O dia de guerra em Cambedo que a
ditadura "escondeu"
"Foi horrível, só se ouviam as
metralhadoras, era um cenário de guerra"
A guerra em Cambedo ficou
esquecida nas sombras da ditadura portuguesa e só anos depois os habitantes
desta aldeia de Chaves conseguiram falar abertamente do dia em que foram
atacados pelo Exército e GNR, que procuravam guerrilheiros espanhóis ali refugiados.
Foi no dia 21 de dezembro de 1946
e Manuel Guerra Gomes tinha 11 anos. “Foi um dia horrível, só se ouviam as
metralhadoras, era um cenário de guerra”, recordou hoje o octogenário.
Manuel Guerra Gomes descreve os
acontecimentos com precisão. “Eram 05:30 quando a GNR deu os primeiros tiros ao
Juan que foi morto, porque ele estava numa casa ali em baixo. Era amigo da
família e pernoitava ali de noite e de dia ia a monte”, referiu.
A aldeia de contrabandistas
acolheu pelo menos quatro guerrilheiros antifranquistas. São pelos menos estes
os que o idoso se recorda. Uns morreram e outros foram presos, todas as casas
da aldeia foram vasculhadas pelos guardas e os militares acabaram por bombardear
também várias habitações.
Nesta aldeia, a cerca de 18 quilómetros de
Chaves, ficou instalado o medo e o terror. “Nós não podíamos sair de casa, a
GNR foi pela rua acima e disse para ninguém sair de casa”, contou Manuel Guerra
Gomes.
Segundo o idoso, os espanhóis
“andavam na vida deles e mais nada”.
“O posto da Guarda Fiscal ficava
aqui e eles conviviam com eles. Eles vieram de Espanha fugidos unicamente para
fugir à guerra civil, eram perseguidos pelo regime franquista. Vieram para onde
tinham amigos e família”, salientou.
Após o ataque, foram detidos e
interrogados muitos habitantes da aldeia.
“A tia Albertina também foi
presa, não se metia na vida de ninguém, a vida dela era ir para a igreja e
ensinar a doutrina aos garotos, era o único padre que cá tínhamos. Ainda me
ensinou a mim e a outros como eu”, referiu.
É na casa da dona Albertina que
uma equipa de cinco arqueólogos concentra os trabalhos de investigação que
estão a decorrer no âmbito do projeto “Cambedo 1946” , que visa estudar a
resistência às ditaduras ibéricas (1926-1975) e a solidariedade na fronteira
entre Trás-os-Montes e a Galiza.
Após o fim da guerra civil
espanhola, em 1939, grupos de republicamos refugiaram-se na área de montanha
para continuarem com a luta armada. Em 1946, já após a II Guerra Mundial, os
dois governos ibéricos esforçaram-se por acabar estes grupos de guerrilheiros
que se refugiaram na raia.
O arqueólogo Rui Gomes Coelho
explicou que este projeto de arqueologia contemporânea quer dar “visibilidade à
comunidade”.
“Normalmente os projetos que
versam sobre a arqueologia contemporânea e mais especificamente conflitos
militares e guerrilha, não só em Espanha mas também um pouco por todo
o mundo, geralmente estão focados na figura dos guerrilheiros e acabam por os
mostrar um pouco como heróis românticos. O que nós queremos fazer aqui é dar um
pouco de visibilidade à comunidade que sustentava socialmente a própria
guerrilha”, salientou.
Cambedo é, na sua opinião, um
“exemplo de solidariedade e de hospitalidade” que devia ser seguido na
“sociedade atual e no que diz respeito à atual crise humanitária global”.
“Quando estão a dar acolhimento
aos guerrilheiros e a assumir todos esses riscos que comportava essa atitude,
aquilo que nós temos é uma espécie de ética e solidariedade e hospitalidade”,
frisou.
A vida quotidiana da aldeia foi
interrompida após este “episódio traumático” num suposto período de paz e do
qual não se falou durante a ditadura.
Foi já na década de 80 que a
antropóloga Paula Godinho, da Universidade Nova de Lisboa, no âmbito de um
trabalho de etnografia da zona de fronteira descobre a história e a revela no
espaço público nacional.
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