Ricardo Paes Mamede | Diário de
Notícias | opinião
O debate público em Portugal sobre
a legalização da canábis é frequentemente tratado com displicência. Uns arrumam
rapidamente o assunto como irrelevante; outros acusam os proponentes de usarem
o tema como mera bandeira política. Tais atitudes fazem pouco sentido, por dois
motivos. Primeiro, a discussão sobre o enquadramento legal da canábis está hoje
em curso em vários pontos do mundo, não faltando bons motivos para tal.
Segundo, Portugal tem bons motivos e está em boas condições para fazer esse
caminho. Resta saber se há vontade.
Desde há algumas décadas que o
consumo de canábis (haxixe e marijuana, nas suas formas mais comuns) deixou de
ser olhado como um pecado ou um crime. Apesar de continuar ilegal em muitas
partes do mundo, vários países optaram por descriminalizar o consumo e um
número crescente de países - ou partes de países - tem optado por legalizá-lo,
para fins medicinais e/ou recreativos. Canadá, Uruguai e vários estados dos EUA
foram mais longe, decidindo legalizar não apenas o consumo, mas também a
produção e a distribuição, sujeitando todo o ciclo económico da canábis a uma
regulação específica por parte das autoridades públicas.
Portugal tem acompanhado algumas
destas evoluções. No início do século o uso de drogas foi descriminalizado no
nosso país (Lei n.º 30/2000), centrando a acção do Estado na redução de danos.
Ao contrário do que os seus opositores então anunciaram, este novo regime
jurídico não levou a um aumento descontrolado do consumo de estupefacientes,
nem tornou Portugal num paraíso para o "turismo das drogas". Na
verdade, os níveis de consumo mantiveram-se inalterados, sendo que Portugal
apresenta hoje uma das taxas mais baixas de consumo de canábis a nível europeu.
Já este ano foi aprovada no
Parlamento português a legalização do uso de canábis para efeitos medicinais
(Lei n.º 33/2018), contando para tal com os votos favoráveis de todos os
partidos, excepto o CDS (que se absteve). A nova lei atribuiu ao Infarmed a missão
de regular e supervisionar todas as actividades relacionadas com a produção e
venda do produto, incluindo autorizar a produção em Portugal, havendo já várias
plantações em actividade e dezenas de projectos de investimento sob análise, atraídos pelas condições propícias à produção no
território nacional.
As evoluções que têm sido
registadas em Portugal e em vários outros países mostram que a canábis já não é
vista como uma questão da esfera da justiça, mas antes de saúde individual e
pública, e também como uma questão económica. Para tal contribui o facto de se
tratar da substância não legal mais consumida em todo o mundo, facilitando o
debate informado sobre os potenciais riscos e vantagens da sua legalização e
regulação. A desdramatização do tema também beneficia do facto de estarem hoje bem estabelecidos na literatura médica os
efeitos terapêuticos da canábis (alívio da dor crónica, redução da náusea em
doentes em quimioterapia, entre outros).
A ênfase dada aos benefícios
terapêuticos não ilude várias outras questões que se colocam neste debate. Do
ponto de vista da saúde e da segurança pública, a canábis apresenta problemas
que se assemelham aos do álcool e/ou do tabaco: o seu consumo aumenta a
probabilidade de acidentes rodoviários, pode provocar problemas durante a
gravidez, e prejudica a aprendizagem, a memória e a atenção, podendo ter efeitos
negativos de longo prazo nos casos de consumo intenso na adolescência. Existe
também evidência robusta sobre riscos acrescidos de desenvolvimento de
esquizofrenia e outras psicoses, decorrentes do uso abusivo de canábis.
A questão que se coloca é: qual o
enquadramento legal mais indicado? No caso do álcool e do tabaco, a opção na
maioria dos países do mundo foi pela sua regulamentação (mais ou menos
restritiva). O debate sobre a adopção do mesmo princípio para o caso da canábis
envolve considerações ético-doutrinárias, médico-científicas e pragmáticas.
Ao nível doutrinário
confrontam-se habitualmente posturas moralistas-autoritárias (que pressupõem
que o Estado tem o direito e a obrigação de decidir pelos cidadãos o que devem
e não devem fazer com as suas vidas) e posições individualistas (que defendem a
soberania da escolha individual e a ilegitimidade do Estado em restringir a
liberdade de acção de cada um). No entanto, entre o moralismo autoritário e o
individualismo absoluto existe espaço para uma postura que combina o respeito
pela liberdade individual com a responsabilidade colectiva. Nesta perspectiva,
cabe ao Estado proporcionar informação, conhecimento e condições materiais para
escolhas individuais conscientes, bem como prevenir eventuais implicações
negativas dessas escolhas para o conjunto da sociedade. Esta tem sido a opção
dos países que têm abandonado o proibicionismo.
No caso do Canadá, o governo de
Justin Trudeau optou pela legalização da canábis, desde a sua produção até ao
consumo, explicitando os objectivos dessa opção e estabelecendo um quadro
regulatório claro e coerente com aqueles objectivos. O novo quadro legal visa
reduzir o crime e a violência associados ao mercado negro, minimizar os efeitos
perversos das substâncias adulteradas (um problema crescente nos últimos anos),
reduzir os custos relacionados com a repressão e obter recursos adicionais
através da taxação da produção e da venda do produto. A legalização foi
acompanhada do agravamento das penas por venda ilegal (principalmente junto de
menores) e por condução sob o efeito da substância. O governo decidiu ainda
usar parte das receitas fiscais obtidas com a legalização para reforçar as
campanhas de informação e sensibilização para um uso responsável de canábis,
mas também do álcool, do tabaco e de outras drogas.
O exemplo canadiano merece
atenção não apenas pela abordagem global à produção, distribuição e utilização
da canábis, mas também pelo processo político envolvido. Pouco depois das
eleições de Outubro de 2015, o primeiro-ministro Trudeau nomeou uma unidade de
missão para analisar e propor diferentes vias para a legalização. Cerca de um
ano depois essa equipa produziu um relatório com várias recomendações. O
documento foi então disponibilizado para discussão alargada, tendo a proposta
final de legislação sido colocada à votação três anos após o lançamento da
iniciativa, num processo que se revelou aberto, ponderado e participado.
Portugal pode e deve olhar com
atenção para este exemplo e seguir-lhe as pegadas. Apesar dos passos que já
foram dados, a legislação actualmente em vigor não resolve os problemas
relacionados com o mercado negro e a criminalidade organizada, os riscos
associados a produtos adulterados, a perda de receita fiscal potencial, as
importações desnecessárias e, acima de tudo, a uma abordagem pouco clara,
incoerente e inconsequente sobre o consumo de canábis. Estamos em condições de
dar um passo em frente neste debate. Assim haja vontade.
*Economista e professor do
ISCTE-IUL
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