Presidente deixa de lado o
Twitter e cancela cúpula com líder norte-coreano por meio de carta em papel
timbrado. Pouco depois, indica que pode voltar atrás. Opção por documento
impresso é reveladora.
Uma das declarações mais
engraçadas sobre a carta que o presidente dos Estados Unidos, Donald
Trump, escreveu
para o líder norte-coreano, Kim Jong-un, veio de Wendy Sherman, a principal
negociadora dos EUA durante o longo processo que levou ao acordo nuclear com o
Irã.
A missiva presidencial
"soa como o fluxo de consciência de um adolescente de 13 anos numa
carta de fim de namoro durante um acampamento de férias", disse
Sherman à emissora MSNBC sobre o documento com o qual Trump cancelara,
nesta quinta-feira (24/05), o tão aguardado encontro com Kim em Cingapura.
Nesta sexta-feira, porém, ele deu a entender que o encontro ainda pode
ocorrer.
O tom e a escolha de palavras da
carta – com pequenas ameaças veladas sobre o arsenal nuclear de Washington, ao
lado de elogios efusivos ao "maravilhoso diálogo" que Trump e Kim
supostamente estabeleceram – foram amplamente vistos como embaraçosos, mas
eles também são politicamente significativos.
O fato de Trump ter
deixado de lado o Twitter, seu modo favorito de se comunicar com o mundo,
para cancelar a cúpula e, em vez disso, escrever uma carta em papel
timbrado da Casa Branca para o "Caro senhor Presidente" pode ser
visto como um claro sinal de como a percepção de Trump sobre Kim – o homem
que apenas alguns meses atrás ele ironizava como "pequeno
homem-foguete" – melhorou.
Agora, após reviravoltas
impressionantes, a carta dá a entender que Trump trata Kim como um igual, o que
é uma enorme vitória para o líder de um regime que o antecessor republicano de
Trump, o ex-presidente George W. Bush, havia incluído no "eixo do
mal".
Mais difícil do que o esperado
O vaivém em torno da tão
aguardada cúpula em Cingapura, que carecia de uma agenda clara mesmo poucas
semanas antes da data marcada, não surpreende a maioria dos observadores
dos governos de Kim e Trump. Muitos deles, afinal, já haviam expressado
profundo ceticismo em relação a tais esforços de diálogo.
"Jamais esperei que isso
fosse transcorrer de forma tranquila", diz Han Park, um ex-negociador
que assegurou a libertação de dois jornalistas detidos em 2009 e facilitou a
visita do ex-presidente Jimmy Carter a Pyongyang em 1994.
Park observa que, para começar,
a Coreia do Norte nunca esteve disposta a abandonar seu arsenal nuclear
sem garantias concretas de segurança, incentivos e concessões dos EUA. E
como o governo Trump não ofereceu nenhum caminho traçado rumo à desnuclearização
– exceto vagas promessas de tornar a Coreia do Norte grande e próspera
– Pyongyang tem, na verdade, poucos motivos para esperar muito
da cúpula.
"O acordo não está lá –
nem mesmo no sentido conceitual, abstrato", diz Park, professor emérito de
relações internacionais da Universidade da Geórgia que visitou a Coreia do
Norte mais de 50 vezes.
Quando um alto funcionário
norte-coreano criticou o vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, nesta
quarta-feira (23/05), conforme insinuado na carta de Trump, sem nomear Pence,
deve ter oferecido uma boa oportunidade para a Casa Branca marcar posição. Mas,
segundo Miles Pomper, um especialista em segurança nuclear do Centro de Estudos
de Não-Proliferação, a carta já estava preparada há algum tempo.
"Acho que a Casa Branca
percebeu há cerca de uma semana que era vítima de suas próprias ilusões a
respeito de como a cúpula iria se desenrolar – em especial a crença de que a
Coreia do Norte abriria mão de sua antiga exigência de que quaisquer concessões
de sua parte fossem correspondidas de forma igual pelos EUA", diz ele.
Para Pomper, a carta de
Trump para Kim é uma tentativa de transferir qualquer culpa pelo fracasso
da cúpula para os norte-coreanos, depois de estes terem tentado fazer
o mesmo com Trump.
Falta de política unificada
O cancelamento da cúpula não
seria um golpe só para Trump, que foi a pessoa que mais propagandeou a
reunião e que, segundo relatos, esperava ser recompensado com o Prêmio Nobel da
Paz por seus esforços, mas também para seu secretário de Estado, Mike Pompeo,
que viajou duas vezes para Pyongyang para organizar o encontro.
"A abordagem de John Bolton
prevaleceu", diz Park, referindo-se ao assessor belicista de segurança
nacional de Trump, que no início deste ano escreveu o artigo A justificativa
legal para atacar antes a Coreia do Norte e que ultrajou Pyongyang ao
sugerir a Líbia como modelo para a Coreia do Norte desistir de seu arsenal
nuclear.
Para analistas, o imbróglio
em torno do cancelamento da cúpula é apenas a ponta do iceberg para problemas
mais fundamentais que assolam a Casa Branca. "Trump foi incapaz de
controlar seu próprio governo e sua própria política", avalia Park.
"O governo Trump nunca teve uma política unificada em relação à
Coreia do Norte."
A carta de Trump para Kim deixa
a porta claramente aberta para que a cúpula ainda se realize, mas especulações
sobre essa reunião são vãs enquanto a Casa Branca não apresentar uma
estratégia coerente para a Coreia do Norte que inclua incentivos concretos para
Pyongyang, avaliam analistas.
E, ao contrário do que Trump
insinuou, dizendo que Washington continuaria sua "campanha de pressão
máxima" em relação a Pyongyang, a situação do programa nuclear da Coreia
do Norte não voltou ao ponto em que estava antes da tão aguardada cúpula.
"A curto prazo, acho que Kim
obteve algum alívio da China e, em certa medida, da Coreia do Sul no que
diz respeito à aplicação de sanções e na possibilidade de novas sanções da
ONU", analisa Pomper.
Além disso, ele prevê que os EUA
terão mais dificuldades para manter uma postura de confronto,
especialmente se os sul-coreanos encararem os Estados Unidos, e não a Coreia do
Norte, como culpados pelo fracasso da cúpula.
Deutsche Welle
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