Martinho Júnior, Luanda
No momento em que o presidente
Trump diz que os Estados Unidos se vão retirar da Síria, após sucessivas
invasões e guerras…
No momento em que na América
Latina os componentes mais progressistas reafirmam na ALBA-TCP (Aliança
Bolivariana para os Povos da Nossa América — Tratado de Comércio dos
Povos) a sua unidade…
Vale a pena recordar, doze anos
depois, que foi em Cabo
Verde que a NATO, em 2006, experimentou as operações
especiais que levaram à dilatação do seu espaço de intervenção, como nunca
antes se havia registado!
A NATO EM CABO VERDE , OU AS
SUCESSIVAS MORTES DE AMÍLCAR CABRAL
“El África ofrece las
características de ser un campo casi virgen para la invasión neocolonial. Se
han producido cambios que, en alguna medida, obligaron a los poderes
neocoloniales a ceder sus antiguas prerrogativas de carácter absoluto. Pero,
cuando los procesos se llevan a cabo ininterrumpidamente, al colonialismo
sucede, sin violencia, un neocolonialismo de iguales efectos en cuanto a la
dominación económica se refiere. Estados Unidos no tenía colonias en esta
región y ahora lucha por penetrar en los antiguos cotos cerrados de sus socios.
Se puede asegurar que África constituye, en los planes estratégicos del imperialismo
norteamericano su reservorio a largo plazo; sus inversiones actuales sólo
tienen importancia en la
Unión Sudafricana y comienza su penetración en el Congo,
Nigeria y otros países, donde se inicia una violenta competencia (con carácter
pacífico hasta ahora) con otros poderes imperialistas”.
Curto extracto da Mensagem de Che
Guevara aos povos do Mundo, através da Tricontinental.
Para quem acompanhou de perto a
saga do movimento de libertação em África e a conhece pela prova de coragem e
abnegação sem limites que deu exemplo, ou para quem a viveu em plena
consciência e continua fiel às suas raízes, à sua nobre identidade, às suas
amplas aspirações de ordem estratégica, reconhece hoje que os acontecimentos em
África após o fim da descolonização e do “apartheid”, correram de feição
para o neocolonialismo, para o imperialismo, não se tendo conseguido
estabelecer o nexo de continuidade histórica e humana a que os líderes
revolucionários de então se propunham.
O futuro de África por essa razão
permanece adiado, com o Continente a viver à margem das grandes transformações
que foram entretanto atingindo a Ásia, ou a América Latina, pasto dum
subdesenvolvimento crónico afectando uma parte importante de sua população que
está condenada a ocupar os últimos escalões dos Índices de Desenvolvimento
Humano conforme os Relatórios anuais do PNUD.
Muitos daqueles que algum dia
haviam participado na saga do movimento de libertação contra o colonialismo,
apesar da modernidade das Organizações politicamente mais enriquecidas,
acabaram também por soçobrar, desaparecendo fisicamente, escolhendo, ou sendo
obrigados a escolher muitos deles, os caminhos contrários aos que antes com
tanta coragem haviam trilhado, numa viragem de 180º que reduz ainda mais as
possibilidades de Independência de muitas das jovens Nações.
A lógica de Brazzaville, a lógica
da segunda coluna do Che em África, a lógica da libertação e do Não
Alinhamento, não teve dirigentes para lhe dar continuidade, em nenhuma das
ex-colónias Portuguesas e depois de 1985.
No final da Guerra Fria,
sensivelmente a partir de 1992, as lógicas do capitalismo Globalizante
impuseram-se sem alternativas, vestindo as cores geoestratégicas de cada Região
em que se inseriam os diversos Estados libertados do colonialismo e do “apartheid”,
mas sem remissão à mercê do neocolonialismo e de suas manipulações.
Cabo Verde, um arquipélago
bordejando a costa Ocidental Africana à latitude do Senegal, com um território
quase inóspito, mantendo durante a fase final do colonialismo, por muitas décadas,
o espectro da fome, da miséria e da migração, tem tido depois de sua
Independência muitas dificuldades em sair da situação de subdesenvolvimento que
tem caracterizado o modo de vida do seu Povo.
Na escala dos Índices de
Desenvolvimento Humano do PNUD de 2004, Cabo Verde ocupa a 105ª posição entre
os Estados considerados de Desenvolvimento Humano Médio, acima de todas as
outras ex-colónias Portuguesas, mas ainda muito longe do pelotão dos “mais
desenvolvidos”.
Apesar da luta de libertação ter
ocorrido à sua margem, no território da Guiné Bissau, as mais conscientes
elites de Cabo Verde empenharam-se bravamente na refrega e o líder do movimento
de vanguarda, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde,
tornou-se num quadro, num político e num estratega que por mérito próprio e de
sua Organização se capacitou como um dos maiores expoentes da luta de
libertação contra o colonialismo em África, na peugada de Che Guevara.
O colonialismo Português fez tudo
para neutralizar o PAIGC, para além do combate militar directo pela posse do
território da Guiné Bissau e, em consequência da existência de correntes
minando por dentro a organização de vanguarda, exploradas por processos
operativos subtis de inteligência, Amílcar Cabral, o líder carismático e um dos
mais notáveis lutadores Africanos contra o colonialismo, é assassinado, em
Janeiro de 1973, precisamente meses antes da Guiné Bissau se proclamar
Independente.
O seu legado filosófico,
histórico e humano, a lógica que norteou a sua conduta humanística, estratégica
e política, apesar da sua fecunda riqueza intelectual apesar da sua
incomparável militância e do seu supremo sacrifício, não foi contudo
aproveitado no post Independência, tanto na Guiné Bissau quanto em Cabo Verde : a sua
dimensão de Africano parece ter passado ao lado de seus companheiros de luta,
tanto na Guiné Bissau como em
Cabo Verde.
Se foi antes da Independência da
Guiné e Cabo Verde que Amílcar Cabral desapareceu fisicamente, o seu legado
quantas vezes terá entretanto morrido, com a eclosão de tantos e tão
manipulados acontecimentos?…
É muito difícil conjecturar o que
seriam esses pequenos Países, se Amílcar Cabral continuasse vivo e desse
continuidade à sua obra, tal como é difícil conjecturar como seria sua vida
dedicada por inteiro aos Povos de Guiné Bissau, Cabo Verde e aos Povos
Africanos duma maneira geral.
Amílcar Cabral foi uma
personalidade que se aproximava de Che Guevara pela sua firmeza inquebrantável,
pela sua entrega e completa devoção à luta, identificando-se por inteiro com os
Povos mais sofridos do Planeta e isso apesar de divergir em relação ao conceito
da necessidade do foco revolucionário.
Os movimentos de libertação que
lutaram nas colónias Portuguesas geograficamente distantes entre si, tiveram uma
filosofia e uma coerência contudo que muito contribuíram para o seu dinamismo
durante o período de luta contra o colonialismo, mas após as Independências as
conjunturas internas dos novos Países, assim como as conjunturas Regionais
envolventes, a evolução que o capitalismo foi determinando para a Guerra Fria,
foram ditando evoluções distintas de uns em relação aos outros, inclusive em
relação aos casos originariamente comuns da Guiné Bissau e Cabo Verde.
A Amílcar Cabral perseguia-o a
consciência absoluta da premente necessidade de justiça humana, social e
política justiça para todos aqueles que ele ardentemente desejou libertar, mas
a gestão de estados fragilizados, minados por velhas querelas, onde impera o
subdesenvolvimento, é uma tarefa que não se compadece com a grandeza
intelectual e humana de personalidades ao nível dum revolucionário como Amílcar
Cabral e não se compadece quando as vanguardas são, ao fim e ao cabo, tão
minguadas de quadros de forte consciência e personalidade, incapazes de criarem
impactos favoráveis e mobilizadores nas sociedades em que se inserem.
Se a Guiné Bissau tem sofrido as
vicissitudes de sua ausência, essa falta de paternidade que passa pela falta de
consciência de muitos dos seus dirigentes, expressa por vezes em acontecimentos
dramáticos, Cabo Verde tem navegado na pobreza e dependência, sem alternativas
progressistas significativas visando alterar para melhor as condições de vida
do seu Povo e isso apesar do empenho e carácter de alguns dos seus melhores
filhos.
Cabo Verde começou a valer muito
mais pelo contexto sociológico e pela sua forte identidade cultural, que não se
deixou abater pela diáspora, do que pelo pendor revolucionário de suas gentes
e, tanto o peso das comunidades migrantes , como a influência dos seus
contactos, ditou a sorte do jovem Estado e a natureza da sua vida e do seu
desenvolvimento.
Com mais de trinta anos de
Independência, se durante a Guerra Fria as ilhas viveram um pouco à margem dos
acontecimentos no Mundo, durante o processo de Globalização, Cabo Verde tem-se
vindo a acomodar num espaço geoestratégico bem definido, em relação ao qual,
durante várias décadas, se foram constituindo laços de sangue, laços de
comunidade, laços sociais inultrapassáveis e interesses, na sequência das
dependências históricas que estão longe de deixar de existir.
A sua insularidade Atlântica
distingue Cabo Verde de África, como se seu Povo fosse um velho e original
navegante com identidade própria e os seus laços afirmam Cabo Verde como
uma “sentinela” geoestratégica duma Europa que também ela teima em
não se assumir, presa aos expedientes históricos dos impérios coloniais, aos
contenciosos advenientes da IIª Guerra Mundial e particularmente a uma
Organização como a NATO, instrumento duma filosofia
hegemónica servil à alta finança e aos seus projectos de domínio sobre o Mundo.
É no espaço físico geográfico
dessa “sentinela” que a NATO escolheu precisamente o cenário para
testar a sua Força de Intervenção Rápida (“NATO Reponse Force”), ao nível de
mais duma vintena de unidades navais (algumas delas constituídas em autênticas
plataformas estratégicas) e de 7.000 homens e para isso muito contribuíram o
antigo guerrilheiro Pedro Pires, (actual Presidente de Cabo Verde), o PAICV
(herdeiro histórico do movimento de libertação) e dirigentes ao nível do
Primeiro Ministro de Cabo Verde, expoente da nova geração de
Governantes das ilhas.
O “Steadfast Jaguar 2006” não
serviu apenas para testar a capacidade da “NATO Reponse Force” fora
dos limites tradicionais da NATO e, pela primeira vez, num País Africano: o
exercício foi mais um elo na sucessão que o poder hegemónico vem dinamizando no
eixo dum paralelo que vai das Caraíbas ao Afeganistão, bordejando uma
estratégia de alargamento de influência das principais potências do sistema
Norte Americano – Europeu.
O seu enquadramento foi perfeito
na sucessão de exercícios como o “Partnership of the Americas” ,
realizado pelo SOUTHCOMMAND dos Estados Unidos, o “Joint Caribean Lion 2006” , sob comando Holandês,
ou ainda o “Phoenix Express”, assim como conjunto de missões que as
Marinhas de Guerra dos Estados Unidos e dos Países da NATO foram explorando no
Atlântico e no Mediterrâneo, entre elas a visita do Emory S. Land à costa
Ocidental Africana, em tempo oportuno para fazer avançar o reconhecimento
subaquático em toda a profundidade dos vários campos de manobra e tendo em
conta os teatros Regionais.
A sublinhar o enquadramento,
foram utilizadas unidades navais similares, algumas delas pertencendo às mesmas
classes de navios:
Por parte dos Estados Unidos
utilizaram-se os navios de assalto anfíbios como o USS Bataan e o USS Saipan,
utilizaram-se ainda porta aviões como o USS George Washington, como o navio
comando USS Mount Whitney, que alberga o comando da 6ª Esquadra da Navy.
Por parte dos Europeus, navios
como o Roterdan (da Holanda), ou o Castilla (de Espanha), unidades polivalentes
que servem para desembarque e assalto.
Nunca as frotas de desembarque e
assalto dos Estados Unidos, como dos Países Europeus da NATO, foram tão poderosos
como hoje e isso é por si, um sinal de como este “modelo” de
Globalização se instrumenta em meios militares, como uma forma “cirúrgica” e “persuasiva” de
ampliar sua margem de manobra e de influência, impondo a “New World Order”.
Ao aceitar que seu território
fosse palco dum exercício desta natureza, integrando um pacote tão vastos de
exercícios com profundo significado militar, político e sócio cultural, Cabo
Verde deixou de se identificar com aqueles Países que procuram estratégias
alternativas, integradas e Não Alinhadas, como Cuba, Venezuela ou Bolívia, na
América Latina, Países que procuram encontrar soluções geoestratégicas que
escapem ao unilateralismo Norte Americano e da NATO, como a Rússia, a China, ou
mesmo alguns Países Africanos que vêem na União Africana muito mais que uma
forma integrada de pensar e agir África.
Ainda o exercício estava em
curso, Cabo Verde foi (muito oportunamente) visitado pelo Ministro dos Negócios
Estrangeiros de Cuba, Filipe Pérez Roque, que veio convidar o Presidente Pedro
Pires para a 14ª Cimeira do Movimento dos Não Alinhados, como que se Cuba
Revolucionária estivesse precisamente a lembrar que a presença da NATO era por
si uma fronteira, em relação à qual a “sentinela” Cabo Verde deveria
séria e dignamente ter a possibilidade de optar.
Cuba Revolucionária, fiel à
lógica de Brazzaville, do Não Alinhamento e dando sequência à epopeia do
movimento de libertação, lembra também e dum modo muito diplomaticamente
discreto, que todos os exercícios navais das Caraíbas ao Afeganistão, assim
como todos os contenciosos militares e operativos dentro dessa vastíssima
Região, são a prova de que a NATO está dilatada, muito para lá das suas
fronteiras tradicionais e que suas ambições não se limitavam à quimérica defesa
da Europa, segundo o pensamento típico anglo-saxónico.
Cuba Revolucionária lembra ainda
que para a Espanha, tão singularmente presente no “Phoenix Express” quanto
no“Steadfast Jaguar 2006” ,
tal como para Portugal, há uma alternativa para o pensamento estratégico anglo-saxão,
na via dum Pacto Hispânico alargado à América Latina e a África, alternativa
essa que nunca foi alguma vez explorada.
A NATO veio provar em Cabo Verde a sua
vontade em atingir outras paragens, alargar a sua influência e servir os
interesses que tutelam o “modelo” de Globalização que as elites
financeiras do grande capital pretendem, em função da sobrevivência dos
seus “lobbies” e interesses.
Não conseguiu esconder contudo o
essencial: a vida não se compadece com um contínuo exercício musculado de poder
e se as Nações e Povos do Sul, como pretendem estadistas como Hugo Chavez,
conseguirem lutar por seus interesses e unidade, muita coisa se poderá alterar,
inclusive no microcosmos que constitui o que é hoje a “sentinela” de
Cabo Verde.
Intervenção de Julho de 2006
Martinho Júnior - Luanda
Imagens:
Logotipo da Jaguar Steadfast
2006 sobreposto em foto de momento de exercício em Cabo Verde
Logotipo da NATO Reponse Force;
Visita-constatação do então
Presidente Pedro Pires, às manobras em curso em Julho de 2006;
Imagem aérea da pista do
aeroporto do Sal, durante o exercício.
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