O seu recente documentário, The
Coming War on China, mostra como os Estados Unidos estão em guerra
com a China. Pode explicar o mecanismo dessa guerra secreta? Acha que a Ásia-Pacífico
será a próxima região de intervenção imperialista? Como ocorrerá essa
intervenção e quais serão as consequências?
É uma "guerra secreta" apenas porque a nossa percepção é moldada para ignorar a realidade. Em2010,
a secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, viajou
a Manila e incumbiu o recém-empossado presidente filipino, Benigno Aquino, de
tomar posição contra a China pela sua ocupação das Ilhas Spratly e de aceitar a
presença de cinco bases de Marines dos EUA. Manila entendia-se bem com Pequim,
tendo negociado empréstimos bonificados para infraestruturas que necessitava
muito. Aquino fez o que lhe foi dito e aceitou que uma equipa jurídica liderada
pelos EUA contestasse as reivindicações territoriais da China no Tribunal
Arbitral da ONU em Haia. O
tribunal concluiu que a China não tinha qualquer jurisdição sobre as ilhas; um
julgamento que a China categoricamente rejeitou. Foi uma pequena vitória numa
campanha de propaganda americana visando retratar a China mais como
territorialmente rapace do que como defensiva na sua própria região. O motivo
foi o crescente receio da elite de segurança nacional/militar/mediática dos EUA
de ter deixado de ser a potência dominante no mundo.
No ano seguinte, em 2011, o presidente Obama declarou uma "viragem para a China". Isso marcou a transferência da maioria das forças navais e aéreas dos EUA para a região da Ásia-Pacífico, o maior movimento de equipamentos militares desde a Segunda Guerra Mundial. O novo inimigo de Washington – ou melhor, um inimigo de novo – era a China, que atingira extraordinários patamares económicos em menos de uma geração.
Os Estados Unidos têm há muito tempo uma série de bases em torno da China, da Austrália às ilhas do Pacífico, passando pelo Japão, Coreia e Eurásia. Estas estão em vias de ser reforçadas e modernizadas. Quase metade da rede global dos EUA, que conta mais de 800 bases, cerca a China "como o laço corredio perfeito", disse um responsável do Departamento de Estado. Sob o pretexto do "direito à liberdade de navegação", navios de baixo calado dos EUA entram nas águas chinesas. Os drones americanos sobrevoam o território chinês. A ilha japonesa de Okinawa é uma vasta base americana, com os seus contingentes preparados para um ataque à China. Na ilha coreana de Jeju, os mísseis da classe Aegis são apontados a Xangai, a640 quilómetros de
distância. A provocação é constante.
Em 3 de outubro, pela primeira vez desde a Guerra Fria, os Estados Unidos ameaçaram abertamente atacar a Rússia, a aliada mais próxima da China, com quem esta tem um pacto de defesa mútua. Os media interessaram-se pouco pela questão. A China está a armar-se rapidamente; de acordo com a literatura especializada, Pequim mudou sua postura nuclear, passando de um alerta baixo para um alerta alto.
Pessoas como Noam Chomsky dizem que o império americano estáem declínio. Pensa
realmente isso? Nos últimos tempos, vimos os Estados Unidos tentarem chegar a
um acordo com a Coreia do Norte; antes, eles tentaram reestabelecer relações
diplomáticas com Cuba. O que indicam esses episódios? Acha que o mundo se está
a diversificar?
O império americano enquanto ideia pode estar em declínio, a ideia de uma única potência dominante e a dolarização da economia mundial, mas o poder militar dos EUA nunca foi tão ameaçador. Uma nova guerra fria conduz ao isolamento dos Estados Unidos e é um perigo para todos nós. No início do século XXI, Norman Mailer [jornalista e romancista norte-americano] escreveu que o poder americano havia entrado em uma era "pré-fascista". Outros sugeriram que já estamos lá.
Disse que um dos triunfos do século XXI em matéria de relações públicas foi o slogan de Obama "a mudança em que acreditamos". Disse também que a campanha mundial de assassínios de Obama foi sem dúvida a mais dispendiosa campanha de terrorismo desde o 11 de Setembro de 2001. Por que foi tão duro com Obama, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz? Que acha de Donald Trump e da sua presidência?
É uma "guerra secreta" apenas porque a nossa percepção é moldada para ignorar a realidade. Em
No ano seguinte, em 2011, o presidente Obama declarou uma "viragem para a China". Isso marcou a transferência da maioria das forças navais e aéreas dos EUA para a região da Ásia-Pacífico, o maior movimento de equipamentos militares desde a Segunda Guerra Mundial. O novo inimigo de Washington – ou melhor, um inimigo de novo – era a China, que atingira extraordinários patamares económicos em menos de uma geração.
Os Estados Unidos têm há muito tempo uma série de bases em torno da China, da Austrália às ilhas do Pacífico, passando pelo Japão, Coreia e Eurásia. Estas estão em vias de ser reforçadas e modernizadas. Quase metade da rede global dos EUA, que conta mais de 800 bases, cerca a China "como o laço corredio perfeito", disse um responsável do Departamento de Estado. Sob o pretexto do "direito à liberdade de navegação", navios de baixo calado dos EUA entram nas águas chinesas. Os drones americanos sobrevoam o território chinês. A ilha japonesa de Okinawa é uma vasta base americana, com os seus contingentes preparados para um ataque à China. Na ilha coreana de Jeju, os mísseis da classe Aegis são apontados a Xangai, a
Em 3 de outubro, pela primeira vez desde a Guerra Fria, os Estados Unidos ameaçaram abertamente atacar a Rússia, a aliada mais próxima da China, com quem esta tem um pacto de defesa mútua. Os media interessaram-se pouco pela questão. A China está a armar-se rapidamente; de acordo com a literatura especializada, Pequim mudou sua postura nuclear, passando de um alerta baixo para um alerta alto.
Pessoas como Noam Chomsky dizem que o império americano está
O império americano enquanto ideia pode estar em declínio, a ideia de uma única potência dominante e a dolarização da economia mundial, mas o poder militar dos EUA nunca foi tão ameaçador. Uma nova guerra fria conduz ao isolamento dos Estados Unidos e é um perigo para todos nós. No início do século XXI, Norman Mailer [jornalista e romancista norte-americano] escreveu que o poder americano havia entrado em uma era "pré-fascista". Outros sugeriram que já estamos lá.
Disse que um dos triunfos do século XXI em matéria de relações públicas foi o slogan de Obama "a mudança em que acreditamos". Disse também que a campanha mundial de assassínios de Obama foi sem dúvida a mais dispendiosa campanha de terrorismo desde o 11 de Setembro de 2001. Por que foi tão duro com Obama, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz? Que acha de Donald Trump e da sua presidência?
Eu não fui duro com Obama. Foi
Obama quem foi duro com grande parte da humanidade, ao contrário da sua muitas
vezes absurda imagem mediática. Obama foi um dos mais violentos presidentes
americanos. Lançou ou apoiou sete guerras e deixou o poder sem que nenhuma
delas fosse resolvida: um recorde. Durante o seu último ano como presidente, em
2016, lançou 26.171 bombas, segundo o Conselho de Relações Exteriores. É uma
estatística interessante; trata-se de três bombas a cada hora, 24 horas por
dia, principalmente sobre civis. A técnica de bombardeamento adoptada por Obama
foi o assassínio por meio de drones. Todas as terças-feiras, relatava o New
York Times, ele escolhia os nomes daqueles que iriam morrer num
"programa" de execuções extrajudiciais. Todos os homens em idade
militar no Iémen e nas fronteiras do Paquistão eram considerados inteiramente
como animais. Ele multiplicou as operações das forças especiais dos EUA no
mundo, especialmente em África. Juntamente com a França e a Grã-Bretanha ele e
sua secretária de Estado, Hillary Clinton, destruíram a Líbia como Estado
moderno com o falso e familiar pretexto de que o seu líder estava prestes a
cometer um massacre de "inocentes". Isso conduziu directamente ao
crescimento dos medievalistas Daesh [ou Estado Islâmico] e uma vaga de
emigração de África para a Europa. Ele derrubou o presidente democraticamente
eleito da Ucrânia e instalou um regime abertamente apoiado pelo fascismo – como
uma provocação deliberada à Rússia.
A concessão do Prémio Nobel da Paz a Obama foi uma impostura. Em 2009, esteve no centro de Praga e prometeu ali ajudar a criar um mundo "livre de armas nucleares". Na verdade, aumentou o número de ogivas nucleares americanas e autorizou um programa de construção nuclear de longo prazo de US$1000 milhões. Processou mais denunciantes, reveladores da verdade, do que todos os presidentes dos EUA juntos. O seu principal êxito, pode dizer-se, foi pôr fim ao movimento anti-guerra norte-americano. Os manifestantes regressaram a casa dando crédito às mensagens de 'esperança' e 'paz' de Obama e começaram a acreditar nisso. A única diferença de Obama foi ter sido o primeiro presidente negro na terra da escravidão. Em quase todos os outros aspectos, ele era apenas outro presidente americano cuja constante afirmação era que os Estados Unidos eram "a única nação indispensável", o que presumia que outras nações seriam dispensáveis.
Talvez a inteligência de Obama residisse na imagem que ele próprio e outros fabricaram e cultivaram com sucesso. Donald Trump também pode ser descrito como apenas outro presidente americano (violento). O que o distingue é que ele é uma caricatura. Muitos membros da elite americana detestam Trump, não por causa de seu comportamento pessoal, mas por causa de um embaraço muito mais profundo; ele é a imagem crua da América, sem a máscara.
O seu filme The War on Democracy documenta o golpe de Estado orquestrado pelos Estados Unidos contra Hugo Chávez, que se opunha ao imperialismo, com a ajuda da burguesia de direita e capitalista da Venezuela. Isso não era novo para a maioria dos países latino-americanos. Hoje, porém, vemos cada vez mais países do continente resistindo ao imperialismo americano. Fora de Cuba e da Venezuela, governos de esquerda estão no poder em países como a Bolívia e o Equador. Qual é o significado disso? Hoje em dia, também ouvimos histórias de ofensivas de direita em países como a Venezuela e o Brasil. Como avalia o actual cenário político latino-americano?
Não concordo que "mais e mais países [na América Latina] estejam a resistir ao imperialismo dos EUA". Pode ter sido verdade quando Hugo Chávez ainda estava vivo; mas mesmo então, os Estados Unidos nunca desistiram da sua influência no continente. Hoje, há apenas Bolívia, Nicarágua e, claro, Venezuela, a Venezuela em luta pela sobrevivência. A maior parte da América Latina está de volta à influência de Washington, especialmente o Brasil. O Equador, anteriormente esclarecido, é outro exemplo eloquente. O governo obsequioso de Lénine Moreno convidou as tropas norte-americanas a voltarem e ameaçou abandonar Julian Assange. A opressão económica do FMI está novamente a prejudicar a Argentina. Versões do Consenso de Washington, conhecido como neoliberalismo, dominam quase todo o continente. Cuba está calma, o que é compreensível.
Nos últimos anos, vimos denunciantes como Julian Assange e Edward Snowden revelarem documentos confidenciais que mostravam como funciona o sistema de poder. Notará que o WikiLeaks não fez nada mais do queThe New York Times e The Washington Post haviam feito num celebrado passado – revelaram a verdade sobre guerras de rapina e as maquinações de uma elite corrupta.
Disse que "o WikiLeaks é um marco no jornalismo". Qual é a importância dessas revelações? O que é que elas nos ensinam?
O WikiLeaks fez muito mais do que o New York Times e o Washington Post com todos os louros que estes têm. Nenhum jornal conseguiu igualar – ou chegar perto – os segredos e mentiras do poder que Assange e Snowden revelaram. O facto de os dois homens serem fugitivos testemunha o recuo das democracias liberais em relação aos princípios da liberdade e da justiça. Por que o WikiLeaks é um marco no jornalismo? Porque as suas revelações nos disseram, com 100% de precisão, como e porquê uma grande parte do mundo é dividida e dirigida.
Como analisa a evolução do panorama dos media na era digital? Por um lado, a Internet abriu uma vasta via de espaço livre ou de plataforma independente. A Internet oferece um espaço contra-narrativo, ao qual os grandes media corporativos não prestam atenção. Mas, por outro lado, grandes monopólios digitais controlam o espaço digital. Como vê a situação? Quais são os desafios a enfrentar?
Os desafios são tão grandes quanto os povos o permitem. Os dados digitais são a nova corrida ao ouro do capitalismo; a vigilância digital é o novo adversário da democracia. Ambos diferem apenas na forma e na escala das infinitas variedades de poder a que os povos tiveram de resistir desde o início da história. Hoje, todos nós temos um pé no mundo digital; temos a Internet, que é poder. A maneira como aplicamos este poder, ao invés de o banalizar, depende da nossa vontade de adoptar princípios imemoriais de resistência.
Está envolvido em reportagens de guerra há mais de cinco décadas. Cobriu a maioria das grandes guerras, incluindo a Guerra do Vietname, a guerra no Iraque e a guerra no Afeganistão. Um certo número de países pratica uma política de armamento crescente como política económica. O papel das grandes empresas de venda armas também é importante. O que é a economia política da guerra?
A economia política da guerra na era moderna é a economia política dos Estados Unidos. Os Estados Unidos privam cerca de 80 milhões dos seus cidadãos de cuidados de saúde adequados e gastam quase 60% do seu orçamento discricionário federal na preparação para a guerra. A Índia também tem uma economia de guerra. Em2018, a
Índia ficou entre os cinco países que mais gastaram no campo militar, com um
orçamento militar de US$63,9 mil milhões, o que supera o da França. Quase
metade do orçamento nacional é dedicado a gastos militares. Quando fui à Índia
pela primeira vez, descobri outro mundo dentro de bases militares, habitado por
pessoas saudáveis e bem nutridas, com água potável e crianças educadas. No
exterior dessas bolhas magníficas, a Índia conta mais crianças subnutridas do
que qualquer outro país do mundo.
Síndrome do Vietname
A Guerra do Vietname foi um dos capítulos mais sangrentos e mortíferos do pós-guerra. Começou as suas reportagens de guerra no Vietname. Esta foi a primeira guerra televisionada. A Guerra do Vietname é a história do massacre de mais de três milhões de pessoas. Poderia falar-nos do horror que viu no Vietname? Qual foi o papel dos media ocidentais no Vietname? Recentemente, captou a tentativa de reescrever a história da Guerra do Vietname em manuais escolares norte-americanos. A própria recordação do Vietname assombra o Estado mais poderoso do mundo?
Não tenho certeza de que "assombrar" seja a palavra certa. O que incomoda os apologistas americanos é que o exército de "nação indispensável" foi expulso da Ásia por uma nação de camponeses, que ela sofreu uma derrota humilhante. Desde então, eles têm procurado um "melhor resultado", reescrevendo o que chamaram de "síndrome do Vietname", um eufemismo para o embaraço prolongado causado por uma catástrofe.
A série de documentários épicos de Ken Burns para a Public Broadcasting em 2017 começou com a seguinte declaração: "A guerra foi desencadeada de boa-fé por pessoas honestas como resultado de mal-entendidos fatais, do excesso de confiança dos norte-americanos e dos mal-entendidos da guerra fria". A desonestidade desta declaração ignora os muitos falsos pretextos que levaram à invasão do Vietname, como o "incidente" do golfo de Tonquim em 1964. Não houve boa-fé. A fé era podre e cancerosa e mais de quatro milhões de pessoas morreram.
Vi algo do sofrimento: o facto de o comandante norte-americano, general William Westmoreland, ter tomado por alvo civis a quem chamava "baratas". No delta do Mekong, após um bombardeamento, havia um cheiro de napalm e árvores petrificadas enfeitadas com pedaços de corpos. Também testemunhei heroísmo. Em 1975, encontrei a única sobrevivente de uma bateria antiaérea vietnamita, todas adolescentes; estava ajoelhada diante dos novos túmulos de seus camaradas.
O terrorismo é o produto de Estados
Questionou a guerra dos EUA contra o terrorismo como um exemplo de hipocrisia e de duplicidade. Porque diz isso? Se assim for, a questão é de saber como parar o terrorismo. Até que ponto a ameaça do terrorismo é um desafio para uma vida moderna e cívica?
A grande maioria do terrorismo é o produto de Estados. O Iémen é actualmente vítima de incessantes actos de terrorismo por parte do Estado saudita, que patrocinou outras formas de terrorismo, nomeadamente os ataques de 11 de Setembro. A "guerra contra o terrorismo" lançada em 2001 pelo presidente dos EUA, George W. Bush, foi na verdade, uma guerra de terror, matando milhões de pessoas, na sua maioria muçulmanos. Estados poderosos, como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, tornaram o terrorismo uma arma "estratégica"; o apoio ao jihadismo na Líbia e na Síria é um exemplo notável disso. A conclusão é ou deveria ser óbvia: quando os governos pararem de promover o terrorismo, os ataques sangrentos nas suas próprias cidades provavelmente acabarão.
Disse que os Estados Unidos têm ao mesmo tempo "bons terroristas" e "maus terroristas". Quem são os bons e os maus terroristas da América?
A designação pode mudar sem aviso prévio. Actualmente, os sauditas são "bons terroristas"; na verdade, nem são chamados de terroristas. Os extremos terroristas maus – Al Qaeda – são agora bons terroristas que lutam ao lado dos Estados Unidos na sua longa guerra contra os xiítas. Historicamente, os curdos sempre foram ao mesmo tempo bons e maus terroristas; no Iraque, os curdos eram bons; na Turquia, eram maus. A designação assentava em eles estarem ou não lutando contra o mais recente inimigo dos Estados Unidos.
Nas últimas décadas do século XX, o mundo viu a região da Ásia Ocidental tornar-se o ponto quente da intervenção ocidental. Depois do 11 de Setembro de 2001, essa intervenção tomou a forma de duas guerras: a guerra no Afeganistão e a guerra no Iraque. A islamofobia atingiu novos picos no Ocidente. A teoria do choque de civilizações encontrou campeões na máquina estatal, sendo George Bush o melhor exemplo. Como situa historicamente os interesses ocidentais no Médio Oriente e a ascensão da islamofobia no Ocidente?
A concessão do Prémio Nobel da Paz a Obama foi uma impostura. Em 2009, esteve no centro de Praga e prometeu ali ajudar a criar um mundo "livre de armas nucleares". Na verdade, aumentou o número de ogivas nucleares americanas e autorizou um programa de construção nuclear de longo prazo de US$1000 milhões. Processou mais denunciantes, reveladores da verdade, do que todos os presidentes dos EUA juntos. O seu principal êxito, pode dizer-se, foi pôr fim ao movimento anti-guerra norte-americano. Os manifestantes regressaram a casa dando crédito às mensagens de 'esperança' e 'paz' de Obama e começaram a acreditar nisso. A única diferença de Obama foi ter sido o primeiro presidente negro na terra da escravidão. Em quase todos os outros aspectos, ele era apenas outro presidente americano cuja constante afirmação era que os Estados Unidos eram "a única nação indispensável", o que presumia que outras nações seriam dispensáveis.
Talvez a inteligência de Obama residisse na imagem que ele próprio e outros fabricaram e cultivaram com sucesso. Donald Trump também pode ser descrito como apenas outro presidente americano (violento). O que o distingue é que ele é uma caricatura. Muitos membros da elite americana detestam Trump, não por causa de seu comportamento pessoal, mas por causa de um embaraço muito mais profundo; ele é a imagem crua da América, sem a máscara.
O seu filme The War on Democracy documenta o golpe de Estado orquestrado pelos Estados Unidos contra Hugo Chávez, que se opunha ao imperialismo, com a ajuda da burguesia de direita e capitalista da Venezuela. Isso não era novo para a maioria dos países latino-americanos. Hoje, porém, vemos cada vez mais países do continente resistindo ao imperialismo americano. Fora de Cuba e da Venezuela, governos de esquerda estão no poder em países como a Bolívia e o Equador. Qual é o significado disso? Hoje em dia, também ouvimos histórias de ofensivas de direita em países como a Venezuela e o Brasil. Como avalia o actual cenário político latino-americano?
Não concordo que "mais e mais países [na América Latina] estejam a resistir ao imperialismo dos EUA". Pode ter sido verdade quando Hugo Chávez ainda estava vivo; mas mesmo então, os Estados Unidos nunca desistiram da sua influência no continente. Hoje, há apenas Bolívia, Nicarágua e, claro, Venezuela, a Venezuela em luta pela sobrevivência. A maior parte da América Latina está de volta à influência de Washington, especialmente o Brasil. O Equador, anteriormente esclarecido, é outro exemplo eloquente. O governo obsequioso de Lénine Moreno convidou as tropas norte-americanas a voltarem e ameaçou abandonar Julian Assange. A opressão económica do FMI está novamente a prejudicar a Argentina. Versões do Consenso de Washington, conhecido como neoliberalismo, dominam quase todo o continente. Cuba está calma, o que é compreensível.
Nos últimos anos, vimos denunciantes como Julian Assange e Edward Snowden revelarem documentos confidenciais que mostravam como funciona o sistema de poder. Notará que o WikiLeaks não fez nada mais do queThe New York Times e The Washington Post haviam feito num celebrado passado – revelaram a verdade sobre guerras de rapina e as maquinações de uma elite corrupta.
Disse que "o WikiLeaks é um marco no jornalismo". Qual é a importância dessas revelações? O que é que elas nos ensinam?
O WikiLeaks fez muito mais do que o New York Times e o Washington Post com todos os louros que estes têm. Nenhum jornal conseguiu igualar – ou chegar perto – os segredos e mentiras do poder que Assange e Snowden revelaram. O facto de os dois homens serem fugitivos testemunha o recuo das democracias liberais em relação aos princípios da liberdade e da justiça. Por que o WikiLeaks é um marco no jornalismo? Porque as suas revelações nos disseram, com 100% de precisão, como e porquê uma grande parte do mundo é dividida e dirigida.
Como analisa a evolução do panorama dos media na era digital? Por um lado, a Internet abriu uma vasta via de espaço livre ou de plataforma independente. A Internet oferece um espaço contra-narrativo, ao qual os grandes media corporativos não prestam atenção. Mas, por outro lado, grandes monopólios digitais controlam o espaço digital. Como vê a situação? Quais são os desafios a enfrentar?
Os desafios são tão grandes quanto os povos o permitem. Os dados digitais são a nova corrida ao ouro do capitalismo; a vigilância digital é o novo adversário da democracia. Ambos diferem apenas na forma e na escala das infinitas variedades de poder a que os povos tiveram de resistir desde o início da história. Hoje, todos nós temos um pé no mundo digital; temos a Internet, que é poder. A maneira como aplicamos este poder, ao invés de o banalizar, depende da nossa vontade de adoptar princípios imemoriais de resistência.
Está envolvido em reportagens de guerra há mais de cinco décadas. Cobriu a maioria das grandes guerras, incluindo a Guerra do Vietname, a guerra no Iraque e a guerra no Afeganistão. Um certo número de países pratica uma política de armamento crescente como política económica. O papel das grandes empresas de venda armas também é importante. O que é a economia política da guerra?
A economia política da guerra na era moderna é a economia política dos Estados Unidos. Os Estados Unidos privam cerca de 80 milhões dos seus cidadãos de cuidados de saúde adequados e gastam quase 60% do seu orçamento discricionário federal na preparação para a guerra. A Índia também tem uma economia de guerra. Em
Síndrome do Vietname
A Guerra do Vietname foi um dos capítulos mais sangrentos e mortíferos do pós-guerra. Começou as suas reportagens de guerra no Vietname. Esta foi a primeira guerra televisionada. A Guerra do Vietname é a história do massacre de mais de três milhões de pessoas. Poderia falar-nos do horror que viu no Vietname? Qual foi o papel dos media ocidentais no Vietname? Recentemente, captou a tentativa de reescrever a história da Guerra do Vietname em manuais escolares norte-americanos. A própria recordação do Vietname assombra o Estado mais poderoso do mundo?
Não tenho certeza de que "assombrar" seja a palavra certa. O que incomoda os apologistas americanos é que o exército de "nação indispensável" foi expulso da Ásia por uma nação de camponeses, que ela sofreu uma derrota humilhante. Desde então, eles têm procurado um "melhor resultado", reescrevendo o que chamaram de "síndrome do Vietname", um eufemismo para o embaraço prolongado causado por uma catástrofe.
A série de documentários épicos de Ken Burns para a Public Broadcasting em 2017 começou com a seguinte declaração: "A guerra foi desencadeada de boa-fé por pessoas honestas como resultado de mal-entendidos fatais, do excesso de confiança dos norte-americanos e dos mal-entendidos da guerra fria". A desonestidade desta declaração ignora os muitos falsos pretextos que levaram à invasão do Vietname, como o "incidente" do golfo de Tonquim em 1964. Não houve boa-fé. A fé era podre e cancerosa e mais de quatro milhões de pessoas morreram.
Vi algo do sofrimento: o facto de o comandante norte-americano, general William Westmoreland, ter tomado por alvo civis a quem chamava "baratas". No delta do Mekong, após um bombardeamento, havia um cheiro de napalm e árvores petrificadas enfeitadas com pedaços de corpos. Também testemunhei heroísmo. Em 1975, encontrei a única sobrevivente de uma bateria antiaérea vietnamita, todas adolescentes; estava ajoelhada diante dos novos túmulos de seus camaradas.
O terrorismo é o produto de Estados
Questionou a guerra dos EUA contra o terrorismo como um exemplo de hipocrisia e de duplicidade. Porque diz isso? Se assim for, a questão é de saber como parar o terrorismo. Até que ponto a ameaça do terrorismo é um desafio para uma vida moderna e cívica?
A grande maioria do terrorismo é o produto de Estados. O Iémen é actualmente vítima de incessantes actos de terrorismo por parte do Estado saudita, que patrocinou outras formas de terrorismo, nomeadamente os ataques de 11 de Setembro. A "guerra contra o terrorismo" lançada em 2001 pelo presidente dos EUA, George W. Bush, foi na verdade, uma guerra de terror, matando milhões de pessoas, na sua maioria muçulmanos. Estados poderosos, como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, tornaram o terrorismo uma arma "estratégica"; o apoio ao jihadismo na Líbia e na Síria é um exemplo notável disso. A conclusão é ou deveria ser óbvia: quando os governos pararem de promover o terrorismo, os ataques sangrentos nas suas próprias cidades provavelmente acabarão.
Disse que os Estados Unidos têm ao mesmo tempo "bons terroristas" e "maus terroristas". Quem são os bons e os maus terroristas da América?
A designação pode mudar sem aviso prévio. Actualmente, os sauditas são "bons terroristas"; na verdade, nem são chamados de terroristas. Os extremos terroristas maus – Al Qaeda – são agora bons terroristas que lutam ao lado dos Estados Unidos na sua longa guerra contra os xiítas. Historicamente, os curdos sempre foram ao mesmo tempo bons e maus terroristas; no Iraque, os curdos eram bons; na Turquia, eram maus. A designação assentava em eles estarem ou não lutando contra o mais recente inimigo dos Estados Unidos.
Nas últimas décadas do século XX, o mundo viu a região da Ásia Ocidental tornar-se o ponto quente da intervenção ocidental. Depois do 11 de Setembro de 2001, essa intervenção tomou a forma de duas guerras: a guerra no Afeganistão e a guerra no Iraque. A islamofobia atingiu novos picos no Ocidente. A teoria do choque de civilizações encontrou campeões na máquina estatal, sendo George Bush o melhor exemplo. Como situa historicamente os interesses ocidentais no Médio Oriente e a ascensão da islamofobia no Ocidente?
Recomendo o trabalho do
historiador britânico Mark Curtis, cujo livro Secret Affairs relata a estreita relação entre o estado
britânico e o islamismo extremista. O que está claro é que organizações como
Daesh e Al-Qaeda eram o produto dos governos imperiais ocidentais.
No Afeganistão, os mujahidin poderiam ter permanecido como uma influência tribal se não fosse a Operação Ciclone, um plano liderado pelos Estados Unidos para transformar o Islão extremista numa força que expulsaria a União Soviética e derrubaria o estado soviético. O que o Ocidente temia no Médio Oriente era o que Gamal Abdel Nasser, no Egipto, chamava "pan-arabismo". Temia que os povos árabes se desembaraçassem das cadeias do tribalismo e do feudalismo e controlassem e desenvolvessem os seus próprios recursos. Por esta razão, o único governo progressista no Afeganistão foi declarado "comunista" e destruído. Pela mesma razão, os palestinos são mantidos num estado de opressão interminável.
Com os Estados Unidos reconhecendo Jerusalém como capital de Israel em 9 de Dezembro de 2017, o sofrimento e o medo dos palestinos aumentaram. Como disse, eles são refugiados no seu próprio território. Descreveu a agressão contra a Palestina como a ocupação militar mais longa da história moderna. poderia dizer-nos algo mais sobre a questão palestina? Quais são os interesses estratégicos e geopolíticos dos Estados Unidos na região? Qual é o caminho para ser feita justiça aos palestinos?
Um dos principais objectivos dos Estados Unidos é manter o Médio Oriente num estado de incerteza, instável e dividido por guerras tribais. John Bolton, o conselheiro de segurança nacional dos EUA, disse-o com grande satisfação. Foi assim que os britânicos controlaram a região. O centro de concepção dessa "política" é Israel, um anacronismo imperial imposto ao Médio Oriente quando o mundo se descolonizava. Como o historiador israelense Ilan Pappe documenta no seu último livro, Israel foi concebido como uma prisão para seus povos autóctones, os palestinos. Toda a hipocrisia ocidental resideem Israel. Bashar
al-Assad é designado como um monstro, mas Benjamin Netanyahu, um monstro
supremo, goza de impunidade para controlar os palestinos e, em grande medida, o
Congresso dos EUA, a Casa Branca e as Câmaras do Parlamento em Londres.
Essa impunidade manifestou-se recentemente quando Jeremy Corbyn, o líder trabalhista britânico que pode vir a ser o próximo primeiro-ministro britânico, foi alvo de uma campanha inteiramente falsa que o difama como anti-semita. Em vez de a rejeitar com desprezo, Corbyn curvou-se a ela e traiu os seus muitos anos de apoio aos direitos dos palestinos aceitando uma definição de sionismo que negava a Israel o seu verdadeiro estatuto de estado racista. No momento em que escrevo, os soldados israelenses massacram regularmente palestinos em Gaza, incluindo crianças. Desde março [2018], 77 palestinos desarmados tiveram que ser amputados, incluindo 14 crianças; 12 ficaram paralisadas por toda a vida após serem baleados nas costas. Nem um único israelense ficou ferido.
Aquilo a que chamamos globalização é, na verdade, o capitalismo neoliberal. Você provavelmente foi o primeiro a revelar o primeiro experimento de programa de ajustamento estrutural na Indonésia na década de 1960. Diz que não há diferença entre a implacável intervenção do capital internacional nos mercados estrangeiros hoje e os de antes, quando eram apoiados por canhoneiras. Como jornalista familiarizado com o funcionamento do Estado profundo, poderia falar-nos sobre a evolução das experiências económicas neoliberais? Como funciona isso hoje em dia?
O neoliberalismo é uma extensão do que antes era chamado monetarismo, as duas versões exóticas ou extremas do capitalismo dominante. No Ocidente, sob a liderança de Margaret Thatcher e Ronald Reagan e seus homólogos europeus, foi declarada uma "sociedade a dois terços". O terço superior seria enriquecido e pagaria pouco ou nenhum imposto. O terço médio seria "ambicioso", alguns de entre eles seriam "bem-sucedidos" num mundo impiedosamente competitivo e outros ficariam irrevogavelmente endividados. O terço inferior seria abandonado ou ser-lhe-ia oferecido um empobrecimento estável em troca da sua obediência. A relação entre as pessoas e o Estado mudaria de benigna para maligna. Uma nova classe de gestores educados no espírito empresarial dos Estados Unidos, com a sua própria "cultura" e vocabulário, supervisionaria a conversão da social-democracia numa autocracia de empresa. O "debate" público, gerido por meios de comunicação totalmente integrados, seria dominado por "políticas de identidade", todas as noções de classe banidas como "falsidades". Falsos demónios estrangeiros (liderados pela Rússia, seguidos de perto pela China) seriam designados como "inimigos necessários".
A unidade europeia é propaganda
A experiência da União Europeia foi saudada como um sinal de unidade dos europeus e um modelo na era pós-socialista. Mas o Brexit foi um grande golpe que atingiu essa propaganda. Qual é o seu ponto de vista sobre a UE? Como analisa o Brexit e reivindicações semelhantes?
A União Europeia é basicamente um cartel. Não há "livre comércio". Existem regras de exclusividade estabelecidas e controladas pelos bancos centrais, principalmente o banco central alemão, com benefícios para os membros mais fracos, nomeadamente o movimento transfronteiriço de mão-de-obra, embora isso seja agora postoem
causa. O objectivo central da UE é a protecção e o
fortalecimento do poder económico dos mais fortes. Bruxelas é uma burocracia
centralizada; a democracia é mínima. A "unidade europeia" de que fala
é propaganda, promovida por aqueles que mais recebem da UE. O esmagamento da
Grécia é uma lição que a maioria dos britânicos parece ter entendido.
O seu trabalho concentra-se em quem controla o destino da humanidade, de que forma nações poderosas, grandes empresas, a burguesia, lobbies poderosos fazem as leis e regras do mundo. A democracia parece ser a vítima. Apesar disso, temos histórias inspiradoras em todo o mundo sobre a resistência contra essas forças poderosas. Está optimista e com esperança quanto a um mundo melhor?
Existem forças inspiradoras de resistência em muitos países, incluindo a Índia. Desde a minha primeira reportagem na Índia, na década de 1960, emocionou-me o desejo das pessoas comuns, especialmente dos agricultores, de defender a justiça na sua vida. A recente grande marcha [de 23 de Setembro a 2 de Outubro] de 50 mil agricultores de [Haridwar]em Uttar Pradesh , em Nova Deli , era típica.
Disciplinados, políticos e engenhosos, eles têm muito a ensinar àqueles de nós
que no Ocidente imaginam que o protesto consiste em gozar com Trump ou assinar
uma petição dirigida ao deputado da sua zona. Quando o governo de Deli permitiu
que a polícia atacasse os agricultores no aniversário de Mahatma Gandhi, eles
reagiram. A promessa política destes movimentos talvez seja a mais notável
evocação revolucionária no mundo hoje.
Eles representam a luta dos povos e da agricultura em todo o mundo contra os bulldozer neoliberais do "desenvolvimento urbano": o roubo do espaço humano e a sua conversão numa mercadoria grotesca e lucrativa. O facto de os governos indianos não terem reagido aos suicídios de mais de 300 mil agricultores é uma tragédia histórica, mas pode ser revertida a qualquer momento. De certo modo, os agricultores indianos representam-nos a todos. Como escreve Vandana Shiva, a sua difícil situação e a sua resistência constituem uma advertência: a menos que a segurança sobre a terra, a segurança sobre as sementes e a agricultura pertençam ao povo, a colonização dos campos do mundo por gente como a Monsanto é uma ameaça tão séria para a existência humana quanto as alterações climáticas [NR] . Claro que as pessoas nunca estão paradas. Eles "levantar-se-ão como um leão depois de acordar…", como escreveu Percy Bysshe Shelley… Quando a resistência não é visível, é ainda uma "semente sob a neve". Nunca conheci tanta sensibilização do público como hoje, mas reina também a confusão. O "populismo" dos ocidentais, tantas vezes deturpado como reaccionário, exprima ao mesmo tempo a disposição de resistir e uma desorientação sobre como o fazer. Isso vai mudar. O que nunca muda é o medo dos poderosos do poder das pessoas comuns.
O tipo de jornalismo que pratica é realmente um desafio, e difícil. Através de seus documentários, artigos e outros trabalhos jornalísticos, questionou os Estados mais poderosos do mundo e suas fraudes democráticas. O que moldou o seu ponto de vista para se tornar uma voz dissidente no jornalismo? Quais são as suas influências e o que é que o mantém atento?
Hoje, a maioria dos jornalistas estabelecidos são estafetas do poder. Não são o mainstream, que é uma palavra orwelliana. Um mainstream real tolera a dissidência, não a censura. O que é que moldou o meu ponto de vista? O facto de relatar a luta das sociedades pelo mundo afora, incluindo os seus triunfos, por mínimos que sejam, continua sendo uma influência duradoura. Ou talvez essas influências tenham início cedo na vida. "Apoiamos os oprimidos", disse-me minha mãe um dia, quando eu era pequeno. Eu gosto disso.
No Afeganistão, os mujahidin poderiam ter permanecido como uma influência tribal se não fosse a Operação Ciclone, um plano liderado pelos Estados Unidos para transformar o Islão extremista numa força que expulsaria a União Soviética e derrubaria o estado soviético. O que o Ocidente temia no Médio Oriente era o que Gamal Abdel Nasser, no Egipto, chamava "pan-arabismo". Temia que os povos árabes se desembaraçassem das cadeias do tribalismo e do feudalismo e controlassem e desenvolvessem os seus próprios recursos. Por esta razão, o único governo progressista no Afeganistão foi declarado "comunista" e destruído. Pela mesma razão, os palestinos são mantidos num estado de opressão interminável.
Com os Estados Unidos reconhecendo Jerusalém como capital de Israel em 9 de Dezembro de 2017, o sofrimento e o medo dos palestinos aumentaram. Como disse, eles são refugiados no seu próprio território. Descreveu a agressão contra a Palestina como a ocupação militar mais longa da história moderna. poderia dizer-nos algo mais sobre a questão palestina? Quais são os interesses estratégicos e geopolíticos dos Estados Unidos na região? Qual é o caminho para ser feita justiça aos palestinos?
Um dos principais objectivos dos Estados Unidos é manter o Médio Oriente num estado de incerteza, instável e dividido por guerras tribais. John Bolton, o conselheiro de segurança nacional dos EUA, disse-o com grande satisfação. Foi assim que os britânicos controlaram a região. O centro de concepção dessa "política" é Israel, um anacronismo imperial imposto ao Médio Oriente quando o mundo se descolonizava. Como o historiador israelense Ilan Pappe documenta no seu último livro, Israel foi concebido como uma prisão para seus povos autóctones, os palestinos. Toda a hipocrisia ocidental reside
Essa impunidade manifestou-se recentemente quando Jeremy Corbyn, o líder trabalhista britânico que pode vir a ser o próximo primeiro-ministro britânico, foi alvo de uma campanha inteiramente falsa que o difama como anti-semita. Em vez de a rejeitar com desprezo, Corbyn curvou-se a ela e traiu os seus muitos anos de apoio aos direitos dos palestinos aceitando uma definição de sionismo que negava a Israel o seu verdadeiro estatuto de estado racista. No momento em que escrevo, os soldados israelenses massacram regularmente palestinos em Gaza, incluindo crianças. Desde março [2018], 77 palestinos desarmados tiveram que ser amputados, incluindo 14 crianças; 12 ficaram paralisadas por toda a vida após serem baleados nas costas. Nem um único israelense ficou ferido.
Aquilo a que chamamos globalização é, na verdade, o capitalismo neoliberal. Você provavelmente foi o primeiro a revelar o primeiro experimento de programa de ajustamento estrutural na Indonésia na década de 1960. Diz que não há diferença entre a implacável intervenção do capital internacional nos mercados estrangeiros hoje e os de antes, quando eram apoiados por canhoneiras. Como jornalista familiarizado com o funcionamento do Estado profundo, poderia falar-nos sobre a evolução das experiências económicas neoliberais? Como funciona isso hoje em dia?
O neoliberalismo é uma extensão do que antes era chamado monetarismo, as duas versões exóticas ou extremas do capitalismo dominante. No Ocidente, sob a liderança de Margaret Thatcher e Ronald Reagan e seus homólogos europeus, foi declarada uma "sociedade a dois terços". O terço superior seria enriquecido e pagaria pouco ou nenhum imposto. O terço médio seria "ambicioso", alguns de entre eles seriam "bem-sucedidos" num mundo impiedosamente competitivo e outros ficariam irrevogavelmente endividados. O terço inferior seria abandonado ou ser-lhe-ia oferecido um empobrecimento estável em troca da sua obediência. A relação entre as pessoas e o Estado mudaria de benigna para maligna. Uma nova classe de gestores educados no espírito empresarial dos Estados Unidos, com a sua própria "cultura" e vocabulário, supervisionaria a conversão da social-democracia numa autocracia de empresa. O "debate" público, gerido por meios de comunicação totalmente integrados, seria dominado por "políticas de identidade", todas as noções de classe banidas como "falsidades". Falsos demónios estrangeiros (liderados pela Rússia, seguidos de perto pela China) seriam designados como "inimigos necessários".
A unidade europeia é propaganda
A experiência da União Europeia foi saudada como um sinal de unidade dos europeus e um modelo na era pós-socialista. Mas o Brexit foi um grande golpe que atingiu essa propaganda. Qual é o seu ponto de vista sobre a UE? Como analisa o Brexit e reivindicações semelhantes?
A União Europeia é basicamente um cartel. Não há "livre comércio". Existem regras de exclusividade estabelecidas e controladas pelos bancos centrais, principalmente o banco central alemão, com benefícios para os membros mais fracos, nomeadamente o movimento transfronteiriço de mão-de-obra, embora isso seja agora posto
O seu trabalho concentra-se em quem controla o destino da humanidade, de que forma nações poderosas, grandes empresas, a burguesia, lobbies poderosos fazem as leis e regras do mundo. A democracia parece ser a vítima. Apesar disso, temos histórias inspiradoras em todo o mundo sobre a resistência contra essas forças poderosas. Está optimista e com esperança quanto a um mundo melhor?
Existem forças inspiradoras de resistência em muitos países, incluindo a Índia. Desde a minha primeira reportagem na Índia, na década de 1960, emocionou-me o desejo das pessoas comuns, especialmente dos agricultores, de defender a justiça na sua vida. A recente grande marcha [de 23 de Setembro a 2 de Outubro] de 50 mil agricultores de [Haridwar]
Eles representam a luta dos povos e da agricultura em todo o mundo contra os bulldozer neoliberais do "desenvolvimento urbano": o roubo do espaço humano e a sua conversão numa mercadoria grotesca e lucrativa. O facto de os governos indianos não terem reagido aos suicídios de mais de 300 mil agricultores é uma tragédia histórica, mas pode ser revertida a qualquer momento. De certo modo, os agricultores indianos representam-nos a todos. Como escreve Vandana Shiva, a sua difícil situação e a sua resistência constituem uma advertência: a menos que a segurança sobre a terra, a segurança sobre as sementes e a agricultura pertençam ao povo, a colonização dos campos do mundo por gente como a Monsanto é uma ameaça tão séria para a existência humana quanto as alterações climáticas [NR] . Claro que as pessoas nunca estão paradas. Eles "levantar-se-ão como um leão depois de acordar…", como escreveu Percy Bysshe Shelley… Quando a resistência não é visível, é ainda uma "semente sob a neve". Nunca conheci tanta sensibilização do público como hoje, mas reina também a confusão. O "populismo" dos ocidentais, tantas vezes deturpado como reaccionário, exprima ao mesmo tempo a disposição de resistir e uma desorientação sobre como o fazer. Isso vai mudar. O que nunca muda é o medo dos poderosos do poder das pessoas comuns.
O tipo de jornalismo que pratica é realmente um desafio, e difícil. Através de seus documentários, artigos e outros trabalhos jornalísticos, questionou os Estados mais poderosos do mundo e suas fraudes democráticas. O que moldou o seu ponto de vista para se tornar uma voz dissidente no jornalismo? Quais são as suas influências e o que é que o mantém atento?
Hoje, a maioria dos jornalistas estabelecidos são estafetas do poder. Não são o mainstream, que é uma palavra orwelliana. Um mainstream real tolera a dissidência, não a censura. O que é que moldou o meu ponto de vista? O facto de relatar a luta das sociedades pelo mundo afora, incluindo os seus triunfos, por mínimos que sejam, continua sendo uma influência duradoura. Ou talvez essas influências tenham início cedo na vida. "Apoiamos os oprimidos", disse-me minha mãe um dia, quando eu era pequeno. Eu gosto disso.
02/Janeiro/2018
[**] Membros do Tricontinental: Institute for Social Research, colaboradores de The Indian Express, The Wiree Monthly Review. Contactos: jipsonjohn10@gmail.com e jitheeshpm91@gmail.com
O original encontra-se em frontline.thehindu.com/cover-story/article25661115.ece
e a tradução em www.odiario.info/nova-guerra-fria-e-ameacas-iminentes/ (efectuadas correcções)
Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info/
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