Primeira análise de um discurso.
Em curiosa tentativa de desconcertar o jornalismo, ex-capitão diz e desdiz, o
tempo todo. Escolha sua própria verdade. Você finalmente será livre — para
segui-lo
Ricardo Alexandre | Outras
Palavras
“Jair Bolsonaro é evangélico”,
afirmava um. “Não, ele é católico romano”, dizia o outro. “Não, eu vi o vídeo
dele sendo batizado por um pastor da Assembléia”. “Mas eu vi uma entrevista na
qual ele dizia que era católico”. “Mas quem fez o casamento dele foi o
Malafaia”. “Mas ele continua sendo católico”.
Não eram minhas tias conversando
no almoço de família. Era um comentarista político e um especialista em
marketing político discutindo com o microfone ligado, sobre a religião do então
candidato a presidente. Em um país em que 60% declara que “jamais” votariam em
um ateu, a religião é fator fundamental também na identidade de um personagem
público.
Pois até nesse ponto Jair
Bolsonaro trabalha em regime de contrainformação. Sua religião é assunto tão
envolto em fatos e versões que a Folha produziu um conteúdo para tentar
esclarecer seu leitor (link nos comentários).
A tradição religiosa do
presidente eleito é apenas um exemplo do que os americanos batizaram de
“pós-verdade”. Dizer que ele é evangélico não seria uma mentira. Dizer que ele
é católico também não é. Também não são verdades, são pós-verdades.
“Pós-verdade” foi a “palavra do
ano” de 2016 segundo o dicionário Oxford, para designar algo “relativo a ou
denotando circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influenciadores da
opinião pública do que apelos à emoção ou crenças pessoais”.
Em outras palavras: se você
acredita que Bolsonaro é evangélico, você vai ter quilos de vídeos, declarações
e pastores para passar a vida compartilhando e comprovando o que você já acreditava;
se pensa que ele é católico, também. É isso que importou na campanha de Donald
Trump (quando a palavra “pós-verdade” foi inventada) e é isso que importa na
comunicação de seu discípulo brasileiro, Jair Messias Bolsonaro.
No caso do brasileiro, ao ser
abraçado por líderes neopentecostais como Silas Malafaia, Estevan Hernandes,
Ana Paula Valadão e Edir Macedo, entrou na receita um componente bastante
próprio dessa tradição do evangelicalismo brasileiro, perfeitamente
compreendido pelos fiéis: a ênfase e a convicção são muito mais importantes do
que o conteúdo. Em outras palavras, como e quão
violentamente (ou defendemos algo) passou a ser a questão, muito mais do
que está sendo dito. A jornalista Eliane Brum escreveu um artigo muito
interessante a esse respeito, “Bolsonaro e a autoverdade” (link nos
comentários).
Bolsonaro ditou completamente a
agenda política de 2018. Concordo com Eduardo Jorge e Ciro Gomes, quando dizem
que o capitão foi fruto direto do “nós contra eles” do petismo. Mas a novelinha
de Lula candidato foi só uma patética tentativa de desviar o foco de quem
sempre esteve no centro do palco: Jair Bolsonaro. Foi ele e seus filhos quem
deram as cartas do noticiário o tempo todo, com declarações bombásticas,
desmentidos e aparente bateção-de-cabeça. O ex-assessor de Donald Trump e líder
do grupo de direita nacionalista The Movement, Steve Bannon, disse que
essa “linguagem provocativa” é a tática ideal para alguém “conseguir ser ouvido
em meio ao barulho”, chamar a atenção à margem de uma mídia que nunca o levou à
sério. “Hoje, a política é, na realidade, uma narrativa midiática”. (Leia o
link nos comentários).
Entretanto, eleito presidente,
Jair Bolsonaro não parece satisfeito em apenas construir uma narrativa
midiática. Ele, seus filhos e seus diretos continuam monopolizando a mídia, mas
seu mais ambicioso controle não é mais sobre a imprensa; é sobre a verdade.
Reflita comigo: qual a conexão do
versículo bíblico que ele usou em seu primeiro pronunciamento como presidente
(“Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”) com o conteúdo em si? Até
onde vai minha capacidade de interpretação de texto (Leia a íntegra no link nos
comentários), não há conexão nenhuma, a menos que você considere a
possibilidade de estar diante de um homem se apresentando ele mesmo como a verdade
ou, no mínimo, porta-voz da versão que deve ser entendida como a verdade.
Mas, como também está na Bíblia,
na boca de Pôncio Pilatos, “O que é a verdade?” Será a verdade, captada em
vídeo, do próprio Bolsonaro anunciando que Antonio Fraga iria “coordenar a
bancada lá no Planalto” apesar de ser condenado por corrupção? Ou seria o mesmo
presidente, no Twitter, escrevendo que “nossos ministérios não serão compostos
por condenados por corrupção como foram nos últimos governos”? Seria o vice
Mourão dizendo que Sergio Moro sabia do convite ao Ministério da Justiça desde
a campanha? Ou o próprio Moro dizendo que não sabia? Seria Bolsonaro anunciando
a fusão dos ministérios do Meio Ambiente e Agricultura ou ele voltando atrás?
Ou ele anunciando novamente ou voltando atrás novamente? Seria a verdade dita
por Paulo Guedes que o novo governo pretende criar uma “nova CPMF”? Ou o
desmentido? Seria o filho explicando como fechar o STF? Ou o pai repreendendo
“o garoto” no dia seguinte? Seria Mourão ao criticar o 13º ou Bolsonaro
anunciando o 13º para o Bolsa Família? Seria Bolsonaro defendendo a liberdade
de imprensa no “Jornal Nacional” ou ele caracterizando a Folha como “indigna”
de receber as verbas publicitárias do governo no mesmo programa? Ou seria seu
vice, algumas horas depois, dizendo que “a imprensa não é inimiga”?
Quem será que “vazou” o vídeo de
Bolsonaro anunciando Fraga como ministro? Será que a Record, emissora do mesmo
Edir Macedo que vem apoiando escancaradamente o presidente, levaria ao ar algo
sem a aprovação de sua equipe? Se sim, porque tirou o vídeo de seus sites? E
porque apenas depois da avalanche de críticas à nomeação de Fraga? Será que o
próprio Bolsonaro solicitou o vazamento? Com qual objetivo? Testar a opinião
pública para um ministro condenado por corrupção? Ou desnortear a cobertura da
imprensa para a montagem de seu ministério?
Afinal, o que é a verdade?
A resposta de Bolsonaro à
pergunta de Pôncio Pilatos está nas entrelinhas de seu tweet de alguns dias
atrás: “Anunciarei os nomes oficialmente em minhas redes. Qualquer informação
além é mera especulação, maldosa e sem credibilidade.” 24 horas depois, Bolsonaro
dá a sua primeira entrevista coletiva barrando a entrada da Folha, O
Globo, Estadão e agências internacionais. O próprio presidente tratou
de obscurecer o que deveria ser esclarecido: “Não sei quem marcou isso (a
coletiva)”, e nem quem havia mandado restringir os veículos.
Bolsonaro e sua equipe têm
trabalhado incansavelmente em cristalizar na cabeça de seus eleitores que a
imprensa tradicional brasileira é “especulação”, “fake news”, “indigna” e “sem
credibilidade”. A verdade não surge mais da multiplicidade de pontos de vista e
do debate entre diferentes vozes. “A verdade” é o que Bolsonaro disser. É essa
a verdade que “vos libertará”. Libertará do lulopetismo, libertará da ameaça
comunista, libertará da imprensa esquerdopata, da ditadura venezuelana.
Para um país com o índice de
leitura do Brasil, soa como música: notícias apuradas por profissionais são
“especulação”, “vamos esperar”, “isso é fake news”, “tem que acabar com essa
imprensa mesmo”. Verdade é o que o Capitão disser em suas redes sociais. É o
que Steve Bannon ensinou nos Estados Unidos: desacredite a imprensa o quanto
você puder e mesmo que você admita em juízo que teve um caso extraconjugal com
uma atriz pornô, seus devotos só acreditarão no que lerem em suas redes
sociais. Imagine em um país como o Brasil, numa eleição construída em cima de
memes e fake news, com uma imprensa em constante crise de recursos como a
nossa. O que é a verdade?
Escolha a sua verdade. Ou melhor,
deixe que o capitão escolha para você. Torça pelo fim da imprensa independente,
em vez de torcer pelo seu aperfeiçoamento. Assim, como nos tempos do comandante
Ustra, você não terá mais notícias de corrupção nem de corruptores nos jornais.
Não terá nem jornais. E, segundo a interpretação que o nosso presidente deu
para o versículo bíblico, finalmente será livre.
Livre para segui-lo.
1 comentário:
Bolsonaro é evangélico, e em momento algum ele citou que ele é a verdade, mas a verdade é que o PT trouxe ao Brasil um caos de proporções gigantescas, que vai ser muito difícil sair desse atoleiro que o Lula trouxe ao nosso amado povo brasileiro. Nós que vivemos no Brasil, sabemos o que está acontecendo. O Lulinha paz e amor nunca existiu.
Enviar um comentário