O artista plástico Júlio Pomar,
que morreu esta terça-feira aos 92 anos, deixa uma obra multifacetada que
percorre mais de sete décadas, influenciada pela literatura, pela resistência
política, o erotismo e algumas viagens.
Nascido em Lisboa, em 1926, Júlio
Pomar, que gostava mais de desenhar do que de jogar à bola quando era criança,
vendeu o primeiro quadro a Almada Negreiros por seis escudos,
numa época em que era impensável viver da pintura.
Tornou-se um dos artistas mais
conceituados do século XX português, com uma obra marcada por várias estéticas,
do neorrealismo ao expressionismo e abstracionismo, e uma
profusão de temáticas abordadas e de suportes artísticos experimentados.
A obra foi dedicada sobretudo à
pintura e ao desenho, mas realizou igualmente trabalhos de gravura, escultura e
'assemblage', ilustração, cerâmica e vidro, tapeçaria, cenografia para
teatro e decoração mural em azulejo.
Desde muito jovem começou a
escrever sobre arte, tem obra poética publicada, alguma musicada e interpretada
por cantores como Carlos do Carmo e Cristina Branco.
Estudou na Escola de Artes
Decorativas António Arroio e nas Escolas de Belas-Artes de Lisboa e
Porto, tendo participado em 1942, em Lisboa, convidado por Almada Negreiros, na
VII Exposição de Arte Moderna do Secretariado de Propaganda
Nacional/Secretariado Nacional de Informação.
Fez parte da Comissão Central do
Movimento de Unidade Democrática Juvenil (MUD), e
participou ativamente nas lutas estudantis, o que lhe custou a
expulsão das Belas Artes do Porto.
Em 1947, realizou a primeira
exposição individual, no Porto, onde apresentou desenhos, e colaborou com os
jornais A Tarde, Seara Nova, Vértice, Mundo Literário e Horizonte, participando
no movimento artístico 'Os Convencidos da Morte', assim denominado por oposição
aos célebres 'Os Vencidos da Vida', grupo marcante na história da literatura
portuguesa.
A oposição ao regime de Salazar
leva-o a passar quatro meses na prisão, a apreensão de um dos seus quadros -
'Resistência' - pela polícia política, e a ocultação dos frescos com mais de
100 metros quadrados, realizados para o Cinema Batalha, no Porto.
Mesmo assim, Júlio Pomar
conseguiu desenhar e pintar na prisão - onde circulavam papel, lápis e caneta -
e fazendo um requerimento para obter materiais que lhe permitiram criar
retratos dos camaradas presos, como Mário Soares, e do quotidiano no cárcere.
Num período
inicial, neorrealista, foram marcantes algumas das suas obras, como 'O
Almoço do Trolha', 'Menina com um Gato Morto', 'Varina Comendo Melancia' ou
'O Cabouqueiro', que revelam a influência, na mesma corrente, de
escritores como Alves Redol e Soeiro Pereira Gomes, e
artistas plásticos como o brasileiro Cândido Torquato Portinari.
Nos anos 1950 viajou até Espanha,
onde estudou a obra do pintor Goya, fundou a cooperativa Gravura, em Lisboa,
para produção e divulgação de obras gráficas, que marcou várias gerações de
artistas.
Na década seguinte, foi viver
para Paris, onde esteve como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian
entre 1963 e 1966.
Desse tempo destaca-se a série de
quadros a preto e branco para ilustrar a versão de 'D. Quixote', de Aquilino
Ribeiro, tema que usou noutras pinturas e esculturas, e iniciou a série
'Tauromaquias', que exibiu em Paris, onde também participou numa mostra
dedicada ao quadro de Ingres 'Le Bain Turc', no Museu
do Louvre, em 1971.
Em entrevista à agência Lusa em
2009, Júlio Pomar recordou que a vivência em Paris, nos anos 1960, coincide com
uma rutura "mais dramática" no percurso artístico, quando
sentiu que a pintura que criava "estava a desfazer-se".
"A minha pintura estava a
desfazer-se e senti necessidade de dar-lhe uma estrutura", explicou,
acrescentando que as mudanças no seu percurso artístico foram feitas de um modo
geral sem esforço, mas naquele caso "foi esforçada".
Em Portugal, a
primeira retrospetiva da obra de Pomar foi organizada em 1978 pela
Fundação Gulbenkian e exibida na sua sede em Lisboa, também no Museu Soares dos
Reis, no Porto e, parcialmente, em Bruxelas.
Também em Paris e em Madrid
apresentou, na década de 1990, a série sobre os índios do
Alto Xingú, na Amazónia, onde passou algum tempo, e
a antológica 'Pomar/Brasil', organizada pelo Centro de Arte Moderna
da Gulbenkian, e apresentada em Lisboa, Brasília, São Paulo, e Rio de Janeiro.
Em 2004, o Sintra Museu de Arte
Moderna - Coleção Berardo apresentou uma
vasta retrospetiva intitulada
'Pomar/Autobiografia', comissariada por Marcelin Pleynet,
enquanto o Centro Cultural de Belém expôs a antologia 'A Comédia Humana',
organizada por Hellmut Wohl.
Nesse ano foi criada a Fundação
Júlio Pomar e quase uma década depois, em 2013, foi inaugurado em Lisboa o
Atelier-Museu Júlio Pomar, com um projeto arquitetónico de
reabilitação de Álvaro Siza.
Júlio Pomar também ilustrou
várias obras, como 'Guerra e Paz', de Tolstoi, 'O Romance de Camilo, de
Aquilino Ribeiro, a obra "D. Quixote", de Cervantes, "A Divina
Comédia", de Dante 'Pantagruel', de Rabelais, 'Rose et Bleu', de
Jorge Luís Borges, e 'Mensagem', de Fernando Pessoa.
Recentemente ilustrou o livro 'O
cão que comia a chuva', de Richard Zimler, distinguido com o
Prémio Bissaya Barreto de literatura para a infância.
O seu trabalho encontra-se em
edifícios e espaços públicos, nomeadamente na estação de metro do Alto dos
Moinhos (1983-84), os frescos pintados no Cinema Batalha (Porto 1946-7), e a
sala de audiência do Tribunal da Moita, com
o arquiteto Raul Hestnes Ferreira (1993), e as tapeçarias
executadas para as sedes do Montepio Geral e da Caixa Geral de Depósitos.
Escreveu os livros de ensaios
sobre pintura
'Discours sur la Cécité des Peintres' (1985), 'Da
Cegueira dos Pintores' (1986), e '- Et la Peinture?' (2000) e 'Então e a
Pintura?' (2003), e publicou os livros de poesia 'Alguns Eventos' (1992) e
«TRATAdoDITOeFeito» (2003).
É o autor do retrato oficial do
antigo Presidente da República Mário Soares.
Júlio Pomar integrou a
representação portuguesa na Bienal de São Paulo de 1953 e recebeu, entre
outros, o Prémio Associação Internacional de Críticos de Arte em 1995, o
Prémio Celpa/Vieira da Silva, em 2000, e o
Prémio Amadeo de Souza Cardoso em 2003.
Foi condecorado pelo antigo
Presidente da República Mário Soares e também por Jorge Sampaio. Em França, foi
condecorado com a comenda das Artes e das Letras.
Em 2013 recebeu o
Doutoramento Honoris Causa da Universidade de Lisboa.
Lusa | em Notícias ao Minuto
Imagem: “Resistência” – 1946 |
Obra de Júlio Pomar que foi apreendida em 1947 pelo regime fascista de Salazar.
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