Encarceramento de crianças retoma
uma história do colonialismo, cuidadosamente esquecida: as exposições em que
indivíduos dos “povos primitivos” eram apresentados como animais nas capitais
“cultas” do Ocidente
Ariel Dorfman | Outras
Palavras | Tradução: Inês Castilho e Mauro Lopes
Quando Donald Trump acusou recentemente os “imigrantes ilegais” de querer
“invadir e infestar nosso país”, houve um clamor imediato. Afinal aquele
verbo, infestar, fora usado pelos nazistas para desumanizar judeus e
comunistas como ratos, vermes ou insetos que precisam ser erradicados.
Contudo, ninguém deveria ter se
surpreendido. O presidente tem uma longa história de atacar pessoas não brancas
como se fossem animais. Em 1989, por exemplo, reagindo ao estupro de uma mulher
branca no Central Park de Nova York, ele publicou anúncio de página inteira em quatro dos principais
jornais da cidade (a um custo total de 85 mil dólares) pedindo o
restabelecimento da pena de morte e denunciando “bandos de criminosos selvagens
perambulando pelas ruas”. Ele estava, é claro, referindo-se aos cinco jovens
negros e latinos acusados do crime, pelo qual foram condenados – e, dez anos
mais tarde, absolvidos quando um assassino e estuprador em série confessou
finalmente o crime.
Trump nunca se desculpou pelo
julgamento apressado ou opiniões cheias de ódio, que viriam a se tornar modelo
para seus ataques a imigrantes durante a campanha eleitoral de 2016 e em sua
presidência. Ele declarou muitas vezes que algumas pessoas não são seres
humanos de verdade, mas sim animais, apontando em particular para membros da
gang MS-13. Num comício em Tennessee no final de maio, ele ampliou esse tipo de investida, incitando uma multidão
frenética a gritar entusiasticamente essa palavra – “animais!” – de volta.
Dessa forma, transformou as pessoas presentes em cúmplices de seu fanatismo.
Nem são seus insultos e tiradas raciais meros floreios retóricos. Eles têm tido
consequências bem reais. Basta olhar para as gaiolas onde ficaram presas crianças sem documentação,
separadas de seus pais na fronteira EUA-México ou perto dela – como se fossem
de fato animais. Repórteres e outras pessoas sempre descreviam essas áreas de
detenção como sendo semelhante a um “zoo” ou um “canil” – para não falar de seus pais, que também estão presos
atrás de barreiras de arame, mesmo despertando muito menos atenção e protesto.
Uma história de humanos
enjaulados
Os discursos e comícios furiosos
do presidente, junto com as gaiolas e centros de detenção, trouxeram o nazismo à mente de alguns, mas talvez seja
mais esclarecedor pensar neles como ecos de um momento anterior na história, em
que comparar humanos de pele escura a animais dificilmente causava agitação.
Seria considerado parte do discurso normal, tanto na Europa quanto nos Estados
Unidos.
No final do século 19 e início do
século 20, milhões de europeus e norte-americanos consideravam perfeitamente
natural tratar certos membros de nossa espécie como se fossem bestas, quase
literalmente. Eles não se abalavam, assim sugerem os documentos históricos, com
a ideia de ver tais “animais”, tais esquisitices, exibidas em jaulas de
zoológicos literais, em eventos públicos ruidosos. Agora pode ser difícil de
acreditar, mas um número assustador de nossos antepassados já foram agrupados
em “zoológicos humanos“, onde milhares de nativos sequestrados da
Ásia, África e América Latina eram expostos a inspeção, curiosidade e escárnio,
bem como passavam, às vezes, por experimentação científica.
Hoje, tais violações
inimagináveis dos direitos humanos quase desapareceram da memória pública. Eu
mesmo ouvira apenas vagamente sobre zoos humanos, até que passei a ficar
obcecado por eles quando a pesquisa para meu último romance, Darwin’s
Ghosts (Fantasmas de Darwin), me conduziu ao mundo dos circos humanos. Descobri
que o fenômeno havia sido lançado da forma mais modesta.
Cento e setenta anos atrás – em
1848, um ano de revoluções em todo o globo – Claus Hagenbeck, um pescador de Hamburgo, na Alemanha,
decidiu cobrar para que as pessoas dessem uma olhada em algumas focas árticas
que nadavam numa grande banheira no quintal de sua casa. Logo esse primeiro
tímido passo empresarial transformou-se num negócio familiar altamente
lucrativo, com a exibição de animais selvagens, ao mesmo tempo em que Hagenbeck
alimentava crescentes demandas por bestas maravilhosas para povoar circos e
rechear coleções particulares de monarcas e outros ricos.
No final, os animais já não
bastavam. No início dos anos 1870, em conjunto com o Jardim de Aclimatação, de Paris, e empresários
norte-americanos como P.T. Barnum, a família Hagenbeck começou a explorar a
exposição de “selvagens” dos cantos mais distantes do planeta. As primeiras
vítimas desse desejo de trazer exemplares do resto da humanidade para
espectadores no Ocidente foram os lapões, exibidos num cenário feito para
parecer com uma de suas aldeias. (Impulso similar deu origem aos dioramas, que
logo começaram a florescer nos museus da história natural.)
Aquela primeira exibição em
Hamburgo dos “pequenos homens e mulheres” lapões mostrou-se tão sensacional –
foram organizadas viagens a Berlim, Leipzig e outras cidades alemãs – que o
desejo de ver humanos mais “primitivos” logo tornou-se insaciável. Caçadores
antes especializados em localizar e trazer animais selvagens para a Europa e os
Estados Unidos foram instruídos para buscar vida selvagem humana igualmente
exótica. Eles não deveriam ser, era logo estipulado, tão monstruosos a ponto de
enojar as plateias, mas também não poderiam ser bonitos a ponto de deixar de
ser bizarros.
Os lapões foram seguidos por uma multidão de habitantes originários dos
quatro cantos do planeta retirados à força de seus habitats: esquimós,
cingaleses, kalmuks, somalis, etíopes, beduínos, núbios do Alto Nilo,
aborígenes australianos, guerreiros Zulu, índios Mapuche, ilhéus Andaman do
Pacífico Sul, caçadores de cabeças de Bornéu. A lista seguia mais e mais,
conforme aqueles zoos humanos se espalhavam da Alemanha para a França,
Inglaterra, Bélgica, Espanha, Itália e Estados Unidos, países que –
coincidência! – eram justamente as potências imperiais do globo naquela época.
Representantes de grupos étnicos
de todo o planeta logo tornaram-se destaque dos pavilhões das então populares
Feiras Mundiais. Além de oferecer entretenimento para toda a família -– podem
ser pensadas como equivalentes aos reality shows da TV de hoje -– aquelas
exibições eram vendidas como experiências “educacionais” pelas empresas que
lucravam com elas. Esse painel de pessoas “pré-históricas” era uma maneira de
visitantes afluentes se espantarem e se surpreenderem com os habitantes
bizarros de terras distantes, que estavam sendo incorporados por seus países
com grande violência, via domínio colonial. De fato, era tamanha violência que
algumas das populações nativas em exibição, como diversos grupos da Patagônia e Terra do Fogo, na extremidade sul da América
Latina, já estavam então à beira da extinção. Um dos atrativos para ver
espécimes vivos daqueles estranhos homens, mulheres e crianças era fazê-lo
antes que seus últimos remanescentes, juntamente com suas línguas e culturas,
desaparecessem da face da Terra.
Mesmo que você estivesse entre os
milhões de norte-americanos e europeus que não podiam visitar pessoalmente tais
mostras populares, aldeias étnicas e zoológicos humanos, você ainda poderia
experimentar, de forma barata e indireta, aqueles outros exóticos. A imagem dos
cativos – que evidentemente foram fotografados sem seu consentimento –
eram comercializadas em escala industrial. Os cartões postais
sobre os quais seus rostos e corpos eram propagandeados logo se tornaram uma
característica da vida cotidiana, mais um modo de normatizar o zoológico
humano, lavar sua imagem, e enviá-lo para casa sem um pensamento sequer sobre
os horrores, o sofrimento daqueles cativos ou como suas crianças, maridos,
esposas, mães, pais, parentes e amigos, deixados para trás, estariam
enfrentando o trauma de ter suas pessoas amadas arrancadas de seu meio.
Nem eram tais atos repudiados
pelos mais ilustres membros daquelas sociedades “avançadas”. Pelo contrário,
muitas abduções haviam sido financiadas por instituições científicas ansiosas
por descobrir como tais espécimes poderiam encaixar-se na teoria da evolução de
Darwin. As pesquisas, por sua vez, eram apoiadas por funcionários de governo
mais que dispostos a mostrar seu respeito e apoio aos estudiosos que
investigavam as origens da humanidade. Seriam aqueles africanos e
sul-americanos inteiramente humanos, ou fariam parte dos elos perdidos da
grande cadeia de seres que desembocaram em nossa espécie? Naturalistas e
doutores eminentes não só debatiam essas questões, mas davam palestras e escreviam
tratados sobre elas e (no que era então considerado experimento científico)
perfuravam os corpos daqueles que cometeram o erro de nascer longe do chamado
mundo civilizado.
Os Ota Bengas de hoje
Hoje em dia, é claro, os
zoológicos humanos e os experimentos médicos com seres humanos vivos enjaulados
são inconcebíveis. A consciência da humanidade, consagrada na Declaração
Universal dos Direitos Humanos aprovada pela ONU há 70 anos, tornou tais práticas
infames e intoleráveis. Quem hoje poderia aceitar o destino de Ota Benga, um pigmeu do Congo que foi trancafiado com os
primatas no Zoológico do Bronx, em Nova York, em 1906, e cometeu suicídio uma
década depois, quando percebeu que nunca seria capaz de retornar à sua terra
natal? Quem entre nós levaria seus filhos para ver “elos perdidos” como os anões tailandeses, os índios da
Amazônia ou os aldeões sudaneses, como se fossem aberrações da natureza, e não
seres humanos?
Infelizmente, as congratulações
ainda devem continuar arquivadas, dada a frequência com que os mesmos impulsos
racistas ressurgem hoje, e não apenas nas diatribes intempestivas do presidente
que equiparou humanos [imigrantes] e animais (nenhuma dessas diatribes provocou
até agora indignação na maioria de seus seguidores). Uma desumanização similar
de estranhos com rostos e peles mais escuras parece animar os atuais
sentimentos de repulsa aos imigrantes em muitos países, como um desejo de
escapar da “infestação” do exterior e manter versões míticas de pureza racial e
identidade nacional. Será que somos tão distantes dos espectadores que
observavam outros seres humanos enjaulados num zoológico, há um século, sem
piscar os olhos ou sentir-se perturbados?
Em retrospecto, o que é mais
preocupante em relação aos zoológicos humanos do passado é como aqueles que
participaram de tais espetáculos degradantes foram indiferentes aos crimes
cometidos diante de seus olhos. Muitos deles julgavam-se cidadãos decentes e
esclarecidos, brilhantes defensores do progresso, da ciência e da liberdade.
Em Berlim, em 1882, a polícia
teve que ser chamada para reprimir um tumulto dos visitantes de uma exposição de 11 nativos Kaweshkarraptados na Terra do Fogo.
Milhares de visitantes, embriagados com cerveja, começaram a apedrejar as
pessoas aprisionadas, exigindo que se acasalassem em público.
O que dizer do destino de duas
mulheres Kaweshkar, cujos órgãos sexuais, depois de morrerem em cativeiro,
foram arrancados de seus corpos e enviados para ser examinados por um
proeminente pesquisador alemão interessado em descobrir como tais criaturas
poderiam ser diferentes das mulheres europeias?
Tantas décadas depois, é fácil
condenar tais ofensas. Mais difícil e doloroso é perguntar: quais injustiças
estão acontecendo agora e que consideramos ser tão normais quanto, há apenas
algumas gerações, consideravam-se normais os zoológicos humanos ou a ausência
de direitos das mulheres ou a escravidão infantil?
E a aniquilação impensada de espécies que nem conseguimos contar, a pilhagem da natureza,
a perda de sabedoria armazenada durante milênios por grupos étnicos que estão
desaparecendo rapidamente? E o encarceramento punitivo de milhões, tantas vidas
desperdiçadas? E nossa incrivelmente contraproducente “guerra às drogas” que destrói cidades, nações e vidas
desnecessariamente? Ou a nossa incapacidade de nos livrar da praga da
proliferação nuclear, da brutalidade da fome generalizada, das intermináveis
guerras dentro dos EUA, dos centros de detenção para imigrantes e seus filhos
nesse país, do espetáculo de menores sem documentos calados em jaulas e chorando por seus pais, ou os campos de refugiados transbordantes em outras partes do mundo? E quanto a
tantas crianças desterradas de seus países devastados pela guerra ou
encarceradas na pobreza? Onde está a indignação sobre eles? Quem marcha para libertá-los
de seu cativeiro estrutural? E quem percebeu as 10 mil crianças assassinadas ou
mutiladas em conflitos armados, somente em 2017, mortes invisíveispara nós?
Aqueles zoológicos humanos de um
passado não tão distante apresentam-nos uma questão aterrorizante: para quais
horrores cotidianos do mundo de hoje nossos descendentes olharão com
repugnância e revolta? Como, eles se questionarão, seus ancestrais puderam ser
tão cegos a ponto de tolerar tais transgressões contra a humanidade?
*Ariel Dorfman é escritor,
pensador e professor argentino; um dos maiores intelectuais contemporâneos da
América Latina.
Foto: Indianos da região do
Malabar (sudoeste do país) exibidos no Jardin d’Acclimatation (Paris), talvez o
mais famoso zoológico humano na virada do século XIX para o XX
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