Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite* | Porto Alegre
A Abolição da Escravatura (1888) ocorreu
sem inclusão social, restando aos libertos –considerados cidadãos de terceira
classe - a pobreza, o subemprego e a marca indelével de 400 anos de escravidão.
Este contexto, marcado pela exclusão e invisibilidade social, foi denominado de
Brasil Inconcluso pelo saudoso historiador Décio Freitas (1922-2004).
No Brasil, entre
outras contribuições, o samba se constitui numa herança musical do negro,
representando uma das formas da sua resistência cultural. “O Mestre-Sala
dos Mares” (1975), de João Bosco e Aldir Blanc, é um relicário desse gênero
musical, cuja letra foi censurada no regime militar (1964-1985) por trazer a
público a figura libertária de João Cândido Felisberto (1880-1969) - o
Almirante Negro - personagem que a história oficial soterrou nos porões da
memória nacional. Entre outras alterações na letra, destacam-se a substituição
de marinheiro por feiticeiro e navegante no lugar de almirante.
Ao iniciar este
Ano Novo, período que antecede ao Carnaval, é importante que nos lembremos do
magistral samba de cunho sociopolítico que evoca a figura do herói negro João
Cândido. Esta composição poderia, também, ser batizada com o título de
“Mestre-Sala da Liberdade”, devido à sua luta contra a opressão, a injustiça e
o desrespeito à dignidade humana. Na escola de samba, o mestre-sala corteja e
protege a porta-bandeira. No caso do “Almirante Negro”, ele defendeu a
porta-bandeira da liberdade no bailar das águas.
Nascido, em Encruzilhada do Sul, no Rio Grande do Sul, em 24 de junho de 1880, João Cândido era filho dos negros libertos João Felisberto e Inácia Cândido Felisberto. Na condição de marinheiro, ele dedicou quinze anos da sua vida à Marinha de Guerra do Brasil. Em 2019, completará 139 anos do seu nascimento.
À noite, no dia 22 de
novembro de 1910, ano em que cruzou os céus o Cometa Halley, eclodiu, no Rio de
Janeiro, então Capital Federal, a Revolta da Chibata devido aos castigos
corporais sofridos pelos marujos. Marcelino Menezes foi punido, com 250 chibatadas,
no encouraçado Minas Gerais. Revoltada com a cena de maus tratos, a marujada,
composta por 90% de negros pobres, rebelou-se sob a liderança de João Cândido,
estendendo-se o motim a outros navios.
Cerca de 2.300
homens comandaram os navios de guerra, direcionando mais de 80 canhões para o
Palácio do Catete. Além da anistia, os marujos exigiam, também, o fim dos
castigos, aumento do soldo e redução da carga horária. No dia 25 de novembro de
1910, o presidente Hermes da Fonseca (1855-1923) lhes concedeu anistia, porém,
três dias depois, decretou as expulsões da Marinha e prisões. Os marujos,
confiantes no acordo realizado, devolveram os navios a seus legítimos oficiais,
porém foram traídos.
Acusados de um
segundo levante, dezoito líderes foram presos na solitária do Quartel da Ilha
das Cobras. João Cândido e outro marujo foram os únicos a sobreviverem. Os
outros dezesseis companheiros, que se encontravam na prisão, morreram sufocados
devido à evaporação da cal que, misturada à água, era utilizada para lavar o
local.
No ano de 1911, o Almirante Negro foi internado como louco devido ao choque de presenciar a morte de seus companheiros de luta. Ao obter alta, retornou para a prisão da Ilha das Cobras, saindo em 1912. Viveu o resto da sua vida existência pobre, como estivador e vendedor de peixe na praça XV do Rio de Janeiro. Casou-se três vezes, teve onze filhos e faleceu, aos 89 anos, em 06 de dezembro de 1969, vítima de câncer.
No ano de 1911, o Almirante Negro foi internado como louco devido ao choque de presenciar a morte de seus companheiros de luta. Ao obter alta, retornou para a prisão da Ilha das Cobras, saindo em 1912. Viveu o resto da sua vida existência pobre, como estivador e vendedor de peixe na praça XV do Rio de Janeiro. Casou-se três vezes, teve onze filhos e faleceu, aos 89 anos, em 06 de dezembro de 1969, vítima de câncer.
Em 1959, a Assembleia
Legislativa do Rio Grande do Sul concedeu uma pensão de dois salários para o
marinheiro gaúcho. A pensão foi o único dinheiro que João Cândido recebeu dos
cofres públicos, após a revolta de 1910, para sustentar a sua família.
No mês de março de
1964, João Cândido recebeu o convite da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros
Navais do Brasil, sob a liderança de José Anselmo dos Santos – agente
infiltrado dos órgãos de repressão brasileiros –, para participar do histórico
encontro do Sindicato dos Metalúrgicos no Rio de Janeiro. Reunindo cerca de
duas mil pessoas, segundo historiadores, foi um verdadeiro estopim para o
golpe militar de 64.
Naquela ocasião,
junto a Leonel Brizola (1922-2004), então deputado federal, João Cândido
presenciou discursos inflamados. Alguns discursos, acerca da melhoria na
alimentação dos barcos e revisão dos regulamentos da Marinha, eram velhos na
memória do marinheiro. Outras questões, de cunho político, contra o governo,
causavam-lhe desconfiança. Ao encerrar o palavrório, o velho marinheiro disse a
frase que entraria para a história dos movimentos sindicais e seria lembrada
por vezes: “revolta de marinheiro só dá certo no mar”.
Porto Alegre - a capital dos gaúchos – presta a sua homenagem a João Cândido, por meio de um busto criado por Vasco Prado (1914-1998), no Parque Marinha do Brasil. Essa é uma réplica de outro que se encontra na tradicional Sociedade Floresta Aurora, fundada, em 1872, por negros alforriados. Esta sociedade voltada, principalmente à comunidade afrodescendente, é considerada, no gênero, a mais antiga do Brasil em atividade.
O Museu da Comunicação
Hipólito José da Costa (Musecom), instituição fundada, em setembro 1974, em Porto Alegre , (RS)
guarda e preserva, em sua hemeroteca, jornais e revistas deste período, nos
quais o pesquisador tem a oportunidade de constatar a forma como a Revolta da
Chibata (1910) foi divulgada na época. Um exemplo, do registro desta história,
é a revista “Careta”, de 10 de dezembro de 1910, que faz parte do acervo desta
Instituição. Nela se encontra uma charge com o título “A disciplina do futuro:
Eu to vendo que nom guento ocês sem chibata”. Nela oficiais de carreira
reverenciam a figura de João Cândido no Encouraçado Minas Gerais.
Atualmente, o Museu é dirigido pela jornalista Elizabeth Corbetta.
Em julho de 2008, o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a anistia póstuma ao marinheiro
João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata (1910). Desde 2002, a anistia havia sido
proposta pela senadora Marina Silva (PT-AC). Numa solenidade, em 20 de novembro
de 2008 - “Dia da Consciência Negra”, com a ausência da Marinha e do Ministério
da Defesa, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reinaugurou, no Rio de
Janeiro, à beira-mar, a estátua do “Mestre Sala dos Mares”: o marinheiro João
Cândido Felisberto.
Devido à resistência
da Marinha, a estátua em bronze demorou meses até ser transferida para Praça
XV, no centro do Rio de Janeiro. Seu local de origem era o Museu da República.
Graças à atuação do ministro da Igualdade Racial, Edson Santos, a transferência
foi efetivada. Durante o evento, o ministro declarou:“É uma medida emblemática
na luta contra o racismo e pela Igualdade Racial, quando comemoramos 120 anos
da Abolição da Escravatura. João Cândido é um herói negro do Brasil”.
*Pesquisador e coordenador do setor de imprensa do Musecom
*Pesquisador e coordenador do setor de imprensa do Musecom
Imagens:
João Cândido (1880-1969)
Estátua de João Cândido, na Praça
XV , no RJ
Bibliografia
BRAGA, Cláudio da Costa. 1910 – O
Fim da Chibata – Vítimas ou Algozes. Rio de Janeiro: Editora Cláudio Braga,
2010.
GRANATO, Fernando. O Negro
da Chibata. Rio de Janeiro: Editora Objetiva 2000.
MAESTRI, Mário. Cisnes
negros: 1910: a revolta dos marinheiros contra a chibata. São Paulo: Moderna,
1998.
MARTINS, Hélio Leôncio. A
revolta dos Marinheiros – 1910. Rio de Janeiro: Imprensa Naval, 1985.
MOREL, Edmar. A Revolta da
Chibata. Quarta Edição. 1986. Editora Graal.
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