quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Portugal | A desordem de um sistema


Ainda não refeitos do acidente de Borba, eis-nos de novo confrontados com mais uma ocorrência, que coloca em causa o sistema de proteção civil vigente no País.

Duarte Caldeira | Abril Abril | opinião

Sempre que falamos neste sistema, temos tendência de colar ao conceito «agentes»: Bombeiros, INEM, Forças de Segurança e outros. Fazendo isto, ficamo-nos pela avaliação crítica da prestação de cada agente/instituição per se, perdendo de vista a sua inserção num sistema mais vasto e complexo.

Se tivermos presente que ao longo do ano os vários agentes asseguram ao nível local, com sucesso, cerca de um milhão de serviços de emergência, no domínio do socorro de pessoas e bens, 80% dos quais garantidos por corpos de bombeiros em todo o território nacional, somos conduzidos à conclusão de que o sistema responde ao que dele se exige.

Porém, quando acontece alguma ocorrência em que os resultados de operação são marcados pela perda de vidas humanas e/ou dados materiais significativos, volta a dúvida quanto à confiança no sistema.

Deste raciocínio resulta a necessidade de não darmos por adquirida a fiabilidade do sistema tal como ele está desenhado, obrigando-nos a um exercício de reflexão serena e alicerçada em conhecimento, sobre as suas vulnerabilidades e insuficiências.

Aqui chegados, cruzamo-nos com a desordem de instituições, serviços e ministérios, numa sobreposição de competências, recursos e poderes que, nos momentos em que é necessário que respondam a uma só voz, impõem os entendimentos corporativos que têm sobre o que lhes compete, na cadeia de intervenção operacional.

No âmbito do trabalho do Observatório Técnico Independente, criado no âmbito da Assembleia da República, construímos uma infografia demonstrativa da duplicação e atropelo de competências que cerca de meia centena de estruturas e instituições evidenciam, em ocorrências mais graves. É um verdadeiro esparguete de linhas que se cruzam e sobrepõem, numa matriz funcional complexa e, como tal, difícil de gerir.

Dir-se-á que esta é a razão porque em 2007 foi criada a Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC), isto é, para assegurar a coordenação de todo o sistema. Mas, passado mais de uma década sobre o modelo concebido no período de 2006 e 2007, nenhuma avaliação foi feita a esta entidade, no ponto de vista do aprofundamento da sua missão, bem como à eficácia do modelo de articulação da ANPC com as já referidas mais de 50 instituições e serviços, tutelados por sete ministérios diferentes.

Em resumo, podemos concluir que é especulativo alarmar os portugueses quanto ao sistema de proteção e socorro de que o País dispõe. Mas constitui uma evidência que o sistema de proteção civil, necessário para gerir situações de acidente grave e catástrofe, revela cada vez mais fragilidades e sintomas de desordem funcional.

É por esta razão que continuo a reclamar a necessidade de, com o tempo e a serenidade que só o conhecimento especializado permite, se fazer uma auditoria funcional ao sistema nacional de proteção civil para que, numa primeira fase, se identifiquem as suas vulnerabilidades e, numa segunda fase, se proponham as medidas a adotar para lhe conferir a eficácia e eficiência que, comprovadamente, não possui.

E, para que não restem dúvidas quanto a esta matéria, acompanho os que consideram que o projeto de Lei Orgânica da ANPC aprovado pelo Governo no Conselho de Ministros do passado dia 25 de outubro, que tanta controvérsia tem gerado, só vai agravar a desordem.
Daqui a um ano o País estará já na vigência de uma nova legislatura, após as eleições de outubro de 2019. Até lá, esta é uma matéria que tem suficiente importância para integrar o debate pré-eleitoral que se desenvolverá ao longo do ano.

Este é um dos meus votos para 2019!

*O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 (AE90)

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