quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Portugal | A IGAI e as 40 balas

Fernanda Câncio | TSF | opinião

São 3h30 da manhã. A mulher entra às 4h00 no trabalho, no aeroporto de Lisboa. Sai de casa, entra num carro. Ao volante está um homem. Ainda na rua onde mora, a mulher é atingida a tiro.

Tem 36 anos. Saiu do Brasil, um país violento, para este, dos mais pacíficos. Mas é aqui que vai morrer. Num carro, a caminho do trabalho, quando uma de 40 balas disparadas por seis agentes da PSP a atinge no pescoço.

Nas notícias, a PSP dá a versão dos agentes: que confundiram o carro onde ia a mulher com o usado por assaltantes de um multibanco nessa mesma noite. Que estranharam o carro e o mandaram parar. Que não parou e tentou atropelá-los.

Por isso, dizem, dispararam. 40 vezes.

Foi a 15 de Novembro de 2017 e ainda está em investigação criminal. Mas na semana passada soubemos o resultado da investigação disciplinar, a cargo da Inspecção-Geral da Administração Interna, ou IGAI.

A IGAI concluiu que todos estes 40 tiros foram, e cito, "em situação de legítima defesa própria ou de terceiros, encontrando-se, como tal, justificados."

Mas diz também que para chegar a esta conclusão se socorreu do princípio "in dubio pro reo".
Ou seja, "na dúvida, decide-se a favor do réu".

Há portanto dúvidas. A IGAI tem dúvidas. Quais? Não sabemos, provavelmente nunca saberemos. A IGAI nunca publica os seus inquéritos e faz depender o acesso de um pedido que pode ou não ser aprovado.

A IGAI, criada em 1996 para combater a opacidade, o corporativismo e a cultura de encobrimento das polícias, para investigar com independência e transparência abusos de poder e violência, é hoje isto: uma instituição opaca, que se parece cada vez mais com o que visava combater.

Para fazer fé em tudo o que os agentes dizem, para fechar os olhos e justificar todas as acções policiais, não precisávamos da IGAI.

Não precisávamos da IGAI para arquivar o caso das agressões a jovens da Cova da Moura na esquadra de Alfragide, em 2015 - um caso que está a ser julgado porque o Ministério Público viu crimes onde a IGAI nada viu.

Não precisávamos da IGAI para enumerar agressões e detenções ilegais no pós manifestação de 14 de Novembro de 2012, para a seguir concluir nada poder fazer porque os agentes responsáveis tinham a cara tapada com capacetes e viseiras - e portanto não podiam ser identificados.

Não precisávamos da IGAI para nos dizer que, na dúvida, arquivou a morte de Ivanice Costa.

Desta IGAI, não há dúvidas, não precisamos. É altura de, como o Reino Unido, termos uma instância de investigação de abusos policiais verdadeiramente independente e transparente. Que queira realmente saber a verdade e combater os abusos. Contribuir para que as polícias portuguesas descubram, enfim, os direitos humanos.

*a autora não escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

Em: "A Opinião" de Fernanda Câncio, na Manhã TSF

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