Martinho Júnior | Luanda
1- Em Fevereiro deste ano, a
propósito dos 442 anos da cidade capital, fiz uma retrospectiva sintética de
algumas das razões que conduziram a capital angolana a uma situação de desastre
ambiental: LUANDA, 442 ANOS…
Nessa intervenção concluí:
“Os sonhos de independência,
soberania e fortalecimento da identidade nacional, os sonhos dum amplo
renascimento para o povo angolano e para os povos de África, são ainda para
muito poucos que ousam enveredar pela crítica ao passado, incluindo o passado recente,
numa lógica com sentido de vida que seja uma antítese à barbárie da
“somalização”, mas há que romper em definitivo com todos os pesadelos que se
esbatem desde o passado das grandes trevas até hoje, pelo que conhecer os
termos da evolução de Luanda, é cultural e inteligentemente indispensável para,
começando a romper com eles, se poder semear civilizadamente em direcção ao
futuro!”
Os sonhos motivados a partir da
consciência crítica que se esbate na situação da capital no presente, são
contudo sonhos que, pelo desastre ambiental que se atravessa, deveriam ter sido
sonhados ontem e não hoje!
Quero dizer que não foram sonhos
capazes de gerar capacidades preventivas e vontade de vencer assimetrias,
motivando um processo inteligente de independência e soberania que
simultaneamente vencesse a inércia colonial que, em termos infraestruturais e
estruturais, vem de longe no tempo e com imperativos reflexos na sociedade e na
economia contemporâneas.
Para mim deveriam ter sido
sonhados antes do 4 de Abril de 2002, para serem implementados desde logo no
próprio dia em que se assinou o Entendimento do Luena!
Se assim não o foi, deve-se
sobretudo ao facto de a terapia (de 2002 até aos nossos dias), se ter
imediatamente seguido ao choque neoliberal (de 31 de Maio de 1991, conforme ao
Acordo de Bicesse, até 4 de Abril de 2002, data da assinatura do Entendimento
do Luena).
A manipulada contradição imposta
pelo império da hegemonia unipolar, entre os que em 1992 se barricavam no
petróleo, para fazer face aos que se barricaram nos “diamantes de sangue”,
essência dos interesses multinacionais que inclusive estavam presentes em
Angola no momento em que
Angola perdia seus aliados naturais, está na raiz da inibição
e essa inibição todavia, não podia passar despercebida a quem, como eu, por
traumática experiência própria sabia que, ao se julgarem os oficiais presos a 2
de Março de 1986, alguns deles dos que mais combateram em sua época o tráfico
ilícito de diamantes, permitiu-se fazer crescer incomensuravelmente a deriva
da “somalização”!
Sem aliados socialistas
geoestratégicos e sem tecido capitalista produtivo pelo simples facto até de
não possuir uma economia diversificada, Angola foi entregue, de bandeja, ao
pior que havia do capitalismo financeiro internacional.
Os níveis de corrupção actuais,
são fruto duma maturidade de 32 anos, agravados a partir do momento em que, sem
alternativas, se enveredou pela terapia capitalista neoliberal!...
Inaugurou-se assim o caminho da
manipulação capitalista neoliberal em Angola, que se estende até nossos
dias!...
2- Aproximando-se do que escrevi
em Fevereiro de 2018 sobre o 442º aniversário de Luanda, está uma entrevista ao
Jornal de Angola que se abriu à consciência crítica do Engenheiro Manuel
Resende, o primeiro dos Ministros da Construção da Angola independente (http://jornaldeangola.sapo.ao/entrevista/luanda_e_desastre_arquitectonico).
À pergunta sobre “qual seria
a saída, para o ordenamento da cidade e para dar uma melhor qualidade de vida
aos seus habitantes”, ele respondeu com bastante lucidez, coerência, fundamento
e propriedade:
“Para Luanda ser ordenada, teria que haver muita gente a sair daqui, para ir habitar outros locais, onde tivesse melhores condições de vida.
Nunca uma saída compulsiva, mas
voluntária, pois é possível viver melhor noutros locais que não Luanda.
Digo mesmo que hoje Luanda é o
pior sítio para viver em Angola.
Está certo que a guerra foi um
factor extremamente negativo, mas não explica tudo.
Acho que a guerra e o petróleo
foram os grandes males que Angola teve.
Em relação à guerra, não há que
dar explicações, pois é uma verdade insofismável.
Mas em relação ao petróleo já
não.
Toda a gente, sobretudo a classe
dirigente, baseou-se no petróleo para traçar programas, esquecendo-se de tudo o
resto: agricultura, pescas, indústria transformadora, extractiva, enfim, tudo
aquilo que fazia de Angola um país com um papel importante em toda a África
Austral ou mesmo em todo o continente, pelas suas imensas potencialidades”…
É evidente que, no que ao
petróleo diz respeito, para mim são claramente os procedimentos típicos da
terapia neoliberal que são evidentes: fica-se pelo petróleo, não se
diversifica, por que é isso precisamente que corresponde ao “diktat”neoliberal
das “políticas de portas abertas ao capital financeiro multinacional” de
que se anima o império da hegemonia unipolar e dá-se com isso corpo ao domínio de
1 % sobre tudo o resto, ao sabor dos interesses exclusivos duma aristocracia
financeira mundial que pretende “eternizar” África como um produtor
de matérias-primas e fornecedor de mão-de-obra barata, movendo inclusive nesse
sentido as novas tecnologias empenhadas nos processos de globalização de acordo
apenas com a feição desse domínio!
Quem tem, como eu, consciência
crítica anti-imperialista, deve evidenciar esses termos, por que o custo em
relação a Angola é a introdução de expedientes de neocolonização, que estão a
pôr em causa independência e soberania, inibindo a se encontrarem capacidades
de luta contra o subdesenvolvimento de acordo com uma lógica com sentido de
vida geradora duma geoestratégia para se alcançar o desenvolvimento sustentável
que trará mais felicidade e identidade ao povo angolano e permitirá um futuro
inteligente, seguro e digno para as novas gerações!
As assimetrias fazem parte desse
subdesenvolvimento do presente e, o que é mais grave, impedem a assunção da
independência e da soberania, por que são ainda os planos coloniais
(económicos, infraestruturais e estruturais) que têm expressão, tendo sido
agravados a partir do Acordo de Bicesse a 31 de Maio de 1991!...
3- Neste mês de Agosto de 2018, o
Ministério das Pescas, por causa dum surto de cólera que surgiu intempestivo na
praia da Mabunda, à Samba, precisamente no lugar de desembarque do pescado de
cada dia que em grande parte alimenta a cidade capital, fechou e isolou o
local, obrigando à recepção e comércio do peixe na Boavista, passando-se assim,
para efeitos de desembarque e comércio, das baías do Mussulo, para a baía de
Luanda.
Na praia da Mabunda, ou muito
próximo dela, vão desembocar várias valas de drenagem a céu aberto, pelo que
toda a boca da baía do Mussulo, está contaminada, por tabela a praia que tem
servido à recepção e comércio do pescado…
De facto este assunto merece ser
estudado muito para além das medidas paliativas que se tomaram em tempo oportuno,
que ultrapassam em muito, obviamente, um estudo para além do papel corrente das
autoridades e do próprio Ministério das Pescas!
Não está em causa esse justo
papel preventivo, mas avaliar quanto esse papel continua a ser,
ao-fim-e-ao-cabo apenas um paliativo, incapaz de por si dar ignição a decisões
geoestratégicas em relação a Luanda, decisões essas que são prementes (por que
são “para ontem”) e que naturalmente se impõem, correspondendo à lógica
com sentido de vida que urge soberanamente cultivar!
A concentração populacional em
Luanda, à volta de 1/3 da população total de Angola, deve ser encarada e
estudada em todas as suas implicações, tendo em conta essencialmente três
fenómenos naturais e ambientais de vulto:
- A planície do litoral onde se
encontra Luanda, a maior da costa de Angola, que se estende do Dondo, 200 km para o interior, ao
oceano;
- A fluência nessa planície do
litoral, de norte para sul, dos cursos, num meridiano com 300km de extensão, do
M’Bridge, do Loge, do Dange, do Bengo, do Cuanza, do Longa e do Queve, o que
provoca o lançamento na costa dum turbilhão sedimentar imenso arrastado pelas
suas águas, sedimentos esses que contribuem para a formação aluvionar das baías
do Mussulo e de Luanda;
- A corrente fria de Benguela
que, oriunda do sul, recebe os aluviões desses rios e deposita sobretudo nas
restingas do Mussulo e da Ilha de Luanda grande parte deles, um fenómeno que
aliás se verifica em toda a costa de Angola, desde a foz do Cunene até à embocadura
do poderoso Congo.
Uma das principais conclusões
óbvias é que, mesmo que se apliquem as mais modernas concepções de respeito
pela natureza, seguindo as mais clarividentes trilhas de preservação do
ambiente, face aos fenómenos globais do aquecimento e do desaparecimento das
espécies, até aos fenómenos implicados na planície costeira angolana e no mar
territorial do país, é incomportável para uma planície do litoral conforme a
que integra Luanda, albergar tanta população, sob pena dos riscos ambientais
crescerem exponencialmente e sem remissão!
Neste momento, Luanda deveria já
estar a ser encarada como um fulcro urbano de tal ordem que obriga, mais cedo
que tarde, a um ciclo de refugiados climático-ambientais que farão o percurso
inverso ao que fizeram por causa dos ciclo neoliberal do choque e da
terapia!...
4- O Ministério das Pescas, em
relação ao casco urbano de Luanda e ao território angolano, tendo em conta os
fenómenos ambientais e humanos, deve assim, no meu entender, dar início a dois
ciclos estratégicos de orientação de sua premente acção, que deveria estar
integrada num programa muito mais amplo:
- O ciclo do litoral, de forma a
reformular toda a capacidade de pesca fornecedora de alimentação a Luanda,
incluindo nos seus impactos relativos às áreas de reprodução e às medidas de
protecção a decidir, assim como às medidas de recepção, comércio e distribuição
do pescado;
- O ciclo do interior, de forma a
absorver uma parte da população implicada na pesca, que pode e deve sair do litoral
para ser colocada nos fluxos dos rios com acesso à planície costeira,
diversificando o fornecimento, os modelos de recepção e comércio do pescado,
bem como os métodos de reprodução.
Dessa maneira, grosso modo,
torna-se possível um processo integrador e articulado entre o potencial
costeiro e marítimo, com o potencial fluvial.
Os estudos a fomentar de acordo
com essa estratégia, implicam inclusive grandes e pequenas estruturas e obras,
pois os quesitos inerentes à própria pesca, assim como os relativos aos novos
portos de pesca, às respectivas lotas e aos dispositivos de armazenamento e
comércio por grosso, só devem obedecer estritamente às decisões em
conformidade, a tomar.
Nenhuma entidade privada é capaz
de conduzir por si uma acção com essas características e envergadura, capaz de
contribuir para se vencerem assimetrias, pelo que esse é um dos imensos
desafios urgentes que se oferecem ao estado angolano!
5- No ciclo do litoral, o facto
do casco urbano de Luanda ser um poluidor crónico e sem remissão a curto-médio
prazos, particularmente no triângulo cujo vértice interior (a leste) é Catete e
os outros dois (a oeste) são a foz do Bengo e a foz do Cuanza, nenhum porto de
pesca, nenhuma lota pode ser estabelecida quer dentro da baía do Mussulo, quer
dentro da baía de Luanda, quer ainda nas suas costas banhadas pelas ondas
oceânicas.
Por outro lado, tendo em conta
que a corrente fria de Benguela se desloca ao longo da costa de sul para norte,
os portos de pesca e as lotas abastecedoras de Luanda, devem estar a sul da foz
do Cuanza, podendo servir para isso Cabo Ledo e Porto Amboim.
Mesmo Ambriz não é a alternativa
recomendável, uma vez que a contaminação no oceano, proveniente dos resíduos
lançados a partir do casco urbano de Luanda, flui na sua direcção.
Corrobora a favor desse critério
o facto de rios como o Queve e o Longa, situados nas imediações respectivamente
de Porto Amboim e do Cabo Ledo, depositarem menos aluviões no oceano que o
conjunto de rios mais a norte, pois seus caudais são menores e menos intensos
que o do Cuanza.
Corrobora ainda a esse favor o
facto da pesca ao redor dessas localidades e em águas territoriais (até 12 milhas da linha de
costa), poder ser feita em águas menos poluídas por que os rios a sul dessas
duas localidades, possuem também fluxos menores e relativamente menos intensos,
depositando no oceano menos aluviões do que do Cuanza para norte.
Essa medida, retirando do casco
de Luanda os portos e as lotas de pesca, são prementes por que assim é possível
retirar a recepção do peixe e a sua comercialização por grosso duma área de
crónica poluição, com os amplos riscos que isso comporta, inclusive nas actuais
decisões paliativas.
6- No ciclo do interior, criando
piscicultura ao longo dos cursos médios dos rios, ou seja, em direcção ao
interior, mas salvaguardando as nascentes e os cursos iniciais (a definir em
cada um deles).
Essa piscicultura não tem
necessariamente de ser feita no leito dos rios (por que é necessário neles a
preservação das suas características e das espécies aquáticas), mas instalando
as técnicas nas suas proximidades e tirando partido das espécies endógenas.
A título de exemplo: essas
actividades, a desenvolver na periferia do Cuanza, deverão estender-se sobretudo
entre o Dondo e o Dando (comuna da província do Bié).
Esses centros piscícolas, deverão
ser sobretudo implantados no planalto, antes dos fluxos entrarem nos desníveis
mais acentuados da cordilheira montanhosa que se distende da serra da Mucaba à
Chela, podendo ou não acompanhar actividades agrícolas e pecuárias.
7- A situação de desastre
ambiental permanente em Luanda, verificável através dos mais diversos índices e
reflectindo-se nas estatísticas de mortalidade humana e nas suas causas, é decorrente
de subdesenvolvimento e das assimetrias nacionais, pelo que é urgente
arquitectar-se, nos termos de desenvolvimento sustentável a decorrer a muito
longo prazo, a implantação duma nova capital, capaz de revolucionar a economia
e a implantação de infraestruturas e estruturas, assumindo independência e
soberania e fazendo-se finalmente esbater o que por arrasto reflecte ainda a
implantação colonial!
A capital do futuro, deveria ser
implantada algures, a norte do troço do Caminho de Ferro de Benguela, entre
Catabola e Camacupa, próximo do centro geodésico do país mas à ilharga da
margem esquerda do rio Cuanza, de forma a não contaminar o seu curso médio.
Enquanto assim não se proceder,
os angolanos continuam não só presos ao passado mas, na sua capital, estão e
estarão a mercê do aquecimento global, agravando a situação do desastre que
desde 1991, pela conjugação de factores físico-ambientais e humanos, começou a
ser Luanda!
Amanhã será, definitivamente,
demasiado tarde!...
Martinho Júnior - Luanda, 19 de
Agosto de 2018
Imagens:
Mapa em que se evidencia o
quadrilátero crítico da costa ao redor de Luanda;
Praia da Mabunda, afectada pela
poluição e pela falta de higiene, proporcionou um surto de cólera;
Baía de Porto Amboim;
Baía de Cabo Ledo
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