Márcia Schmaltz morreu na passada
sexta-feira, dia 7 de Setembro, aos 45 anos, vítima de cancro do pulmão,
diagnosticado há um ano. A brasileira, que se considerava chinesa, antiga
professora do Departamento de Português da Universidade de Macau (UM),
investigadora, tradutora, intérprete e autora, dedicou a vida a fazer a ponte
entre as línguas chinesa e portuguesa. Márcia deixa um espaço por preencher,
não um vazio, diz o amigo Roberval Teixeira e Silva.
Nasceu em Porto Alegre , no
estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1973 e, ainda em criança, mudou-se
com a família para Taiwan, onde viveu durante seis anos. Regressada a Porto
Alegre, Márcia Schmaltz licenciou-se em 2001 em Letras pela Faculdade
Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras. Em 2006 concluiu o mestrado em
Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, altura em que também se
especializou em tradução na Universidade de Língua e Cultura de Pequim. Já em
Macau, Márcia Schmaltz fez o doutoramento em Linguística na UM, onde leccionou
no mestrado em Estudos da Tradução Português-Chinês entre 2008 e 2015. Pelo
meio, em 2000, juntamente com Janete Schmaltz, ganhou o prémio Xerox/Livro
Aberto pela tradução de “Histórias da Mitologia Chinesa” e, em 2001, o Prémio
Açorianos de Literatura, na categoria tradução. Fez traduções técnicas,
traduções institucionais e traduções de artigos científicos, mas destacou-se
nas traduções literárias, “Rickshaw boy”, de Lao She, “Contos Completos”, de Lu
Xun, “Viver”, de Yu Hua, e “Deixe-me em Paz”, de Murong Xuechun. Juntamente com
Sérgio Capparelli, publicou ainda livros originais: “50 Fábulas da China
Fabulosa”, “Fábulas Chinesas” e “Contos Sobrenaturais Chineses”. Voltou em 2015
para o Brasil, onde era bolseira de pós-doutoramento na Universidade Federal de
Minas Gerais.
“Com o seu grau de compromisso
não há ninguém”
Roberval Teixeira e Silva, também
ele brasileiro, trabalhou e conviveu diariamente com Márcia Schmaltz: “Nós trabalhámos
sempre juntos, desde que ela chegou até quando ela decidiu voltar para o
Brasil, para estar mais perto da família”. O antigo colega, professor do
Departamento de Português da UM, recorda a ligação de Márcia à língua chinesa,
descrevendo uma relação “afectiva e cultural muito grande com a Ásia que fala
chinês, a China, Taiwan, Macau”. “Ela dizia-se bastante chinesa e ela já era
mesmo chinesa”, acrescenta Roberval.
“A Márcia sempre foi uma pessoa
muito lutadora em todos os aspectos da vida”, descreve o professor. “Sobretudo
tinha uma grande sensibilidade para as questões sociais que afectam as pessoas
e ao mesmo tempo tinha uma postura muito forte em relação aos problemas, não
era pessoa de ficar a enrolar, era de falar as coisas e dizer o que pensava.
Ela tinha um monte de fãs porque dizia tudo o que achava e não ficava a
dourar”, lembra o docente, dizendo mesmo que Márcia “era uma pessoa que estava
aqui para fazer coisas, arcava com as consequências de quem quer fazer coisas e
não colocava panos quentes nos problemas, enfrentava-os”.
Relativamente ao legado deixado
pela professora e tradutora, Roberval não tem dúvidas: “Ela deixa um grande
legado, muitas traduções, muitas reflexões sobre os aspectos culturais da
China, livros para as crianças, livros para adolescentes, contribuições em
blogues, muita coisa que ela produziu, e ajudou a criar uma pequena geração de
mestrandos e tradutores aqui da Universidade de Macau”. Para o amigo e antigo
colega de Márcia, o compromisso que a professora tinha para com o seu trabalho
era a sua grande mais-valia: “Obviamente são pouquíssimas as pessoas que têm
esse compromisso de criar pontes interculturais entre a China e as comunidades
que falam português, e com o seu grau de compromisso não há ninguém”.
“Ela deixa um espaço para ser
preenchido. Não é um vazio, é um espaço que tem de ser preenchido”, refere
Roberval. “Esperemos que ela inspire outros a assumir o compromisso de criar um
mundo mais bacana”, conclui.
“Não é possível medir a
importância do seu trabalho”
Para a professora Fernanda Gil
Costa, antiga directora do Departamento de Português da Universidade de Macau,
actualmente professora catedrática da Faculdade de Letras de Lisboa, o trabalho
desenvolvido por Márcia Schmaltz na área da tradução foi de grande relevância:
“Não é possível medir a sua importância”. “Ela teve um papel importante na
tradução da literatura brasileira para o chinês”, acrescenta, recordando ainda
o seu trabalho na organização da semana brasileira de Macau: “A actividade como
representante da cultura brasileira e de exposição à cultura chinesa na
lusofonia foi sempre importante”.
“Quando a notícia da sua morte
foi conhecida, aqui em Lisboa ficámos todos consternadíssimos”, lamenta a
professora, que conviveu com Márcia Schmaltz durante quatro anos na UM.
“Represento a opinião de muitas pessoas quando digo que foi uma colega que teve
um trabalho bastante meritório e notável”, afirma.
Márcia Schmaltz também colaborou
com o blogue “Extramuros”, cuja missão é levar a China até à população que fala
português, como explica Catarina Domingues, jornalista e editora do projecto.
Desde 2016 até ao início de 2018, altura em que lhe foi diagnosticada a doença,
Márcia publicou textos sobre literatura chinesa. “Ela era tradutora-intérprete,
falava mandarim perfeito, fazia traduções de obras de língua chinesa para
português, escrevia sobre obras chinesas, a maior parte delas nem tinham sido
traduzidas para português”, lembra Catarina. “Escreveu sobre o ‘Problema dos
Três Corpos’, de Cixin Liu, que é de ficção científica chinesa, e em Portugal,
em Angola ou no Brasil, ninguém ouviu falar em ficção científica chinesa, e
escreveu também sobre escritores contemporâneos chineses”, refere,
acrescentando que “ela fazia parte de uma comunidade muito restrita que fazia
tradução directa do chinês para o português”. “Ela era uma apaixonada pela
literatura e pela tradução, sabia muito mais do que eu, de modo que não custava
nada editar os textos dela. Era uma aprendizagem para mim”, conclui a
jornalista.
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