerar que um ex-Presidente associado a um caso gigantesco de corrupção pudesse voltar a conquistar o poder. Essa é, porém, uma deliberação da democracia, não da Justiça. Como qualquer cidadão, mesmo que suspeito, mesmo que culpado, Lula tinha direito a um julgamento imparcial e a usar de todos os recursos de defesa que a lei lhe concede. Mais do que uma leitura política e ideológica do processo, é uma questão de direitos humanos que está em causa. É a certeza de que se o extremista Jair Bolsonaro fosse alvo do mesmo processo deveria merecer as mesmas dúvidas e a mesma suspeição. Em questões fundamentais como a liberdade ou as garantias de um estado de direito, o melhor mesmo é despir a camisola da ideologia e defender a sua universalidade e constância.
Primeiro, porque estamos a falar de um julgamento e de uma condenação que aconteceu no Brasil entre 2016 e 2018, quando o sistema político colapsou sob os escombros da operação Lava-Jato e fez com que a Justiça se tornasse o único poder incólume à devastação institucional; segundo porque o sujeito desta história tinha todos os ingredientes para se tornar num bode expiatório dos males que assolaram o Brasil (Lula é foco de uma devoção religiosa e ao mesmo tempo de um ódio visceral); terceiro, porque num país afundado na desilusão sobre a política e cindido por um clima que dividiu o mundo entre petistas e anti-petistas, a Justiça foi contaminada pela pressão da opinião pública e pressionada pelo consenso condenatório da grande imprensa (com a Rede Globo à cabeça).
Há outros contextos que é necessário invocar. A começar pelo impeachment de Dilma Rousseff, uma encenação que pegou num fait divers (as famosas pedaladas fiscais que todos os governos de todo o mundo fazem em maior ou menor grau) para afastar uma presidente acabada de ser eleita. Mas, esqueçamos este facto para não cair na tentação de acreditar que o que está em causa é apenas uma orquestração das elites brasileiras para afastar o PT do poder.
Vamos então ao que importa: aos passos do processo que condenou e prendeu Lula e à actuação do juiz Sérgio Moro na sua tramitação. Para começar, depois de a polícia ter prendido o “doleiro” (traficante de divisas) Alberto Youssef, em Março de 2014, e de ter detectado o gigantesco esquema de corrupção em torno da Petrobras, o radar da investigação caiu onde devia cair: no Governo do PT, que tutelava a empresa pública. Altas figuras do partido foram condenadas pelo seu envolvimento no esquema, como o tesoureiro João Vaccari Neto. Mas não só: outros políticos da “base aliada” do Governo acabaram na cadeia, como o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Sérgio Moro, o juiz-estrela da Lava-Jato, porém, queria mais. Queria Lula e queria Dilma. Os jornais citavam suspeitas de que negociações sobre delações premiadas com alguns dos acusados acabavam por ser recusadas por não implicarem nem a presidente, nem o guru do PT. A obsessão do juiz com Lula, a cumplicidade que manteve com alguma imprensa para criar o pano de fundo ideal para cercar o ex-presidente, o desejo incontido de altas figuras da Lava-Jato em o ver na cadeia são elementos cruciais para legitimar a suspeita de que no processo não houve imparcialidade.
Dilma acaba por atravessar todo o processo sem nenhuma mácula. Foi necessário recorrer a uma bagatela legal para a tirar do poder. Restava Lula e para o envolver havia um flanco de ataque: um apartamento triplex em Guarujá, no sul do Estado de São Paulo, a cidade onde o ex-Presidente chegou após uma viagem de 2000 km na caixa de um camião desde Garanhuns, no Pernambuco. Lula tinha comprado aí direitos sobre um apartamento a uma cooperativa associada a um sindicato do PT, mas o empreendimento correu mal, foi vendido à construtora OAS e aqui começam os problemas. Um administrador da OAS, no âmbito de uma delação premiada, que contempla uma redução de penas aos delatores, disse à investigação que o triplex foi dado a Lula por toca de favor em contratos com a Petrobras. A pista estava aberta e Moro não a largou.
Ficou provado que a mulher de Lula, falecida no ano passado, visitou o triplex, terá sugerido modificações e chegou a ter em mãos documentos que levariam à sua posse. Mas, na verdade, nem a posse alguma vez se consumou nem a família Lula teve qualquer usufruto do triplex. Lula diria que recusaram a sua compra porque ali, sendo uma figura pública, jamais teria sossego. Mais recentemente, uma juíza de Brasília incluiu o triplex num arrolamento de bens da OAS dados como garantias num processo de dívidas a uma empresa de materiais de construção. Ou seja, um estudo do processo mostra que há legitimidade para se formularem suspeitas, para se abrir um inquérito, para que Lula se constituísse como arguido. Muitos juristas prestigiados dizem que é legítimo que tenha sido acusado e natural até que tenha sido condenado. Mas há muitos outros com o mesmo prestígio, incluindo juristas estrangeiros, que insistem numa questão essencial: uma vez que Lula nunca teve a titularidade do triplex, não se pode provar que ele trocou favores para a sua posse.
Este é, no entanto, apenas um dos muitos focos de perplexidade nesta história. Pelo meio há que analisar a atitude de Sérgio Moro em relação a este caso. Quando um ex-Presidente é alvo de uma investigação judicial por corrupção, é natural que haja cuidados redobrados, sensatez e até alguma parcimónia na forma como as diligências judiciais são feitas. Nada disso aconteceu. Moro impôs um interrogatório a Lula, detendo-o no aeroporto de São Paulo quando nem sequer era acusado, o que suscitou uma enorme vaga de protesto. Moro libertou uma escuta telefónica a uma conversa (miserável, por sinal) entre Dilma e Lula, na qual a Presidente garantia ao seu antecessor um cargo político para o proteger de qualquer veleidade do juiz – o famoso telefonema do “tchau querido”, vazado para a imprensa três horas depois de acontecer juntamente com diálogos entre a mulher de Lula e os seus filhos. O Supremo Tribunal Federal condenou esse gesto, Moro desculpou-se perante os seus juízes, mas não perante Lula.
Lula acabaria condenado a nove anos de prisão por Moro e, já este ano, a sentença seria agravada no Tribunal Regional Federal (o correspondente a um tribunal da Relação) para 12 anos e um mês. Com uma condenação em segunda instância, a carreira de Lula estava arruinada: a Lei da Ficha Limpa impedia-o de passar pelo crivo do Supremo Tribunal Eleitoral. Restava-lhe apresentar recursos e embargos. Apenas como expediente, ou como manobras dilatórias – a sentença do Tribunal Regional Federal foi votada por unanimidade, o que reduzia a zero as suas hipóteses de ver reaberta a discussão da matéria de facto que o condenou. Com as portas da prisão abertas, a defesa de Lula avança com recursos na segunda instância e procura salvação no Supremo Tribunal Federal (STF). Primeiro com um pedido de esclarecimento sobre o princípio de presunção de inocência consagrado constitucionalmente, querendo saber se o trânsito em julgado que o obrigava a ir para a cadeia acontece após a condenação na segunda instância ou apenas após uma confirmação num tribunal superior. Em paralelo, avançara com um pedido de habeas corpusque o manteria livre até à confirmação da sentença pelos tribunais superiores.
Como é sabido, a presidente do STF, Carmen Lúcia, recusou discutir o pedido de esclarecimento do preceito constitucional. Logo, o habeas corpus foi decidido à luz da jurisprudência adoptada pelo tribunal em 2016, que prescreve o trânsito em julgado após decisão da segunda instância, por seis votos contra cinco. Se o STF tivesse discutido o princípio constitucional, pelo menos a juíza Rosa Werner, que chumbou o habeas corpus, teria votado a favor da possibilidade de recurso ao tribunal superior em liberdade. Assim, Lula ficou nas mãos de Sérgio Moro.
Moro não perderia a oportunidade de mostrar que Lula é para ele um troféu fundamental na sua cruzada contra a corrupção. Mal foi notificado pela decisão do STF, decretou a sua prisão. Nem um dia tinha sequer passado. Se durante toda a semana a presidência do tribunal de segunda instância deixou passar para imprensa informações segundo as quais Lula ainda tinha ao seu dispor mais um embargo (que, sendo obviamente dilatório, seria recusado liminarmente), pelo que só na terça-feira desta semana é que deveria ser emitida a sua ordem de prisão. Não foi isso que aconteceu. Moro, de braço dado com a procuradoria, mostrou pressa, o que acabou por dar trunfos aos que suspeitam de que em causa estava uma paranóia persecutória e acirrou gratuitamente os ânimos do lulismo. A forma como se justificou é mais um monumento à sua visão da Justiça justiceira: explicou que a sua pressa procurava travar a “patologia protelatória” dos recursos, uma praga que “devia ser eliminada do mundo jurídico”. Uma garantia legal consagrada na Constituição é assim derretida numa declaração por um juiz cujo dever é defendê-la e aplicá-la.
Muito mais do que as dúvidas sobre as decisões soberanas dos tribunais, é esta atitude persecutória de juízes e procuradores da Lava-Jato que, aliadas ao clima tenso que fractura a política e a sociedade brasileira, fazem suspeitar que Lula não teve direito a um julgamento justo. Quando no dia da votação do habeas corpus o procurador e coordenador da equipa da Lava-Jato, Deltan Dellagnol, escrevia no Twitter estar de jejum e a rezar pelo seu chumbo, há algo no ar no mínimo suspeito. Quando todos os condenados da Lava-Jato tiveram entre 18 e 30 meses para esgotar todos os recursos antes de serem presos e Lula teve apenas nove meses, há no ar algo estranho. A pressa era necessária para que Lula jamais fosse candidato em Outubro, mas não é para obedecer a timings eleitorais que existem tribunais.
São, por isso, dúvidas e coincidências a mais. Lula está na prisão na sequência de um julgamento muito suspeito de contaminação política. Lula não merecia ser eleito nem o Brasil poderia tolerar que um ex-Presidente associado a um caso gigantesco de corrupção pudesse voltar a conquistar o poder. Essa é, porém, uma deliberação da democracia, não da Justiça. Como qualquer cidadão, mesmo que suspeito, mesmo que culpado, Lula tinha direito a um julgamento imparcial e a usar de todos os recursos de defesa que a lei lhe concede. Mais do que uma leitura política e ideológica do processo, é uma questão de direitos humanos que está em causa. É a certeza de que se o extremista Jair Bolsonaro fosse alvo do mesmo processo deveria merecer as mesmas dúvidas e a mesma suspeição. Em questões fundamentais como a liberdade ou as garantias de um estado de direito, o melhor mesmo é despir a camisola da ideologia e defender a sua universalidade e constância.
Manuel Carvalho, Publico.pt | em
Carta Maior
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