Série de reportagens expõe
retrato de nossa crise civilizatória: pesca industrial maciça devasta os mares
e amplia fome e crise social em todo o mundo. Em nome do lucro, ninguém a
contém
Mort Report | Outras Palavras | Tradução: Inês Castilho
Se você odeia aquelas pequenas
fatias de peixe salgado na pizza, Giuseppe Cormaci tem boas novidades. A pesca
de anchovas do Mediterrâneo foi um fracasso este ano. Mas isso significa que
você não vai encontrar muito robalo suculento, o branzino, e muito menos
atum azul. Tente, talvez, linguine à medusa. “A pesca da anchova caiu
pela metade”, me disse Cormaci. Ajeitando seu sovado chapéu, com um sorriso
pesaroso de otimista não convicto, ele continuou: “Pode melhorar novamente. E
então, de novo, ter uma queda total”.
Assim como o nome de seu barco de
24 pés
– Lupo –, ele é um lobo solitário. Seu filho o ajudou durante duas estações de
pesca, mas saiu para abrir um bar na praia. Com os poucos euros que lucra
depois de subtrair as despesas de combustível, manutenção e redes, na semana de
90 horas, ele não consegue pagar uma tripulação. Aos 50, pertence a uma espécie
em risco de extinção: o pescador artesanal.
O mar que ele conhecia tão bem
está agora cheio de surpresas. Águas aquecidas trazem águas-vivas em massa —
inclusive a venenosa caravela-portuguesa. Um grande tubarão branco cruzou a
ilha espanhola de Maiorca. Sobretudo, ele vê barcos-arrastões estrangeiros de
alta tecnologia arrancar o que encontram pela frente, destruindo áreas de
reprodução.
Mude o idioma e Cormaci é
qualquer um dos incontáveis marujos antigos que entrevistei, nos últimos anos,
na Europa, África, Ásia, América Latina e Pacífico. Mudanças climáticas e
poluição pioram progressivamente. Aumenta a sobrepesca sem controle. O
marketing estimula a demanda, e as frotas comerciais pescam ainda mais
intensamente, tudo o que podem.
Os ambientalistas concentram-se
em grandes coisas. O nobre atum azul, tão elegante e rápido quanto uma Ferrari
em primeira marcha, excita um público geralmente apático. Mas ele janta a
arraia-miúda junto à base de uma complexa cadeia alimentar marinha, que é a
dieta principal de mais de um bilhão de pessoas. As anchovas dificilmente ficam
limitadas à pizza. Filés frescos no azeite de Taggiasca em Alassio, na Itália,
valem um dia de viagem. Na Ligúria, como em qualquer outro lugar sob sua
influência, elas alimentaram as comunidades costeiras desde sempre.
O mesmo ocorreu com aqueles
pequenos arenques, as sardinhas. Quando Portugal fica sem sardinhas, você
entende que o fim está perto. Carnudas numa grelha ou enlatadas em óleo
apimentado com piri-piri, elas definem uma nação. Mas os estoques caíram de 106
mil toneladas, em 2006, para 22 mil, em 2016. No alto da cadeia alimentar, até
a amada pescada da Iberia está se tornando rapidamente mais escassa. No ano
passado, a União Europeia retirou as sardinhas do cardápio por 15 anos. O
governo português recusou-se a aceitar, forçando um acordo. Os operadores de
frota desafiaram a ciência e culparam os concorrentes da União Europeia.
Enquanto isso, famílias devoram sardinhas como se não houvesse amanhã.
Recentemente, na hora do almoço
em Lisboa, encontrei um típico boteco perto do porto. Sua vitrine era um
minúsculo aquário. Perguntei ao garçom se o peixe estava se tornando escasso.
“Sim”, disse ele, encolhendo os ombros com indiferença, enquanto servia meu
prato com estaladinhos de caranguejo e amêijoas com sardinhas assadas. O vinho
verde dissolveu minha culpa. Ações individuais importam, mas salvar os mares
exige um esforço global planejado. Há um oceano somente, e nele a pesca tem ido
além da sustentabilidade, ameaçando até mesmo pequenos crustáceos na Antártica.
Ganância desenfreada e controvérsia sobre a escala dessa crise impedem ações
efetivas.
Os cientistas acompanham de
perto, mas é difícil contar peixes. Eles são invisíveis e se movem. Governos e
indústria manipulam os dados para evitar o controle. Se são definidas cotas, a
frouxa fiscalização possibilita fraudes desenfreadas. Em Roma, a Organização
para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO) informa que a pesca
anual global chegou perto de 80 milhões de toneladas durante anos. Somando o
que é jogado ao mar, não declarado ou capturado ilegalmente, é provável que
esteja próxima de 130 milhões. A análise detalhada pressagia uma calamidade.
A piscicultura chega agora quase
à mesma quantidade que a pesca selvagem. Supostamente, essa é uma boa notícia.
Na verdade, significa que enormes quantidades de “peixes forrageiros” tirados
do oceano são cozidos até tornar-se pellets ou pasta para alimentar
os mais valiosos salmão e atum de cativeiro.
Iniciei minhas viagens sobre
pesca em 2011, conduzindo uma equipe do Consórcio Internacional de Jornalistas
Investigativos. Concentramo-nos na cavala de bronze do sul do Pacífico,
dizimada durante décadas para a confecção de farinha de peixe. Um quilo de
salmão chileno de criação pode exigir até 4,5 quilos de cavala transportada por
redes que causam estragos em criadouros. Daniel Pauly ,
o eminente oceanógrafo da Universidade da Colúmbia Britânica, considerou a
cavala de bronze como os últimos búfalos. “Quando eles tiverem acabado”,
disse-me, “tudo estará terminado… Esse é o fechamento da fronteira.” Agora a
cavala de bronze está se recuperando. Isso ocorre em parte porque as frotas
pescaram tanto, que dispersaram o estoque e não conseguiam mais carregar suas
redes. Mas nosso relatório provocou algumas ondas que foram estampadas nas
primeiras páginas. Autoridades europeias e norte-americanas reagiram.
Essa é apenas uma espécie, numa
remota esquina do mapa. Embora evidencie o que Pauly disse no início: a
pilhagem dos oceanos não vai parar, a menos que um grande poder leve a sério
assumir a liderança e convencer os outros a agir de forma sustentada. A União Europeia
fez alguns progressos, mas Espanha, França e Holanda, entre outros, resistem a
medidas mais duras. A China é de longe o maior agressor, rapidamente a caminho
de tornar-se pior. Isso deixa os Estados Unidos, que na época de Barack Obama
tentaram assumir a liderança, com pouco sucesso.
As leis do mar da ONU não passam
de afirmativas de boa intenção, a não ser que sejam compulsórias; elas
raramente são. A supervisão é deixada às ORGP – organizações regionais de
gestão da pesca – compostas por funcionários do governo e representantes da
indústria. Como as decisões devem ser unânimes, o veto de qualquer país-membro
pode bloquear controles efetivos.
Por exemplo, o atum azul quase
sumiu sob a guarda de uma ORGP conhecida como ICCAT. (Os ativistas a chamam de
Conspiração Internacional para Capturar todo o Atum, em inglês a sigla ICCAT.)
Grupos ambientalistas despertaram o interesse público para salvá-lo. Agora, a
pressão de governos e operadores de frota o ameaçam novamente. Ao lado do atum
azul Atlântico, há apenas dois outros: no Pacífico, principalmente em águas
japonesas, e no sul, abaixo da Austrália e da Nova Zelândia. Ambos caíram para
cerca de 3% do que eram antes que a pesca comercial os atingisse, gerações
atrás.
Obama criou reservas marinhas no
Pacífico. John Kerry, como secretário de Estado, convocou uma “cúpula do
oceano” global em Washington para angariar apoio. Sob a bipartidária Lei
Magnuson-Stevens, de 1976, a
Marinha e a Guarda Costeira reprimiram a pesca ilegal nas águas dos EUA.
Ajudaram pequenas nações-ilha a rastrear pescadores ilegais em alto mar. Já
Donald Trump vê os peixes em termos de lucro imediato e o solo oceânico como
fonte de minerais raros ou exploração de petróleo. Ele retrocedeu em muitas das
salvaguardas de Obama. Uma versão mais relaxada da lei de 1976, aprovado
pela Câmara, encontra-se agora no Senado.
Nesse clima de mudança
diplomática, a China abandonou quase toda sua pretensão, construindo frotas
sofisticadas para saquear à vontade. Quando Trump senta-se para negociar com Xi
Jinping, os peixes não estão no cardápio.
A essa altura, surgem as
perguntas óbvias. O que fazer agora? E isso é difícil de responder.
Quando a União Europeia perseguia
a pesca ilegal com mais energia, baniu a importação das nações que trapaceavam.
Mas é muito fácil transferir de local as embarcações de captura, de modo a
disfarçar sua origem. De qualquer forma, a China tem enorme demanda doméstica e
necessidade cada vez menor de exportar.
Educar os consumidores não é
suficiente. Falta de informação – em parte uma manobra intencional das pessoas
que vendem peixes – pode piorar o problema. “Sustentável” é frequentemente uma
palavra da moda falada por aí sem sentido. Quando comecei minha pesquisa,
Amanda Nickson, do Fundo Filantrópico Pew, em Washington, culpou a falta de
pressão pública. “É como se os médicos lutassem contra o câncer de mama sem
quimioterapia, radiação ou cirurgia, e só experimentassem algumas pílulas até
que os pacientes morressem”, disse-me ela. Australiana que conhece os fatos e
diz o que pensa, ela critica as reuniões da ORGP com outros ambientalistas e
cientistas marinhos. Depois de uma reunião frustrante, tomando uma cerveja,
refletiu: “Nós só temos que pescar menos peixes, e eles irão durar para
sempre.”
Liguei para Nickson semana passada
para uma atualização. A despeito de algumas vitórias, disse ela, os peixes
estavam perdendo a batalha. Muito pode ser feito – e é feito –, como novas
reportagens irão mostrar. Mas o problema é altamente complexo, mais humano que
pisciano. Aqui no plácido porto de Alessio, pequenas vinhetas tornam a cena
terrivelmente clara. Tantos africanos que se afogam além do horizonte estão
fugindo desesperadamente do destino enfrentado pelo velho marujo Giuseppe
Cormaci. Grandes frotas aniquilam o que sobrevive a águas quentes, correntes
alteradas, lixo de plástico e mudanças na química do mar. Quando seu sustento
se vai, eles rumam ao norte.
Se suas anchovas sucumbirem, o
atum azul também sucumbirá. No final, tudo se reduz a vontade política.
Cidadãos conscientes podem abdicar do delicioso sashimi de barriga de atum, mas
outros não, independentemente do preço. As autoridades precisam estabelecer
limites – e aplicá-los. Em minha mente, sou assombrado por uma imagem
recorrente. Quando a última fatia de toro for talhada de uma barriga
de atum azul, ele vai acabar, contemplado e não consumido, numa mesa de bufê
nos jardins de Mar-a-Lago, [o
fabuloso resort da Flórida frequentado por milionários e usado por Donald Trump
para receber convidados ilustres].