domingo, 16 de setembro de 2018

Morreu a mulher que tinha como compromisso aproximar o chinês do português


Márcia Schmaltz morreu na passada sexta-feira, dia 7 de Setembro, aos 45 anos, vítima de cancro do pulmão, diagnosticado há um ano. A brasileira, que se considerava chinesa, antiga professora do Departamento de Português da Universidade de Macau (UM), investigadora, tradutora, intérprete e autora, dedicou a vida a fazer a ponte entre as línguas chinesa e portuguesa. Márcia deixa um espaço por preencher, não um vazio, diz o amigo Roberval Teixeira e Silva.

Nasceu em Porto Alegre, no estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1973 e, ainda em criança, mudou-se com a família para Taiwan, onde viveu durante seis anos. Regressada a Porto Alegre, Márcia Schmaltz licenciou-se em 2001 em Letras pela Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras. Em 2006 concluiu o mestrado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, altura em que também se especializou em tradução na Universidade de Língua e Cultura de Pequim. Já em Macau, Márcia Schmaltz fez o doutoramento em Linguística na UM, onde leccionou no mestrado em Estudos da Tradução Português-Chinês entre 2008 e 2015. Pelo meio, em 2000, juntamente com Janete Schmaltz, ganhou o prémio Xerox/Livro Aberto pela tradução de “Histórias da Mitologia Chinesa” e, em 2001, o Prémio Açorianos de Literatura, na categoria tradução. Fez traduções técnicas, traduções institucionais e traduções de artigos científicos, mas destacou-se nas traduções literárias, “Rickshaw boy”, de Lao She, “Contos Completos”, de Lu Xun, “Viver”, de Yu Hua, e “Deixe-me em Paz”, de Murong Xuechun. Juntamente com Sérgio Capparelli, publicou ainda livros originais: “50 Fábulas da China Fabulosa”, “Fábulas Chinesas” e “Contos Sobrenaturais Chineses”. Voltou em 2015 para o Brasil, onde era bolseira de pós-doutoramento na Universidade Federal de Minas Gerais.

“Com o seu grau de compromisso não há ninguém”

Roberval Teixeira e Silva, também ele brasileiro, trabalhou e conviveu diariamente com Márcia Schmaltz: “Nós trabalhámos sempre juntos, desde que ela chegou até quando ela decidiu voltar para o Brasil, para estar mais perto da família”. O antigo colega, professor do Departamento de Português da UM, recorda a ligação de Márcia à língua chinesa, descrevendo uma relação “afectiva e cultural muito grande com a Ásia que fala chinês, a China, Taiwan, Macau”. “Ela dizia-se bastante chinesa e ela já era mesmo chinesa”, acrescenta Roberval.

“A Márcia sempre foi uma pessoa muito lutadora em todos os aspectos da vida”, descreve o professor. “Sobretudo tinha uma grande sensibilidade para as questões sociais que afectam as pessoas e ao mesmo tempo tinha uma postura muito forte em relação aos problemas, não era pessoa de ficar a enrolar, era de falar as coisas e dizer o que pensava. Ela tinha um monte de fãs porque dizia tudo o que achava e não ficava a dourar”, lembra o docente, dizendo mesmo que Márcia “era uma pessoa que estava aqui para fazer coisas, arcava com as consequências de quem quer fazer coisas e não colocava panos quentes nos problemas, enfrentava-os”.

Relativamente ao legado deixado pela professora e tradutora, Roberval não tem dúvidas: “Ela deixa um grande legado, muitas traduções, muitas reflexões sobre os aspectos culturais da China, livros para as crianças, livros para adolescentes, contribuições em blogues, muita coisa que ela produziu, e ajudou a criar uma pequena geração de mestrandos e tradutores aqui da Universidade de Macau”. Para o amigo e antigo colega de Márcia, o compromisso que a professora tinha para com o seu trabalho era a sua grande mais-valia: “Obviamente são pouquíssimas as pessoas que têm esse compromisso de criar pontes interculturais entre a China e as comunidades que falam português, e com o seu grau de compromisso não há ninguém”.

“Ela deixa um espaço para ser preenchido. Não é um vazio, é um espaço que tem de ser preenchido”, refere Roberval. “Esperemos que ela inspire outros a assumir o compromisso de criar um mundo mais bacana”, conclui.

“Não é possível medir a importância do seu trabalho”

Para a professora Fernanda Gil Costa, antiga directora do Departamento de Português da Universidade de Macau, actualmente professora catedrática da Faculdade de Letras de Lisboa, o trabalho desenvolvido por Márcia Schmaltz na área da tradução foi de grande relevância: “Não é possível medir a sua importância”. “Ela teve um papel importante na tradução da literatura brasileira para o chinês”, acrescenta, recordando ainda o seu trabalho na organização da semana brasileira de Macau: “A actividade como representante da cultura brasileira e de exposição à cultura chinesa na lusofonia foi sempre importante”.

“Quando a notícia da sua morte foi conhecida, aqui em Lisboa ficámos todos consternadíssimos”, lamenta a professora, que conviveu com Márcia Schmaltz durante quatro anos na UM. “Represento a opinião de muitas pessoas quando digo que foi uma colega que teve um trabalho bastante meritório e notável”, afirma.

Márcia Schmaltz também colaborou com o blogue “Extramuros”, cuja missão é levar a China até à população que fala português, como explica Catarina Domingues, jornalista e editora do projecto. Desde 2016 até ao início de 2018, altura em que lhe foi diagnosticada a doença, Márcia publicou textos sobre literatura chinesa. “Ela era tradutora-intérprete, falava mandarim perfeito, fazia traduções de obras de língua chinesa para português, escrevia sobre obras chinesas, a maior parte delas nem tinham sido traduzidas para português”, lembra Catarina. “Escreveu sobre o ‘Problema dos Três Corpos’, de Cixin Liu, que é de ficção científica chinesa, e em Portugal, em Angola ou no Brasil, ninguém ouviu falar em ficção científica chinesa, e escreveu também sobre escritores contemporâneos chineses”, refere, acrescentando que “ela fazia parte de uma comunidade muito restrita que fazia tradução directa do chinês para o português”. “Ela era uma apaixonada pela literatura e pela tradução, sabia muito mais do que eu, de modo que não custava nada editar os textos dela. Era uma aprendizagem para mim”, conclui a jornalista.

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