O caso Khashoggi lança uma luz
macabra sobre o reinado do suposto reformador Salman. Cinismo e repressão
caracterizam um governo brutalmente autoritário. O país começa a sentir as
consequências, opina Kersten Knipp.
Assim funcionam as coisas no
mundo da penumbra: quem se mete com figuras duvidosas não deve contar com a
lealdade delas. Isso é o que constatam os 15 membros de um comando
especial que, no início de outubro, viajaram da Arábia Saudita até o
consulado do país na Turquia e lá supostamente assassinaram o jornalista Jamal
Khashoggi.
O caso desencadeou ondas com que
os autores do crime nem de longe contavam. Agora está sendo esperada uma
declaração pública da casa real saudita, cuja mensagem central, segundo informações
da emissora americana CNN, é que os regentes em Riad de nada sabiam sobre o
assassinato.
A ideia é que algumas figuras
obscuras teriam se juntado por conta própria, viajado para a Turquia e então
atacado o jornalista saudita – sem o conhecimento da família real e para
absoluta indignação desta. Agora os ousados malfeitores devem ser até punidos.
Nem um escritor especializado em histórias de máfia conseguiria imaginar uma
trama tão perfeita.
Pelo menos um não saudita já foi
atrás dessa versão do escandaloso episódio: o presidente dos Estados Unidos,
Donald Trump. Após uma conversa com o rei Salman, ele adotou a noção de uma
"quadrilha assassina", que teria conspirado para cometer os atos
malignos. Khashoggi teria morrido nas mãos de "rogue killers",
assassinos renegados. Cúmplices na família real: nenhum.
Os serviços secretos americanos
aparentemente veem a coisa diferente. Segundo fontes de imprensa, teriam sido
interceptadas conversas em que autoridades sauditas planejavam sequestrar
Khashoggi e levá-lo para a Arábia Saudita. Especula-se que o novo homem forte
em Riad, Mohammad bin Salman, apelidado MbS, estaria pelo menos informado sobre
a operação.
Com isso, a reputação do
príncipe-herdeiro estaria pelo menos arranhada diante da opinião pública
global. O caso Khashoggi não surpreende, pelo contrário. Ele representa o atual
clímax na carreira política de um dirigente que, em seu ainda breve reinado,
por diversas vezes já chamou a atenção por uma política altamente cínica e
inescrupulosa.
Dela faz parte, por exemplo, a
briga, ampliada em boicote, com o vizinho Catar, iniciada simplesmente por a
tendência política do pequeno emirado não agradar ao príncipe Salman.
Dela faz também parte a guerra
aérea contra o Iêmen, de longe o país mais pobre do mundo árabe, na qual,
segundo dados da ONU, só até agosto último já morreram quase 5.600 civis e
outros 10.400 ficaram feridos. Devido ao bloqueio marítimo saudita, mais de
12 milhões de iemenitas estão enfrentando fome extrema.
Em caso de dúvida, o governo de
Riad também investe brutalmente contra a própria população. O blogueiro Raif
Badawi, que há anos está encarcerado, devido a críticas políticas relativamente
inofensivas, é apenas o mais conhecido de uma série de oposicionistas atrás de
grades.
Em meados de 2018, além disso,
diversas ativistas dos direitos femininos foram presas. Também elas defenderam
reivindicações que só podem ser consideradas provocações sérias num sistema
dominado pelo absolutismo. Outros tiveram destino ainda mais duro: a Anistia
Internacional registrou a morte de diversos oposicionistas em 2017.
Mohammed bin Salman, o rosto de
uma Arábia Saudita supostamente moderna, que permitiu a suas cidadãs dirigir e
na qual os cinemas puderam voltar a funcionar, se encena como reformador
apaixonado. Suas demonstrações nesse sentido foram, até agora, coroadas de
êxito: o país conquistou – um pouco – simpatias. Mas agora se constata que,
debaixo de uma política exclusivamente cosmética, ele segue um curso
inflexível, brutalmente autoritário.
Esse curso visa assegurar o
futuro da Casa de Saud. Seu sucesso não está nem de longe garantido: chovem os
cancelamentos, por parte da elite empresarial global, para a Future Investment
Initiative, marcada para a terceira semana de outubro, em Riad. A moeda do reino, o
rial, atingiu sua cotação mais baixa dos últimos dois anos.
Sucesso econômico é também uma
questão de imagem. No momento, várias empresas ocidentais parecem ter notado
que uma cooperação com a Arábia Saudita poderá prejudicar gravemente a imagem
delas. Nos círculos relevantes em Riad, isso talvez lance a questão se MbS, o
garoto-propaganda do pseudo-reformismo saudita, é realmente a pessoa certa para
guiar o país em direção ao futuro.
Kersten Knipp (av) | Deutsche
Welle | opinião
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