Martinho Júnior | Luanda
COMPASSO PRIMEIRO DE QUATRO PEQUENOS COMPASSOS DE DECIFRAGEM
HISTÓRICA
Angola é fresca na sua independência de pouco mais de quatro
décadas e também por causa disso, são imensos os desafios que há que enfrentar,
devendo estar bem presentes os riscos deles decorrentes ou não, dos riscos que
resultantes do passado e da globalização e as armadilhas que por razões
sobretudo do estágio de subdesenvolvimento, há a desvendar e saber neutralizar.
Muitos desses manifestos desafios advêm de facto dum passado
de trevas que não podem ser entendidas apenas por uma via de abordagem aos processos
históricos dos últimos 500 anos, mas também por via duma abordagem
antropológica que, no meu entender, deve ser feita com o sentido de avaliar
quanto as culturas africanas em seu estágio de modestos garantes de vida e
sobrevivência, foram vulneráveis aos impactos da colonização e o que a
colonização fez para que essas culturas se tornassem ainda mais fragilizadas e
vulneráveis, a ponto de as preparar para e prender aos poderosos factores
exógenos sincronizados com a assimilação contemporânea que identifica o sufoco
do opressivo neocolonialismo que recai sobre o continente.
Pela mesma razão o processo histórico após a independência
deve ser abordado com esse padrão de consciência crítica: aos impactos forjados
pelo colonialismo, pelo “apartheid” e por algumas das suas sequelas,
seguiram-se outros impactos emanados pelo avassalador poder dominante, parte
dos quais aproveitaram-se também das fragilidades e vulnerabilidades anteriores
para, através dum mundo cada vez mais globalizado e em plena revolução de novas
tecnologias, impor os vínculos históricos e culturais de domínio fluentes no
hemisfério ocidental, eminentemente anglo-saxónicos, de carácter unipolar e
capaz de instrumentalizar uma impetuosa corrente de vassalagens aptas às
assimilações.
No presente, o estado traumático da sociedade angolana
contemporânea, fornece mais dados a acrescentar sociologicamente, como também
em relação ao que ao ambiente diz respeito, tendo em conta não só a inércia que
advém do passado, mas também das assimetrias que se acentuaram com as guerras e
da nocividade dos impactos produzidos a partir das correntes dominantes via
choque e terapia neoliberal, que contribuíram para mais desarticulações, mais
desequilíbrios, mais alienações e mais injustiças sociais, procurando apagar a
memória histórica e impedir a fermentação duma geoestratégia para um
desenvolvimento sustentável capaz de revitalizar o tecido humano e lançar uma
perspectiva e projecção alternativa e renascentista sobre o povo angolano em
todo o espaço nacional!
O pensamento elitista deixado como herança em África pelo
império britânico, um dos autores e actores principais da Iª Revolução
Industrial, em relação ao qual o génio imperialista de Cecil John Rhodes foi
expoente e ao mesmo tempo ignição e mentor na África Austral, é parte
integrante do esforço pelo domínio que derivou no surgimento da hegemonia
unipolar e por essa razão histórica, cultural e económica do seu núcleo duro de
poder, foi o seu “sargento-às-ordens”Barack Hussein Obama e não o
Comandante Raul de Castro que foi convidado para as comemorações do 100º
aniversário do nascimento de Nelson Mandela!
As elites sul-africanas demonstram assim sua insensibilidade
para com os problemas de África, que foram aprofundados quando os Estados
Unidos e seus aliados (entre eles a Grã-Bretanha e a França), atacaram a Líbia,
assassinaram Kadafi e fizeram proliferar o caos e o terrorismo na Líbia e por
todo o Sahel, o que justificou aos agressores aumentar a sua presença militar
em toda essa imensa região, em nome dum “combate ao terrorismo” cujos
mentores integram os fulcros de suas próprias alianças forjadas a partir dos
expedientes dominantes indexados ao petrodólar!
Perdão algum em relação a qualquer elite é “assimilável”,
se a prioridade deixar de ser a luta contra o subdesenvolvimento, pela justiça
social e por um desenvolvimento sustentável que explicite em cada acto o imenso
respeito devido à Mãe Terra, muito menos quando esse perdão conduza apenas à
cosmética alienatória de disseminação de elites e deixe tudo o mais “para
as urtigas” e para as “calendas gregas”, pondo em causa a lógica com
sentido de vida, conforme aliás António Agostinho Neto também nos ensinou!
Ao fragilizarem-se as correntes socialistas, o poder da
hegemonia unipolar nunca foi tão intenso, sufocante, multifuncionalmente
dominante e opressor, por isso enviaram à África do Sul um dos seus “mestres” na
persuasão, na alienação, na mentira, na proliferação do caos e do terrorismo e
na guerra psicológica!
Face a essa provocação, há que inequivocamente saudar o
socialismo de Cuba e da Venezuela, há que saudar suas dádivas heróicas, suas
resistências lúcidas e suas vitórias vitais, sobretudo quando em acontecimentos
como esse ligado ao sonante nome de Nelson Mandela, são preteridos os
revolucionários para se fazerem prevalecer as marionetas do poder das bárbaras
alienações, das ingerências grosseiras, do fomento do caos e do terrorismo e da
contínua guerra psicológica movida contra as revoluções consequentes da América
Latina, contra África e contra o resto da humanidade!
Mais do que suas inestimáveis provas de tão sensível
vitalidade e amor, pela sua resistência à guerra psicológica constante que
sobre essas revoluções foi transferida com todo o peso que dá continuidade ao
que animou o império durante o que foi por si declarado como “Guerra
Fria” e pelo que essas revoluções inspiram em termos de coerência, de
dignidade, de solidariedade e de inteligência em relação a toda a humanidade,
há que saudá-las, também por causa das disputas que Nelson Mandela provocou,
provoca e continuará a provocar na sua deriva que, com ele em últimos anos de
sua vida e depois de sua física morte, tanto se tem vindo a afastar da
identidade para com os povos!
É evidente que toda essa saudável corrente revolucionária e
civilizacional inspira tudo o que deve ser balanceado, sem por isso se perder
de vista em África uma crucial questão de fundo:
Poderá uma cultura de libertação patriótica africana subsistir
como civilização, quando tem de se haver contra um universo tão controverso de
culturas, com algumas delas poderosa e barbaramente suas adversas, com algumas
a imporem-se de forma multifuncionalmente opressora e dum modo não só
persuasivo, utilizando o seu “soft power”, mas também fomentando por via
de ingerências, vínculos e manipulações de toda a ordem, por via duma guerra
psicológica só possível nos termos das novas tecnologias, lançar mão ao
recurso “sistémico” de “cirúrgicas” acções militares e de
inteligência?...
Poderá uma cultura de libertação patriótica africana
transmitir-se de geração em geração, em ambientes globais, continentais,
regionais e nacionais tão adversos e asfixiantes, quando o império da hegemonia
unipolar ocupa e impõe um único espaço artificioso, como se África tivesse de
ser digerida num enorme estômago nutrido de fluidos tão venenosos, nutrido das
contraditórias manipulações fomentadas exclusivamente pelo seu áspero
domínio?...
Poderá África, aquela África pobre mas respeitadora e
seguidora do movimento de libertação, imunizar-se em relação aos cortantes
punhais e aos sulfúricos venenos, que o império tece e procura a todo o transe
perpetuar na digestão onde provoca os lucros de 1% dos que se impõem sobre o
resto da humanidade?...
Até que ponto o corpo inerte de África estará tão
flacidamente disponível para os abutres que continuamente o querem despedaçar,
quando alguns dos filhos do seu próprio ventre, formatados pelas “filosofias” que
se têm comprovadamente evidenciado como contranatura, se juntam como
mercenários, de forma tão abjecta, ainda que por vezes “por portas e
travessas”, a esse poder dominante do império da hegemonia unipolar?
Ao não se honrar o passado e a nossa história, ao não se
evocarem a memória e os ensinamentos de António Agostinho Neto, ao se perder da
clarividência socialista para se implantar a hipocrisia e o cinismo
social-democrata, ou uma metamorfose elitista de última geração, quanto Angola,
quanto África tem perdido de sua identidade, dignidade e coerência histórica e
antropológica, quanto tem perdido de força anímica capaz de ampla mobilização,
para levar por diante a longa luta contra o subdesenvolvimento?
Martinho Júnior - Luanda, 9 de Agosto de 2018
Fotos:
António Agostinho Neto, numa pausa durante a guerrilha,
dedicando-se à leitura;
Conferência histórica alusiva aos 55 anos do MPLA, no dia 6
de Dezembro de 2011, foto tirada por mim nesse evento.
Sem comentários:
Enviar um comentário