sábado, 29 de dezembro de 2018

Nas dívidas, o declínio do Ocidente


Por não conseguir revê-las ou anulá-las periodicamente, nossa civilização mergulha em desigualdade e caos agudos – como os de agora. Há 3 mil anos, sumérios tinham uma saída

Alastair Crooke, no Strategic Culture | em Outras Palavras |  Tradução: Felipe Calabrez

A liderança da União Europeia (UE) está tentando conter uma crise que emerge em velocidade crescente: este desafio compreende a ascensão de Estados desobedientes (ou seja, o Reino Unido, Polônia, Hungria e Itália) ou de “blocos culturais” históricos desafiadores (ou seja, Catalunha). Todos estes estão explicitamente desencantados com a noção de alguma convergência forçada para uma “ordem” uniforme administrada pela UE, com suas “disciplinas” monetárias austeras. Eles até mesmo ignoram a pretensão da UE de ser, de alguma maneira, parte de uma ordem civilizacional de valores morais superiores.

Se no Pós-Guerra a UE representava uma tentativa de escapar da hegemonia anglo-americana, esses novos e desafiadores blocos de “ressurgência cultural”, que buscam se situar como espaços soberanos interdependentes, são, por seu turno, um tentativa de escapar de outra hegemonia: a de uma UE uniformemente administrada.

Para sair dessa ordem europeia particular (que, esperava-se originalmente, diferiria do império anglo-americano), a UE foi, porém, forçada a apoiar-se na arquetípica noção de “liberdade” como justificação do império (agora metamorfoseada nas quadro liberdades da UE) em que se apoiaram as “uniformidades” estritas da UE (igualdade de condições, regulação de todos os aspectos da vida, harmonização fiscal e económica). O projeto europeu passou a ser visto, por assim dizer, como algo que esvazia os distintos e antigos “modos de ser”.

O próprio fato de haver estes ensaios , em diferentes níveis e em distintas regiões geográficas culturais, indica que a hegemonia da UE já enfraqueceu a tal ponto que ela pode não ser capaz de conter totalmente o surgimento dessa nova onda. O que está em causa precisamente para a UE é saber se pode retardar e reprimir, em todos os sentidos, a emergência deste processo de “re-soberanização” cultural – que, obviamente, ameaça fragmentar a propalada “solidariedade” da UE e fragmentar sua matriz de uma união aduaneira e área de comércio comum perfeitamente reguladas.

Foi Carl Schmitt – o filósofo político – quem, no entanto, alertou veementemente contra a possibilidade do que ele chamou de “acelerador Katechon negativo”, o que parece se aplicar exatamente à situação em que a UE se encontra no presente. Trata-se de uma noção, sustentada pelos antigos, de que os eventos históricos frequentemente têm uma “dimensão de fundo contrária”, isto é, que uma dada “intenção” ou ação (por exemplo, por parte da UE) pode acabar acelerando precisamente os processos que ela visava desacelerar ou estancar. Para Schmitt, isto explica o paradoxo através do qual uma “ação de frear” (como a que está sendo realizada pela UE) pode na verdade se reverter em uma aceleração indesejada dos próprios processos a que a UE pretende se opor. Schmitt chamou isso de processo “involuntário”, uma vez que produz efeitos opostos à intenção original. Para os antigos, isso simplesmente lembrava que nós, humanos, muitas vezes somos meros objetos da história, e não seus sujeitos causais.

É possível que a “ação de frear” imposta à Grécia, à Grã-Bretanha, à Hungria – e agora à Itália – possa deslizar precisamente em direção ao fenômeno Katechon de que fala Schmitt. A Itália permaneceu no limbo económico por décadas: seu novo governo sente-se obrigado a aliviar, de alguma forma, o estresse econômico acumulado nos últimos anos e a tentar retomar o crescimento. Mas o Estado tem um alto nível de endividamento, diante do que a UE insiste que a Itália deve sofrer as consequências: deve obedecer às “regras”.

O professor Michael Hudson, em livro recente, explica como a “ação de frear” da UE em relação à dívida italiana representa uma certa vertente europeia de rigidez psíquica que ignora totalmente a experiência histórica e pode resultar precisamente em Katechon: o oposto do que se pretende. Entrevistado por John Siman, Hudson diz:

“Nas antigas sociedades mesopotâmicas, entendia-se que a liberdade era preservada protegendo-se os devedores. Um modelo corretivo de fato existiu e floresceu no funcionamento económico das sociedades mesopotâmicas, durante o terceiro e segundo milénios a.C. Pode ser chamada de Anistia de Pratos Limpos… Consistia no necessário e periódico cancelamento das dívidas de pequenos agricultores. Necessário porque tais agricultores estão inevitavelmente sujeitos – em qualquer sociedade em que se contabilizam juros sobre empréstimos – a ser empobrecidos, destituídos de sua propriedade, e, no limite, submetidos à servidão … por seus credores”.

[…] [E também necessária porque] a dinâmica constante da história tem sido o impulso das elites financeiras para centralizar o controle em suas próprias mãos e administrar a economia de forma predatória e extrativista. Sua ostensiva liberdade [vem] às custas da autoridade governante e da economia em geral. Como tal, é o oposto da liberdade – como concebida no tempo sumério …

Por isso, foi inevitável (nos séculos posteriores) que, na história grega e romana, um número crescente de pequenos agricultores tenha se tornado irremediavelmente endividado e perdido suas terras. Da mesma forma como foi inevitável que seus credores tenham acumulado enormes propriedades de terra e se estabelecido em oligarquias parasitárias. Essa tendência inata à polarização social – decorrente da noção de dívida como algo imperdoável – – é a maldição original e incurável de nosso pós-século VIII. É a marca de nascença escabrosa da Civilização Ocidental, que não pode ser lavada ou extirpada.

Hudson argumenta que o longo declínio e queda de Roma começa, não como quer Gibbon, com a morte de Marco Aurélio, mas quatro séculos antes, após a devastação de Aníbal no campo italiano durante a Segunda Guerra Púnica (218-201 aC). Depois daquela guerra, os pequenos agricultores da Itália nunca mais recuperaram suas terras, que foram sistematicamente engolidas pela prædia, as grandes propriedades oligárquicas, como Plínio, o Velho, observou. [É claro que hoje são as pequenas e médias empresas italianas que estão sendo engolidas por corporações oligárquicas e pan-europeias.]

Mas entre os estudiosos modernos, como aponta Hudson, “Arnold Toynbee está quase sozinho ao enfatizar o papel da dívida na concentração da riqueza romana e da propriedade” (p. xviii) — e assim explicar o declínio do Império Romano…

“As sociedades mesopotâmicas não estavam interessadas em igualdade”, ele disse ao entrevistador, “mas elas eram civilizadas. E possuíam a sofisticação financeira para entender que, uma vez que os juros sobre empréstimos aumentam exponencialmente, enquanto o crescimento económico segue, na melhor da hipóteses, uma curva S, isso significa que os devedores, se não protegidos por uma autoridade central, tornam-se servos permanentes de seus credores. Assim, os reis da Mesopotâmia resgatavam regularmente os devedores esmagados por suas dívidas. Eles sabiam que precisavam fazer isso. Repetidas vezes, século após século, eles proclamavam a “Amnistia dos Pratos Limpos”.

A UE puniu a Grécia por seu desregramento – e deve punir a Itália se ela burlar as regras fiscais da UE. A UE está fazendo o que Scmith denominou de “ação de frear” para manter sua hegemonia.

É, no entanto, um caso concreto em que a UE enxerga o pequeno cisco nos olhos da Itália, porém ignora a estaca em seu próprio olho. Lakshman Achutan, do Instituto de Estudos do Ciclo Económico, escreve:

“A soma da dívida dos EUA, da Zona do Euro, do Japão e da China aumentou mais de dez vezes em relação ao PIB no ano passado. É notável que a economia global – desacelerando em sincronia, apesar do endividamento galopante – encontre-se em uma situação remanescente do Efeito Rainha Vermelha. Como esta personagem diz em Alice em Através do Espelho, de Lewis Carroll, “Agora, aqui, você vê, é preciso correr o bastante para continuar no mesmo lugar. Se quiser chegar em outro lugar, você deve correr pelo menos duas vezes mais rápido que isso!”

Mas isso – correr mais rápido, assumir mais dívidas – só pode, ao final, ser resolvido com um grande calote (ou com medidas inflacionárias). Olhemos para os EUA: seu PIB está crescendo em 2,5%; a dívida federal está em 105% do PIB; o Tesouro está gastando US$ 1,5 bilhão em juros por dia, e a dívida está crescendo em 5-6% do PIB. Não é sustentável.

As demandas da Grécia e da Itália pelo alívio da dívida podem ser consideradas por alguns como um favorecimento, na esteira da má gestão económica do passado; mas as demandas dos sumérios e babilónios não se baseavam nisso – mas em uma tradição conservadora baseada em rituais de renovação do calendário-cosmo e suas periodicidades, nos diz Hudson. A ideia mesopotâmica de reforma estava longe do sentido daquilo que chamamos de “progresso social”. Em vez disso, as medidas instituídas pelo rei sobre as dívidas, em seus “jubileus” eram destinadas a restaurar uma ordem subjacente na sociedade, um maat. “As regras do jogo não eram alteradas, mas todos recebiam uma nova cartada”.

Hudson observa que “os gregos e os romanos substituíram a ideia cíclica de tempo e renovação social pela de tempo linear” [com a convergência em direção a um “fim dos tempos”]: “A polarização económica tornou-se irreversível, não meramente temporária”, assim como a ideia de renovação se perdeu. Hudson poderia ter acrescentado que o tempo linear e a perda do imperativo de despertencimento e renovação desempenharam um papel importante na sustentação de todos os projetos universalistas da Europa que buscavam um itinerário linear rumo à transformação humana (ou, o utopismo).

Esta é a contradição fudamental: a inelutável defasagem económica e polarização está transformando a Europa em um continente dilacerado por uma contradição interna insolúvel. Por um lado, castiga a Itália por suas dívidas; por outro, o Banco Central Europeu (BCE) buscou a “repressão” da taxa de juros, até reduzi-la abaixo de zero e transformou em moeda viva [por meio do “quantitative easing”] um volume de dívida equivalente a um terço da produção global da Europa. Como a UE não poderia prever que os bancos e as empresas carregassem sua dívida “positiva”? Como poderia esperar que os bancos não inflassem seus balanços com “dívida livre” a ponto de se tornarem “grandes demais para falir”?

A explosão global da dívida é um macro-problema que transcende vastamente o microcosmo da Itália. Tal como o antigo Império Romano, a UE atrofiou-se na sua “ordem” para se tornar um obstáculo à mudança. Sem alternativa, mantém uma “ação de frear” que acabará por produzir efeitos completamente contrários à intenção original; e por provocar um Katechon involuntário e negativo.

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