quarta-feira, 17 de outubro de 2018

A reputação perdida da Arábia Saudita


O caso Khashoggi lança uma luz macabra sobre o reinado do suposto reformador Salman. Cinismo e repressão caracterizam um governo brutalmente autoritário. O país começa a sentir as consequências, opina Kersten Knipp.

Assim funcionam as coisas no mundo da penumbra: quem se mete com figuras duvidosas não deve contar com a lealdade delas. Isso é o que constatam os 15 membros de um comando especial que, no início de outubro, viajaram da Arábia Saudita até o consulado do país na Turquia e lá supostamente assassinaram o jornalista Jamal Khashoggi.

O caso desencadeou ondas com que os autores do crime nem de longe contavam. Agora está sendo esperada uma declaração pública da casa real saudita, cuja mensagem central, segundo informações da emissora americana CNN, é que os regentes em Riad de nada sabiam sobre o assassinato.

A ideia é que algumas figuras obscuras teriam se juntado por conta própria, viajado para a Turquia e então atacado o jornalista saudita – sem o conhecimento da família real e para absoluta indignação desta. Agora os ousados malfeitores devem ser até punidos. Nem um escritor especializado em histórias de máfia conseguiria imaginar uma trama tão perfeita.

Pelo menos um não saudita já foi atrás dessa versão do escandaloso episódio: o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Após uma conversa com o rei Salman, ele adotou a noção de uma "quadrilha assassina", que teria conspirado para cometer os atos malignos. Khashoggi teria morrido nas mãos de "rogue killers", assassinos renegados. Cúmplices na família real: nenhum.

Os serviços secretos americanos aparentemente veem a coisa diferente. Segundo fontes de imprensa, teriam sido interceptadas conversas em que autoridades sauditas planejavam sequestrar Khashoggi e levá-lo para a Arábia Saudita. Especula-se que o novo homem forte em Riad, Mohammad bin Salman, apelidado MbS, estaria pelo menos informado sobre a operação.

Com isso, a reputação do príncipe-herdeiro estaria pelo menos arranhada diante da opinião pública global. O caso Khashoggi não surpreende, pelo contrário. Ele representa o atual clímax na carreira política de um dirigente que, em seu ainda breve reinado, por diversas vezes já chamou a atenção por uma política altamente cínica e inescrupulosa.

Dela faz parte, por exemplo, a briga, ampliada em boicote, com o vizinho Catar, iniciada simplesmente por a tendência política do pequeno emirado não agradar ao príncipe Salman.

Dela faz também parte a guerra aérea contra o Iêmen, de longe o país mais pobre do mundo árabe, na qual, segundo dados da ONU, só até agosto último já morreram quase 5.600 civis e outros 10.400 ficaram feridos. Devido ao bloqueio marítimo saudita, mais de 12 milhões de iemenitas estão enfrentando fome extrema.

Em caso de dúvida, o governo de Riad também investe brutalmente contra a própria população. O blogueiro Raif Badawi, que há anos está encarcerado, devido a críticas políticas relativamente inofensivas, é apenas o mais conhecido de uma série de oposicionistas atrás de grades.

Em meados de 2018, além disso, diversas ativistas dos direitos femininos foram presas. Também elas defenderam reivindicações que só podem ser consideradas provocações sérias num sistema dominado pelo absolutismo. Outros tiveram destino ainda mais duro: a Anistia Internacional registrou a morte de diversos oposicionistas em 2017.

Mohammed bin Salman, o rosto de uma Arábia Saudita supostamente moderna, que permitiu a suas cidadãs dirigir e na qual os cinemas puderam voltar a funcionar, se encena como reformador apaixonado. Suas demonstrações nesse sentido foram, até agora, coroadas de êxito: o país conquistou – um pouco – simpatias. Mas agora se constata que, debaixo de uma política exclusivamente cosmética, ele segue um curso inflexível, brutalmente autoritário.

Esse curso visa assegurar o futuro da Casa de Saud. Seu sucesso não está nem de longe garantido: chovem os cancelamentos, por parte da elite empresarial global, para a Future Investment Initiative, marcada para a terceira semana de outubro, em Riad. A moeda do reino, o rial, atingiu sua cotação mais baixa dos últimos dois anos.

Sucesso econômico é também uma questão de imagem. No momento, várias empresas ocidentais parecem ter notado que uma cooperação com a Arábia Saudita poderá prejudicar gravemente a imagem delas. Nos círculos relevantes em Riad, isso talvez lance a questão se MbS, o garoto-propaganda do pseudo-reformismo saudita, é realmente a pessoa certa para guiar o país em direção ao futuro.

Kersten Knipp (av) | Deutsche Welle | opinião

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