Por não conseguir revê-las ou
anulá-las periodicamente, nossa civilização mergulha em desigualdade e caos
agudos – como os de agora. Há 3 mil anos, sumérios tinham uma saída
A liderança da União Europeia (UE) está tentando conter uma crise que emerge em velocidade crescente: este
desafio compreende a ascensão de Estados desobedientes (ou seja, o Reino Unido,
Polônia, Hungria e Itália) ou de “blocos culturais” históricos desafiadores (ou
seja, Catalunha). Todos estes estão explicitamente desencantados com a noção de
alguma convergência forçada para uma “ordem” uniforme administrada pela UE, com
suas “disciplinas” monetárias austeras. Eles até mesmo ignoram a pretensão da
UE de ser, de alguma maneira, parte de uma ordem civilizacional de valores
morais superiores.
Se no Pós-Guerra a UE
representava uma tentativa de escapar da hegemonia anglo-americana, esses novos
e desafiadores blocos de “ressurgência cultural”, que buscam se situar como
espaços soberanos interdependentes, são, por seu turno, um tentativa de escapar
de outra hegemonia: a de uma UE uniformemente administrada.
Para sair dessa ordem europeia
particular (que, esperava-se originalmente, diferiria do império anglo-americano),
a UE foi, porém, forçada a apoiar-se na arquetípica noção de “liberdade” como
justificação do império (agora metamorfoseada nas quadro liberdades da UE) em
que se apoiaram as “uniformidades” estritas da UE (igualdade de condições,
regulação de todos os aspectos da vida, harmonização fiscal e económica). O
projeto europeu passou a ser visto, por assim dizer, como algo que esvazia os
distintos e antigos “modos de ser”.
O próprio fato de haver estes
ensaios , em diferentes níveis e em distintas regiões geográficas culturais,
indica que a hegemonia da UE já enfraqueceu a tal ponto que ela pode não ser
capaz de conter totalmente o surgimento dessa nova onda. O que está em causa
precisamente para a UE é saber se pode retardar e reprimir, em todos os sentidos,
a emergência deste processo de “re-soberanização” cultural – que, obviamente,
ameaça fragmentar a propalada “solidariedade” da UE e fragmentar sua matriz de
uma união aduaneira e área de comércio comum perfeitamente reguladas.
Foi Carl Schmitt – o filósofo
político – quem, no entanto, alertou veementemente contra a possibilidade do
que ele chamou de “acelerador Katechon negativo”, o que parece se aplicar
exatamente à situação em que a UE se encontra no presente. Trata-se de uma
noção, sustentada pelos antigos, de que os eventos históricos frequentemente
têm uma “dimensão de fundo contrária”, isto é, que uma dada “intenção” ou ação
(por exemplo, por parte da UE) pode acabar acelerando precisamente os processos
que ela visava desacelerar ou estancar. Para Schmitt, isto explica o paradoxo
através do qual uma “ação de frear” (como a que está sendo realizada pela UE)
pode na verdade se reverter em uma aceleração indesejada dos próprios processos
a que a UE pretende se opor. Schmitt chamou isso de processo “involuntário”,
uma vez que produz efeitos opostos à intenção original. Para os antigos, isso
simplesmente lembrava que nós, humanos, muitas vezes somos meros objetos da
história, e não seus sujeitos causais.
É possível que a “ação de frear”
imposta à Grécia, à Grã-Bretanha, à Hungria – e agora à Itália – possa deslizar
precisamente em direção ao fenômeno Katechon de que fala Schmitt. A Itália
permaneceu no limbo económico por décadas: seu novo governo sente-se obrigado a
aliviar, de alguma forma, o estresse econômico acumulado nos últimos anos e a
tentar retomar o crescimento. Mas o Estado tem um alto nível de endividamento,
diante do que a UE insiste que a Itália deve sofrer as consequências: deve
obedecer às “regras”.
O professor Michael Hudson, em
livro recente, explica como a “ação de frear” da UE em relação à dívida
italiana representa uma certa vertente europeia de rigidez psíquica que ignora
totalmente a experiência histórica e pode resultar precisamente em Katechon: o
oposto do que se pretende. Entrevistado por John Siman, Hudson diz:
“Nas antigas sociedades
mesopotâmicas, entendia-se que a liberdade era preservada protegendo-se os
devedores. Um modelo corretivo de fato existiu e floresceu no funcionamento
económico das sociedades mesopotâmicas, durante o terceiro e segundo milénios
a.C. Pode ser chamada de Anistia de Pratos Limpos… Consistia no necessário e
periódico cancelamento das dívidas de pequenos agricultores. Necessário porque
tais agricultores estão inevitavelmente sujeitos – em qualquer sociedade em que
se contabilizam juros sobre empréstimos – a ser empobrecidos, destituídos de
sua propriedade, e, no limite, submetidos à servidão … por seus credores”.
[…] [E também necessária porque]
a dinâmica constante da história tem sido o impulso das elites financeiras para
centralizar o controle em suas próprias mãos e administrar a economia de forma
predatória e extrativista. Sua ostensiva liberdade [vem] às custas da
autoridade governante e da economia em geral. Como tal, é o oposto da liberdade – como
concebida no tempo sumério …
Por isso, foi inevitável (nos
séculos posteriores) que, na história grega e romana, um número crescente de
pequenos agricultores tenha se tornado irremediavelmente endividado e perdido
suas terras. Da mesma forma como foi inevitável que seus credores tenham
acumulado enormes propriedades de terra e se estabelecido em oligarquias
parasitárias. Essa tendência inata à polarização social – decorrente da noção
de dívida como algo imperdoável – – é a maldição original e incurável de nosso
pós-século VIII. É a marca de nascença escabrosa da Civilização Ocidental, que
não pode ser lavada ou extirpada.
Hudson argumenta que o longo
declínio e queda de Roma começa, não como quer Gibbon, com a morte de Marco
Aurélio, mas quatro séculos antes, após a devastação de Aníbal no campo
italiano durante a Segunda Guerra Púnica (218-201 aC ). Depois daquela
guerra, os pequenos agricultores da Itália nunca mais recuperaram suas terras,
que foram sistematicamente engolidas pela prædia, as grandes propriedades
oligárquicas, como Plínio, o Velho, observou. [É claro que hoje são as pequenas
e médias empresas italianas que estão sendo engolidas por corporações
oligárquicas e pan-europeias.]
Mas entre os estudiosos modernos,
como aponta Hudson, “Arnold Toynbee está quase sozinho ao enfatizar o papel da
dívida na concentração da riqueza romana e da propriedade” (p. xviii) — e assim
explicar o declínio do Império Romano…
“As sociedades mesopotâmicas não
estavam interessadas em igualdade”, ele disse ao entrevistador, “mas elas eram
civilizadas. E possuíam a sofisticação financeira para entender que, uma vez
que os juros sobre empréstimos aumentam exponencialmente, enquanto o
crescimento económico segue, na melhor da hipóteses, uma curva S, isso
significa que os devedores, se não protegidos por uma autoridade central,
tornam-se servos permanentes de seus credores. Assim, os reis da Mesopotâmia
resgatavam regularmente os devedores esmagados por suas dívidas. Eles sabiam
que precisavam fazer isso. Repetidas vezes, século após século, eles
proclamavam a “Amnistia dos Pratos Limpos”.
A UE puniu a Grécia por seu
desregramento – e deve punir a Itália se ela burlar as regras fiscais da UE. A
UE está fazendo o que Scmith denominou de “ação de frear” para manter sua
hegemonia.
É, no entanto, um caso concreto
em que a UE enxerga o pequeno cisco nos olhos da Itália, porém ignora a estaca
em seu próprio olho. Lakshman Achutan, do Instituto de Estudos do Ciclo
Económico, escreve:
“A soma da dívida dos EUA, da
Zona do Euro, do Japão e da China aumentou mais de dez vezes em relação ao PIB
no ano passado. É notável que a economia global – desacelerando em sincronia,
apesar do endividamento galopante – encontre-se em uma situação remanescente do
Efeito Rainha Vermelha. Como esta personagem diz em Alice em Através do
Espelho, de Lewis Carroll, “Agora, aqui, você vê, é preciso correr o bastante
para continuar no mesmo lugar. Se quiser chegar em outro lugar, você deve
correr pelo menos duas vezes mais rápido que isso!”
Mas isso – correr mais rápido,
assumir mais dívidas – só pode, ao final, ser resolvido com um grande calote
(ou com medidas inflacionárias). Olhemos para os EUA: seu PIB está crescendo em
2,5%; a dívida federal está em 105% do PIB; o Tesouro está gastando US$ 1,5
bilhão em juros por dia, e a dívida está crescendo em 5-6% do PIB. Não é
sustentável.
As demandas da Grécia e da Itália
pelo alívio da dívida podem ser consideradas por alguns como um favorecimento,
na esteira da má gestão económica do passado; mas as demandas dos sumérios e
babilónios não se baseavam nisso – mas em uma tradição conservadora baseada em
rituais de renovação do calendário-cosmo e suas periodicidades, nos diz Hudson.
A ideia mesopotâmica de reforma estava longe do sentido daquilo que chamamos de
“progresso social”. Em vez disso, as medidas instituídas pelo rei sobre as
dívidas, em seus “jubileus” eram destinadas a restaurar uma ordem subjacente na
sociedade, um maat. “As regras do jogo não eram alteradas, mas todos
recebiam uma nova cartada”.
Hudson observa que “os gregos e
os romanos substituíram a ideia cíclica de tempo e renovação social pela de
tempo linear” [com a convergência em direção a um “fim dos tempos”]: “A
polarização económica tornou-se irreversível, não meramente temporária”, assim
como a ideia de renovação se perdeu. Hudson poderia ter acrescentado que o
tempo linear e a perda do imperativo de despertencimento e renovação
desempenharam um papel importante na sustentação de todos os projetos universalistas
da Europa que buscavam um itinerário linear rumo à transformação humana (ou, o
utopismo).
Esta é a contradição fudamental:
a inelutável defasagem económica e polarização está transformando a Europa em
um continente dilacerado por uma contradição interna insolúvel. Por um lado,
castiga a Itália por suas dívidas; por outro, o Banco Central Europeu (BCE)
buscou a “repressão” da taxa de juros, até reduzi-la abaixo de zero e
transformou em moeda viva [por meio do “quantitative easing”] um volume de dívida
equivalente a um terço da produção global da Europa. Como a UE não poderia
prever que os bancos e as empresas carregassem sua dívida “positiva”? Como
poderia esperar que os bancos não inflassem seus balanços com “dívida livre” a
ponto de se tornarem “grandes demais para falir”?
A explosão global da dívida é um
macro-problema que transcende vastamente o microcosmo da Itália. Tal como o
antigo Império Romano, a UE atrofiou-se na sua “ordem” para se tornar um
obstáculo à mudança. Sem alternativa, mantém uma “ação de frear” que acabará
por produzir efeitos completamente contrários à intenção original; e por
provocar um Katechon involuntário e negativo.
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