Fernanda Câncio | TSF | opinião
São 3h30 da manhã. A mulher entra
às 4h00 no trabalho, no aeroporto de Lisboa. Sai de casa, entra num carro. Ao
volante está um homem. Ainda na rua onde mora, a mulher é atingida a tiro.
Tem 36 anos. Saiu do Brasil, um
país violento, para este, dos mais pacíficos. Mas é aqui que vai morrer. Num
carro, a caminho do trabalho, quando uma de 40 balas disparadas por seis
agentes da PSP a atinge no pescoço.
Nas notícias, a PSP dá a versão
dos agentes: que confundiram o carro onde ia a mulher com o usado por assaltantes
de um multibanco nessa mesma noite. Que estranharam o carro e o mandaram parar.
Que não parou e tentou atropelá-los.
Por isso, dizem, dispararam. 40
vezes.
Foi a 15 de Novembro de 2017 e
ainda está em investigação criminal. Mas na semana passada soubemos o resultado
da investigação disciplinar, a cargo da Inspecção-Geral da Administração
Interna, ou IGAI.
A IGAI concluiu que todos estes
40 tiros foram, e cito, "em situação de legítima defesa própria ou de
terceiros, encontrando-se, como tal, justificados."
Mas diz também que para chegar a
esta conclusão se socorreu do princípio "in dubio pro reo".
Ou seja, "na dúvida,
decide-se a favor do réu".
Há portanto dúvidas. A IGAI tem
dúvidas. Quais? Não sabemos, provavelmente nunca saberemos. A IGAI nunca
publica os seus inquéritos e faz depender o acesso de um pedido que pode ou não
ser aprovado.
A IGAI, criada em 1996 para
combater a opacidade, o corporativismo e a cultura de encobrimento das
polícias, para investigar com independência e transparência abusos de poder e
violência, é hoje isto: uma instituição opaca, que se parece cada vez mais com
o que visava combater.
Para fazer fé em tudo o que os
agentes dizem, para fechar os olhos e justificar todas as acções policiais, não
precisávamos da IGAI.
Não precisávamos da IGAI para
arquivar o caso das agressões a jovens da Cova da Moura na esquadra de Alfragide,
em 2015 - um caso que está a ser julgado porque o Ministério Público viu crimes
onde a IGAI nada viu.
Não precisávamos da IGAI para
enumerar agressões e detenções ilegais no pós manifestação de 14 de Novembro de
2012, para a seguir concluir nada poder fazer porque os agentes responsáveis
tinham a cara tapada com capacetes e viseiras - e portanto não podiam ser
identificados.
Não precisávamos da IGAI para nos
dizer que, na dúvida, arquivou a morte de Ivanice Costa.
Desta IGAI, não há dúvidas, não
precisamos. É altura de, como o Reino Unido, termos uma instância de
investigação de abusos policiais verdadeiramente independente e transparente.
Que queira realmente saber a verdade e combater os abusos. Contribuir para que
as polícias portuguesas descubram, enfim, os direitos humanos.
*a autora não escreve segundo o
Acordo Ortográfico de 1990
Em: "A Opinião" de
Fernanda Câncio, na Manhã TSF
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