sexta-feira, 24 de agosto de 2018

LUANDA EM DESASTRE AMBIENTAL

Martinho Júnior | Luanda

1- Em Fevereiro deste ano, a propósito dos 442 anos da cidade capital, fiz uma retrospectiva sintética de algumas das razões que conduziram a capital angolana a uma situação de desastre ambiental: LUANDA, 442 ANOS…

Nessa intervenção concluí:

“Os sonhos de independência, soberania e fortalecimento da identidade nacional, os sonhos dum amplo renascimento para o povo angolano e para os povos de África, são ainda para muito poucos que ousam enveredar pela crítica ao passado, incluindo o passado recente, numa lógica com sentido de vida que seja uma antítese à barbárie da “somalização”, mas há que romper em definitivo com todos os pesadelos que se esbatem desde o passado das grandes trevas até hoje, pelo que conhecer os termos da evolução de Luanda, é cultural e inteligentemente indispensável para, começando a romper com eles, se poder semear civilizadamente em direcção ao futuro!”

Os sonhos motivados a partir da consciência crítica que se esbate na situação da capital no presente, são contudo sonhos que, pelo desastre ambiental que se atravessa, deveriam ter sido sonhados ontem e não hoje!

Quero dizer que não foram sonhos capazes de gerar capacidades preventivas e vontade de vencer assimetrias, motivando um processo inteligente de independência e soberania que simultaneamente vencesse a inércia colonial que, em termos infraestruturais e estruturais, vem de longe no tempo e com imperativos reflexos na sociedade e na economia contemporâneas.

Para mim deveriam ter sido sonhados antes do 4 de Abril de 2002, para serem implementados desde logo no próprio dia em que se assinou o Entendimento do Luena!

Se assim não o foi, deve-se sobretudo ao facto de a terapia (de 2002 até aos nossos dias), se ter imediatamente seguido ao choque neoliberal (de 31 de Maio de 1991, conforme ao Acordo de Bicesse, até 4 de Abril de 2002, data da assinatura do Entendimento do Luena).

A manipulada contradição imposta pelo império da hegemonia unipolar, entre os que em 1992 se barricavam no petróleo, para fazer face aos que se barricaram nos “diamantes de sangue”, essência dos interesses multinacionais que inclusive estavam presentes em Angola no momento em que Angola perdia seus aliados naturais, está na raiz da inibição e essa inibição todavia, não podia passar despercebida a quem, como eu, por traumática experiência própria sabia que, ao se julgarem os oficiais presos a 2 de Março de 1986, alguns deles dos que mais combateram em sua época o tráfico ilícito de diamantes, permitiu-se fazer crescer incomensuravelmente a deriva da “somalização”!

Sem aliados socialistas geoestratégicos e sem tecido capitalista produtivo pelo simples facto até de não possuir uma economia diversificada, Angola foi entregue, de bandeja, ao pior que havia do capitalismo financeiro internacional.

Os níveis de corrupção actuais, são fruto duma maturidade de 32 anos, agravados a partir do momento em que, sem alternativas, se enveredou pela terapia capitalista neoliberal!...

Inaugurou-se assim o caminho da manipulação capitalista neoliberal em Angola, que se estende até nossos dias!...


2- Aproximando-se do que escrevi em Fevereiro de 2018 sobre o 442º aniversário de Luanda, está uma entrevista ao Jornal de Angola que se abriu à consciência crítica do Engenheiro Manuel Resende, o primeiro dos Ministros da Construção da Angola independente (http://jornaldeangola.sapo.ao/entrevista/luanda_e_desastre_arquitectonico).

À pergunta sobre “qual seria a saída, para o ordenamento da cidade e para dar uma melhor qualidade de vida aos seus habitantes”, ele respondeu com bastante lucidez, coerência, fundamento e propriedade:

“Para Luanda ser ordenada, teria que haver muita gente a sair daqui, para ir habitar outros locais, onde tivesse melhores condições de vida.

Nunca uma saída compulsiva, mas voluntária, pois é possível viver melhor noutros locais que não Luanda.

Digo mesmo que hoje Luanda é o pior sítio para viver em Angola.

Está certo que a guerra foi um factor extremamente negativo, mas não explica tudo.

Acho que a guerra e o petróleo foram os grandes males que Angola teve.

Em relação à guerra, não há que dar explicações, pois é uma verdade insofismável.

Mas em relação ao petróleo já não.

Toda a gente, sobretudo a classe dirigente, baseou-se no petróleo para traçar programas, esquecendo-se de tudo o resto: agricultura, pescas, indústria transformadora, extractiva, enfim, tudo aquilo que fazia de Angola um país com um papel importante em toda a África Austral ou mesmo em todo o continente, pelas suas imensas potencialidades”…

É evidente que, no que ao petróleo diz respeito, para mim são claramente os procedimentos típicos da terapia neoliberal que são evidentes: fica-se pelo petróleo, não se diversifica, por que é isso precisamente que corresponde ao “diktat”neoliberal das “políticas de portas abertas ao capital financeiro multinacional” de que se anima o império da hegemonia unipolar e dá-se com isso corpo ao domínio de 1 % sobre tudo o resto, ao sabor dos interesses exclusivos duma aristocracia financeira mundial que pretende “eternizar” África como um produtor de matérias-primas e fornecedor de mão-de-obra barata, movendo inclusive nesse sentido as novas tecnologias empenhadas nos processos de globalização de acordo apenas com a feição desse domínio!

Quem tem, como eu, consciência crítica anti-imperialista, deve evidenciar esses termos, por que o custo em relação a Angola é a introdução de expedientes de neocolonização, que estão a pôr em causa independência e soberania, inibindo a se encontrarem capacidades de luta contra o subdesenvolvimento de acordo com uma lógica com sentido de vida geradora duma geoestratégia para se alcançar o desenvolvimento sustentável que trará mais felicidade e identidade ao povo angolano e permitirá um futuro inteligente, seguro e digno para as novas gerações!

As assimetrias fazem parte desse subdesenvolvimento do presente e, o que é mais grave, impedem a assunção da independência e da soberania, por que são ainda os planos coloniais (económicos, infraestruturais e estruturais) que têm expressão, tendo sido agravados a partir do Acordo de Bicesse a 31 de Maio de 1991!...


3- Neste mês de Agosto de 2018, o Ministério das Pescas, por causa dum surto de cólera que surgiu intempestivo na praia da Mabunda, à Samba, precisamente no lugar de desembarque do pescado de cada dia que em grande parte alimenta a cidade capital, fechou e isolou o local, obrigando à recepção e comércio do peixe na Boavista, passando-se assim, para efeitos de desembarque e comércio, das baías do Mussulo, para a baía de Luanda.

Na praia da Mabunda, ou muito próximo dela, vão desembocar várias valas de drenagem a céu aberto, pelo que toda a boca da baía do Mussulo, está contaminada, por tabela a praia que tem servido à recepção e comércio do pescado…

De facto este assunto merece ser estudado muito para além das medidas paliativas que se tomaram em tempo oportuno, que ultrapassam em muito, obviamente, um estudo para além do papel corrente das autoridades e do próprio Ministério das Pescas!

Não está em causa esse justo papel preventivo, mas avaliar quanto esse papel continua a ser, ao-fim-e-ao-cabo apenas um paliativo, incapaz de por si dar ignição a decisões geoestratégicas em relação a Luanda, decisões essas que são prementes (por que são “para ontem”) e que naturalmente se impõem, correspondendo à lógica com sentido de vida que urge soberanamente cultivar!

A concentração populacional em Luanda, à volta de 1/3 da população total de Angola, deve ser encarada e estudada em todas as suas implicações, tendo em conta essencialmente três fenómenos naturais e ambientais de vulto:

- A planície do litoral onde se encontra Luanda, a maior da costa de Angola, que se estende do Dondo, 200 km para o interior, ao oceano;

- A fluência nessa planície do litoral, de norte para sul, dos cursos, num meridiano com 300km de extensão, do M’Bridge, do Loge, do Dange, do Bengo, do Cuanza, do Longa e do Queve, o que provoca o lançamento na costa dum turbilhão sedimentar imenso arrastado pelas suas águas, sedimentos esses que contribuem para a formação aluvionar das baías do Mussulo e de Luanda;

- A corrente fria de Benguela que, oriunda do sul, recebe os aluviões desses rios e deposita sobretudo nas restingas do Mussulo e da Ilha de Luanda grande parte deles, um fenómeno que aliás se verifica em toda a costa de Angola, desde a foz do Cunene até à embocadura do poderoso Congo.

Uma das principais conclusões óbvias é que, mesmo que se apliquem as mais modernas concepções de respeito pela natureza, seguindo as mais clarividentes trilhas de preservação do ambiente, face aos fenómenos globais do aquecimento e do desaparecimento das espécies, até aos fenómenos implicados na planície costeira angolana e no mar territorial do país, é incomportável para uma planície do litoral conforme a que integra Luanda, albergar tanta população, sob pena dos riscos ambientais crescerem exponencialmente e sem remissão!

Neste momento, Luanda deveria já estar a ser encarada como um fulcro urbano de tal ordem que obriga, mais cedo que tarde, a um ciclo de refugiados climático-ambientais que farão o percurso inverso ao que fizeram por causa dos ciclo neoliberal do choque e da terapia!...


4- O Ministério das Pescas, em relação ao casco urbano de Luanda e ao território angolano, tendo em conta os fenómenos ambientais e humanos, deve assim, no meu entender, dar início a dois ciclos estratégicos de orientação de sua premente acção, que deveria estar integrada num programa muito mais amplo:

- O ciclo do litoral, de forma a reformular toda a capacidade de pesca fornecedora de alimentação a Luanda, incluindo nos seus impactos relativos às áreas de reprodução e às medidas de protecção a decidir, assim como às medidas de recepção, comércio e distribuição do pescado;

- O ciclo do interior, de forma a absorver uma parte da população implicada na pesca, que pode e deve sair do litoral para ser colocada nos fluxos dos rios com acesso à planície costeira, diversificando o fornecimento, os modelos de recepção e comércio do pescado, bem como os métodos de reprodução.

Dessa maneira, grosso modo, torna-se possível um processo integrador e articulado entre o potencial costeiro e marítimo, com o potencial fluvial.

Os estudos a fomentar de acordo com essa estratégia, implicam inclusive grandes e pequenas estruturas e obras, pois os quesitos inerentes à própria pesca, assim como os relativos aos novos portos de pesca, às respectivas lotas e aos dispositivos de armazenamento e comércio por grosso, só devem obedecer estritamente às decisões em conformidade, a tomar.

Nenhuma entidade privada é capaz de conduzir por si uma acção com essas características e envergadura, capaz de contribuir para se vencerem assimetrias, pelo que esse é um dos imensos desafios urgentes que se oferecem ao estado angolano!

5- No ciclo do litoral, o facto do casco urbano de Luanda ser um poluidor crónico e sem remissão a curto-médio prazos, particularmente no triângulo cujo vértice interior (a leste) é Catete e os outros dois (a oeste) são a foz do Bengo e a foz do Cuanza, nenhum porto de pesca, nenhuma lota pode ser estabelecida quer dentro da baía do Mussulo, quer dentro da baía de Luanda, quer ainda nas suas costas banhadas pelas ondas oceânicas.

Por outro lado, tendo em conta que a corrente fria de Benguela se desloca ao longo da costa de sul para norte, os portos de pesca e as lotas abastecedoras de Luanda, devem estar a sul da foz do Cuanza, podendo servir para isso Cabo Ledo e Porto Amboim.

Mesmo Ambriz não é a alternativa recomendável, uma vez que a contaminação no oceano, proveniente dos resíduos lançados a partir do casco urbano de Luanda, flui na sua direcção.

Corrobora a favor desse critério o facto de rios como o Queve e o Longa, situados nas imediações respectivamente de Porto Amboim e do Cabo Ledo, depositarem menos aluviões no oceano que o conjunto de rios mais a norte, pois seus caudais são menores e menos intensos que o do Cuanza.

Corrobora ainda a esse favor o facto da pesca ao redor dessas localidades e em águas territoriais (até 12 milhas da linha de costa), poder ser feita em águas menos poluídas por que os rios a sul dessas duas localidades, possuem também fluxos menores e relativamente menos intensos, depositando no oceano menos aluviões do que do Cuanza para norte.

Em Porto Amboim, tendo em conta as responsabilidades ambientais inerentes às características recomendáveis de porto de pesca e lota que estou a vislumbrar, não devem ser implantadas mais indústrias do que aquelas que actualmente lá estão, devendo-se buscar alternativas de implantação mais a norte, da foz do Dange à foz do Congo.

Essa medida, retirando do casco de Luanda os portos e as lotas de pesca, são prementes por que assim é possível retirar a recepção do peixe e a sua comercialização por grosso duma área de crónica poluição, com os amplos riscos que isso comporta, inclusive nas actuais decisões paliativas.

6- No ciclo do interior, criando piscicultura ao longo dos cursos médios dos rios, ou seja, em direcção ao interior, mas salvaguardando as nascentes e os cursos iniciais (a definir em cada um deles).

Essa piscicultura não tem necessariamente de ser feita no leito dos rios (por que é necessário neles a preservação das suas características e das espécies aquáticas), mas instalando as técnicas nas suas proximidades e tirando partido das espécies endógenas.

A título de exemplo: essas actividades, a desenvolver na periferia do Cuanza, deverão estender-se sobretudo entre o Dondo e o Dando (comuna da província do Bié).

Esses centros piscícolas, deverão ser sobretudo implantados no planalto, antes dos fluxos entrarem nos desníveis mais acentuados da cordilheira montanhosa que se distende da serra da Mucaba à Chela, podendo ou não acompanhar actividades agrícolas e pecuárias.

7- A situação de desastre ambiental permanente em Luanda, verificável através dos mais diversos índices e reflectindo-se nas estatísticas de mortalidade humana e nas suas causas, é decorrente de subdesenvolvimento e das assimetrias nacionais, pelo que é urgente arquitectar-se, nos termos de desenvolvimento sustentável a decorrer a muito longo prazo, a implantação duma nova capital, capaz de revolucionar a economia e a implantação de infraestruturas e estruturas, assumindo independência e soberania e fazendo-se finalmente esbater o que por arrasto reflecte ainda a implantação colonial!

A capital do futuro, deveria ser implantada algures, a norte do troço do Caminho de Ferro de Benguela, entre Catabola e Camacupa, próximo do centro geodésico do país mas à ilharga da margem esquerda do rio Cuanza, de forma a não contaminar o seu curso médio.

Enquanto assim não se proceder, os angolanos continuam não só presos ao passado mas, na sua capital, estão e estarão a mercê do aquecimento global, agravando a situação do desastre que desde 1991, pela conjugação de factores físico-ambientais e humanos, começou a ser Luanda!

Amanhã será, definitivamente, demasiado tarde!...

Martinho Júnior - Luanda, 19 de Agosto de 2018

Imagens:
Mapa em que se evidencia o quadrilátero crítico da costa ao redor de Luanda;
Praia da Mabunda, afectada pela poluição e pela falta de higiene, proporcionou um surto de cólera;
Baía de Porto Amboim;
Baía de Cabo Ledo

Sem comentários:

Mais lidas da semana