sábado, 22 de dezembro de 2018

Memória dum expansionismo embarcado no capitalismo financeiro transnacional


Martinho Júnior, Luanda 

No momento em que o presidente Trump diz que os Estados Unidos se vão retirar da Síria, após sucessivas invasões e guerras…

No momento em que na América Latina os componentes mais progressistas reafirmam na ALBA-TCP (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América — Tratado de Comércio dos Povos) a sua unidade…


Vale a pena recordar, doze anos depois, que foi em Cabo Verde que a NATO, em 2006, experimentou as operações especiais que levaram à dilatação do seu espaço de intervenção, como nunca antes se havia registado!

A NATO EM CABO VERDE, OU AS SUCESSIVAS MORTES DE AMÍLCAR CABRAL

“El África ofrece las características de ser un campo casi virgen para la invasión neocolonial. Se han producido cambios que, en alguna  medida, obligaron a los poderes neocoloniales a ceder sus antiguas prerrogativas de carácter absoluto. Pero, cuando los procesos se llevan a cabo ininterrumpidamente, al colonialismo sucede, sin violencia, un neocolonialismo de iguales efectos en cuanto a la dominación económica se refiere. Estados Unidos no tenía colonias en esta región y ahora lucha por penetrar en los antiguos cotos cerrados de sus socios. Se puede asegurar que África constituye, en los planes estratégicos del imperialismo norteamericano su reservorio a largo plazo; sus inversiones actuales sólo tienen importancia en la Unión Sudafricana y comienza su penetración en el Congo, Nigeria y otros países, donde se inicia una violenta competencia (con carácter pacífico hasta ahora) con otros poderes imperialistas”.

Curto extracto da Mensagem de Che Guevara aos povos do Mundo, através da Tricontinental.

Para quem acompanhou de perto a saga do movimento de libertação em África e a conhece pela prova de coragem e abnegação sem limites que deu exemplo, ou para quem a viveu em plena consciência e continua fiel às suas raízes, à sua nobre identidade, às suas amplas aspirações de ordem estratégica, reconhece hoje que os acontecimentos em África após o fim da descolonização e do “apartheid”, correram de feição para o neocolonialismo, para o imperialismo, não se tendo conseguido estabelecer o nexo de continuidade histórica e humana a que os líderes revolucionários de então se propunham.

O futuro de África por essa razão permanece adiado, com o Continente a viver à margem das grandes transformações que foram entretanto atingindo a Ásia, ou a América Latina, pasto dum subdesenvolvimento crónico afectando uma parte importante de sua população que está condenada a ocupar os últimos escalões dos Índices de Desenvolvimento Humano conforme os Relatórios anuais do PNUD.

Muitos daqueles que algum dia haviam participado na saga do movimento de libertação contra o colonialismo, apesar da modernidade das Organizações politicamente mais enriquecidas, acabaram também por soçobrar, desaparecendo fisicamente, escolhendo, ou sendo obrigados a escolher muitos deles, os caminhos contrários aos que antes com tanta coragem haviam trilhado, numa viragem de 180º que reduz ainda mais as possibilidades de Independência de muitas das jovens Nações.

A lógica de Brazzaville, a lógica da segunda coluna do Che em África, a lógica da libertação e do Não Alinhamento, não teve dirigentes para lhe dar continuidade, em nenhuma das ex-colónias Portuguesas e depois de 1985.

No final da Guerra Fria, sensivelmente a partir de 1992, as lógicas do capitalismo Globalizante impuseram-se sem alternativas, vestindo as cores geoestratégicas de cada Região em que se inseriam os diversos Estados libertados do colonialismo e do “apartheid”, mas sem remissão à mercê do neocolonialismo e de suas manipulações.

Cabo Verde, um arquipélago bordejando a costa Ocidental Africana à latitude do Senegal, com um território quase inóspito, mantendo durante a fase final do colonialismo, por muitas décadas, o espectro da fome, da miséria e da migração, tem tido depois de sua Independência muitas dificuldades em sair da situação de subdesenvolvimento que tem caracterizado o modo de vida do seu Povo.

Na escala dos Índices de Desenvolvimento Humano do PNUD de 2004, Cabo Verde ocupa a 105ª posição entre os Estados considerados de Desenvolvimento Humano Médio, acima de todas as outras ex-colónias Portuguesas, mas ainda muito longe do pelotão dos “mais desenvolvidos”.

Apesar da luta de libertação ter ocorrido à sua margem, no território da Guiné Bissau, as mais conscientes elites de Cabo Verde empenharam-se bravamente na refrega e o líder do movimento de vanguarda, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, tornou-se num quadro, num político e num estratega que por mérito próprio e de sua Organização se capacitou como um dos maiores expoentes da luta de libertação contra o colonialismo em África, na peugada de Che Guevara.

O colonialismo Português fez tudo para neutralizar o PAIGC, para além do combate militar directo pela posse do território da Guiné Bissau e, em consequência da existência de correntes minando por dentro a organização de vanguarda, exploradas por processos operativos subtis de inteligência, Amílcar Cabral, o líder carismático e um dos mais notáveis lutadores Africanos contra o colonialismo, é assassinado, em Janeiro de 1973, precisamente meses antes da Guiné Bissau se proclamar Independente.

 O seu legado filosófico, histórico e humano, a lógica que norteou a sua conduta humanística, estratégica e política, apesar da sua fecunda riqueza intelectual apesar da sua incomparável militância e do seu supremo sacrifício, não foi contudo aproveitado no post Independência, tanto na Guiné Bissau quanto em Cabo Verde: a sua dimensão de Africano parece ter passado ao lado de seus companheiros de luta, tanto na Guiné Bissau como em Cabo Verde.

Se foi antes da Independência da Guiné e Cabo Verde que Amílcar Cabral desapareceu fisicamente, o seu legado quantas vezes terá entretanto morrido, com a eclosão de tantos e tão manipulados acontecimentos?…

É muito difícil conjecturar o que seriam esses pequenos Países, se Amílcar Cabral continuasse vivo e desse continuidade à sua obra, tal como é difícil conjecturar como seria sua vida dedicada por inteiro aos Povos de Guiné Bissau, Cabo Verde e aos Povos Africanos duma maneira geral.

Amílcar Cabral foi uma personalidade que se aproximava de Che Guevara pela sua firmeza inquebrantável, pela sua entrega e completa devoção à luta, identificando-se por inteiro com os Povos mais sofridos do Planeta e isso apesar de divergir em relação ao conceito da necessidade do foco revolucionário.

Os movimentos de libertação que lutaram nas colónias Portuguesas geograficamente distantes entre si, tiveram uma filosofia e uma coerência contudo que muito contribuíram para o seu dinamismo durante o período de luta contra o colonialismo, mas após as Independências as conjunturas internas dos novos Países, assim como as conjunturas Regionais envolventes, a evolução que o capitalismo foi determinando para a Guerra Fria, foram ditando evoluções distintas de uns em relação aos outros, inclusive em relação aos casos originariamente comuns da Guiné Bissau e Cabo Verde.

A Amílcar Cabral perseguia-o a consciência absoluta da premente necessidade de justiça humana, social e política justiça para todos aqueles que ele ardentemente desejou libertar, mas a gestão de estados fragilizados, minados por velhas querelas, onde impera o subdesenvolvimento, é uma tarefa que não se compadece com a grandeza intelectual e humana de personalidades ao nível dum revolucionário como Amílcar Cabral e não se compadece quando as vanguardas são, ao fim e ao cabo, tão minguadas de quadros de forte consciência e personalidade, incapazes de criarem impactos favoráveis e mobilizadores nas sociedades em que se inserem.

Se a Guiné Bissau tem sofrido as vicissitudes de sua ausência, essa falta de paternidade que passa pela falta de consciência de muitos dos seus dirigentes, expressa por vezes em acontecimentos dramáticos, Cabo Verde tem navegado na pobreza e dependência, sem alternativas progressistas significativas visando alterar para melhor as condições de vida do seu Povo e isso apesar do empenho e carácter de alguns dos seus melhores filhos.

Cabo Verde começou a valer muito mais pelo contexto sociológico e pela sua forte identidade cultural, que não se deixou abater pela diáspora, do que pelo pendor revolucionário de suas gentes e, tanto o peso das comunidades migrantes , como a influência dos seus contactos, ditou a sorte do jovem Estado e a natureza da sua vida e do seu desenvolvimento.

Com mais de trinta anos de Independência, se durante a Guerra Fria as ilhas viveram um pouco à margem dos acontecimentos no Mundo, durante o processo de Globalização, Cabo Verde tem-se vindo a acomodar num espaço geoestratégico bem definido, em relação ao qual, durante várias décadas, se foram constituindo laços de sangue, laços de comunidade, laços sociais inultrapassáveis e interesses, na sequência das dependências históricas que estão longe de deixar de existir.

A sua insularidade Atlântica distingue Cabo Verde de África, como se seu Povo fosse um velho e original navegante com identidade própria e os seus laços afirmam Cabo Verde como uma “sentinela” geoestratégica duma Europa que também ela teima em não se assumir, presa aos expedientes históricos dos impérios coloniais, aos contenciosos advenientes da IIª Guerra Mundial e particularmente a uma Organização como  a  NATO, instrumento duma filosofia hegemónica servil à alta finança e aos seus projectos de domínio sobre o Mundo.

É no espaço físico geográfico dessa “sentinela” que a NATO escolheu precisamente o cenário para testar a sua Força de Intervenção Rápida (“NATO Reponse Force”), ao nível de mais duma vintena de unidades navais (algumas delas constituídas em autênticas plataformas estratégicas) e de 7.000 homens e para isso muito contribuíram o antigo guerrilheiro Pedro Pires, (actual Presidente de Cabo Verde), o PAICV (herdeiro histórico do movimento de libertação) e dirigentes ao nível do Primeiro Ministro de Cabo Verde,  expoente da nova geração de Governantes das ilhas.

O “Steadfast Jaguar 2006” não serviu apenas para testar a capacidade da “NATO Reponse Force”  fora dos limites tradicionais da NATO e, pela primeira vez, num País Africano: o exercício foi mais um elo na sucessão que o poder hegemónico vem dinamizando no eixo dum paralelo que vai das Caraíbas ao Afeganistão, bordejando uma estratégia de alargamento de influência das principais potências do sistema Norte Americano – Europeu.

O seu enquadramento foi perfeito na sucessão de exercícios como o “Partnership of the Americas” , realizado pelo SOUTHCOMMAND dos Estados Unidos, o “Joint Caribean Lion 2006”, sob comando Holandês, ou ainda o “Phoenix Express”, assim como conjunto de missões que as Marinhas de Guerra dos Estados Unidos e dos Países da NATO foram explorando no Atlântico e no Mediterrâneo, entre elas a visita do Emory S. Land à costa Ocidental Africana, em tempo oportuno para fazer avançar o reconhecimento subaquático em toda a profundidade dos vários campos de manobra e tendo em conta os teatros Regionais.

A sublinhar o enquadramento, foram utilizadas unidades navais similares, algumas delas pertencendo às mesmas classes de navios:

Por parte dos Estados Unidos utilizaram-se os navios de assalto anfíbios como o USS Bataan e o USS Saipan, utilizaram-se ainda porta aviões como o USS George Washington, como o navio comando USS Mount Whitney, que alberga o comando da 6ª Esquadra da Navy.

Por parte dos Europeus, navios como o Roterdan (da Holanda), ou o Castilla (de Espanha), unidades polivalentes que servem para desembarque e assalto.

Nunca as frotas de desembarque e assalto dos Estados Unidos, como dos Países Europeus da NATO, foram tão poderosos como hoje e isso é por si, um sinal de como este “modelo” de Globalização se instrumenta em meios militares, como uma forma “cirúrgica” e “persuasiva” de ampliar sua margem de manobra e de influência, impondo a “New World Order”.

Ao aceitar que seu território fosse palco dum exercício desta natureza, integrando um pacote tão vastos de exercícios com profundo significado militar, político e sócio cultural, Cabo Verde deixou de se identificar com aqueles Países que procuram estratégias alternativas, integradas e Não Alinhadas, como Cuba, Venezuela ou Bolívia, na América Latina, Países que procuram encontrar soluções geoestratégicas que escapem ao unilateralismo Norte Americano e da NATO, como a Rússia, a China, ou mesmo alguns Países Africanos que vêem na União Africana muito mais que uma forma integrada de pensar e agir África.

Ainda o exercício estava em curso, Cabo Verde foi (muito oportunamente) visitado pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros de Cuba, Filipe Pérez Roque, que veio convidar o Presidente Pedro Pires para a 14ª Cimeira do Movimento dos Não Alinhados, como que se Cuba Revolucionária estivesse precisamente a lembrar que a presença da NATO era por si uma fronteira, em relação à qual a “sentinela” Cabo Verde deveria séria e dignamente ter a possibilidade de optar.

Cuba Revolucionária, fiel à lógica de Brazzaville, do Não Alinhamento e dando sequência à epopeia do movimento de libertação, lembra também e dum modo muito diplomaticamente discreto, que todos os exercícios navais das Caraíbas ao Afeganistão, assim como todos os contenciosos militares e operativos dentro dessa vastíssima Região, são a prova de que a NATO está dilatada, muito para lá das suas fronteiras tradicionais e que suas ambições não se limitavam à quimérica defesa da Europa, segundo o pensamento típico anglo-saxónico.

Cuba Revolucionária lembra ainda que para a Espanha, tão singularmente presente no “Phoenix Express” quanto no“Steadfast Jaguar 2006”, tal como para Portugal, há uma alternativa para o pensamento estratégico anglo-saxão, na via dum Pacto Hispânico alargado à América Latina e a África, alternativa essa que nunca foi alguma vez explorada.

A NATO veio provar em Cabo Verde a sua vontade em atingir outras paragens, alargar a sua influência e servir os interesses que tutelam o “modelo” de Globalização que as elites financeiras do grande capital pretendem, em função da sobrevivência dos seus “lobbies” e interesses.

Não conseguiu esconder contudo o essencial: a vida não se compadece com um contínuo exercício musculado de poder e se as Nações e Povos do Sul, como pretendem estadistas como Hugo Chavez, conseguirem lutar por seus interesses e unidade, muita coisa se poderá alterar, inclusive no microcosmos que constitui o que é hoje a “sentinela” de Cabo Verde.

Intervenção de Julho de 2006

Martinho Júnior - Luanda

Imagens:
Logotipo da Jaguar Steadfast 2006 sobreposto em foto de momento de exercício em Cabo Verde
Logotipo da NATO Reponse Force;
Visita-constatação do então Presidente Pedro Pires, às manobras em curso em Julho de 2006;
Imagem aérea da pista do aeroporto do Sal, durante o exercício.

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