Marisa Matias* | Diário de Notícias
| opinião
Cresci e tornei-me adulta sabendo
que era do interior. A 40 quilómetros da costa, não podia ser outra coisa senão
interior. Faltava tudo: transportes, educação, saúde, saneamento, água, meios.
Lembro-me, contudo, do dia em que me senti mais do interior do que nunca. Foi o
dia em que tudo à volta da minha aldeia ardeu e uma boa parte da aldeia,
crianças excluídas, teve de fazer o que se podia fazer para apagar o fogo. Ir à
fonte, encher tudo o que havia para encher, subir o monte, cobrir o rosto e
apagar o fogo por onde podia. Tinha, creio eu, 6 anos, quando pensei que ia ser
o último dia das nossas vidas. Essa foi a sensação mais profunda que tive do
que era ser-se do interior. Era o abandono.
Ninguém se deu conta nem as
contas foram feitas. Foi há bem mais de 30 anos e não havia estatísticas nem
gráficos a saltar ao segundo, não havia telemóveis, não havia redes sociais
porque nem sequer havia internet, não havia meios tecnológicos de ponta. Havia
a esperança de que tudo iria melhorar. O país estava a mudar, a democracia a
instalar-se, havíamos de ser todos mais iguais. No entanto, vieram os
telemóveis, a internet, a tecnologia de ponta e o abandono ficou.
Há um ano assistimos aos
incêndios mais trágicos de que temos memória. Assistimos todos os dias a
análises, a relatos, à identificação dos problemas humanos e técnicos, à
avaliação das responsabilidades políticas. Revejo-me nas opiniões que sublinham
o problema estrutural que é o abandono do interior, hoje como há mais de trinta
anos, em detrimento do exército de dedos apontados debaixo de telhados de
vidro.
Na década de 1990 parecia que a
coesão estava a vir para ficar, mas os serviços públicos, os transportes, a
qualidade de vida que foram chegando ao interior não ficaram por muito tempo.
Desinvestiu-se o pouco que se tinha investido e acentuou-se mais ainda essa
fratura que teima em não ser preenchida. O interior não é uma categoria
geográfica apenas, é também uma opção política, faz parte de uma ideia de país.
O abandono de hoje não é igual ao de há 30 anos, mas não deixa de o ser por
isso. Muitos dos recursos e das propriedades foram sendo expropriados. Isso
passou-se tanto com a agricultura como com a floresta. Os poderes públicos
abandonaram, as celuloses não.
Nas últimas três décadas, a
história do interior do país passou por uma promessa e acabou numa tragédia. O
país inclinado a litoral ficou cada vez mais desigual e a enorme cobertura
mediática aos incêndios apenas o confirma. A forma como se transforma a
tragédia em espetáculo, o desespero em entretenimento, as vítimas em custos
políticos, é a expressão dessa desigualdade, da desumanização das pessoas. Só
assim se compreende os termos e os propósitos da polémica obscena acerca da
legitimidade da evacuação de povoações em perigo, que protege as vidas quando
os bens estão perdidos.
Ou se assume o país todo como uma
prioridade, os direitos por igual e a qualidade de vida como variável
independente do lugar onde se nasce, ou vamos ver esta triste história muitas
vezes repetida. Agora com imagens e a cores, mas nem por isso mais feliz.
*Eurodeputada do BE
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