domingo, 2 de setembro de 2018

Portugal | E o Zeca salvou-se

Já que outros se não puderam salvar, que ao menos o Zeca se salve do caldeirão panteónico. Honrar a sua memória é recuperar, no quotidiano e para a formação dos futuros cidadãos, o seu exemplo cívico.

José António Gomes | Abril Abril | opinião… e roteiro cultural

Óscar Carmona? Sidónio Pais? Eusébio? Amália?... Junte-se quem já lá está com quem se anuncia e teremos o Panteão Nacional transformado num… albergue espanhol (passe o paradoxo). E uma ideia começará a vingar na cabeça de muito boa gente: pois ali estão os grandes, sim senhor, e como são grandes todos eles! Serão? «Presidentes-reis», «pais» disto e daquilo valerão o mesmo que os génios da literatura ou do canto e o mesmo que os corajosos? Todos grandes, sim senhor. Essa pretensa grandeza, essa pretensa superioridade nivelam, aspiram a igualar o conjunto – heróis, políticos, artistas… – e com o tempo hão-de servir objectivamente o branqueamento da acção, política sobretudo, de alguns. Os quais continuarão assim a dormir – agora literalmente – à sombra de outros.

Não é aceitável. Nisto como noutras coisas, é preciso lembrar que há boas e más companhias. Já custa, e muito, ver que Aquilino Ribeiro e Sophia de Mello Breyner Andresen se não salvaram de algumas forçadas parcerias, pretéritas ou futuras. Que ao menos José Afonso se salve. E assim parece ir acontecer, a acreditar na posição da família (e de alguns amigos).

A questão não está no cantor do «Coro da Primavera», de «Os Índios da Meia Praia», de «O pão que sobra à riqueza» ou de «As sete mulheres do Minho», porque esse, o cantor, será sempre único e grande na sua obra e exemplo; a questão está no próprio Panteão, que, enquanto objecto semiótico que é, começa a tornar-se um lugar pouco recomendável no seu simbolismo e nas suas mensagens explícitas e implícitas, e terreno propício a confusionismos indesejáveis.

Que, juntamente com todos nós, as entidades a quem isso cabe façam, sim, o que urge fazer para manter disponível a totalidade da obra inigualável de José Afonso, para a divulgar, a estudar, a dar a ouvir na rádio e nas televisões. Que se resolva a questão escandalosa do desaparecimento das fitas das gravações originais. Que se faça o que importa fazer para que as canções sejam interpretadas e recriadas pelas novas gerações, de criadores e não só.

Que a voz, a música, a poesia de José Afonso, o seu exemplo cívico de lutador contra o fascismo e o capitalismo, de combatente generoso pelas causas da democracia, da liberdade, da paz e da solidariedade internacionalista, de defensor do poder popular, que tudo isso seja objecto de exposições, filmes e debates, de variadas acções de formação junto de professores. Que as canções sejam escutadas nas escolas (e não apenas a «Grândola»). Isso sim, parece-me, é honrar a memória de José Afonso. Que para si queria, como alguns lembraram, «campa rasa» – a crer na literalidade do que n’«A ronda das mafarricas»  se pode escutar…

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