A época das chuvas traz consigo
um cenário de medo e de ansiedade que todos os anos toma conta dos
“camutangres”, nome por que são chamados os habitantes da cidade do Lobito. As
pessoas têm medo que se repitam as tragédias ocorridas em anos passados e que provocaram
mais de uma centena de mortos e um massivo rol de destruição.
As últimas enxurradas, ocorridas
em 2015, provocaram a morte de 70 pessoas. Tudo aconteceu durante a noite,
quando a água irrompeu em fúria desde as zonas montanhosas circundantes e se
abateu imparável sobre as áreas habitadas, arrastando tudo à passagem:
residências, árvores, animais e toda a sorte de dejectos. A situação
agravou-se, porque a maior parte das linhas de água encontrava-se obstruída
devido à acção inconsciente de alguns habitantes, que não só depositam o lixo
nesses locais, como chegam a construir ali as próprias moradias. Geralmente, é
nesses locais onde se registam as primeiras vitimas das enxurradas. O turbilhão
de água bruta projectado pela gravidade a partir das zonas mais altas não
poupou nada. As autoridades iniciaram um inquérito para apurar
responsabilidades, mas o resultado nunca foi divulgado.
A partir daquela data, sempre que se aproximam os meses de Fevereiro, Março e Abril, a sensação de perigo de inundações volta a sentir-se entre os habitantes. Quando as nuvens negras se formam no espaço e mal começam a cair os primeiros pingos de chuva, o alerta volta a soar no Lobito. Este ano, a situação parece não ser diferente. Os “camutangres” têm medo da chuva.
O “chumbo” dos urbanistas
Consta nos registos históricos que o Lobito foi fundado em pleno século XX, na mesma altura em que se iniciou a construção do porto e do conhecido Caminho de Ferro de Benguela. Estudos técnicos datados da época colonial classificavam o Lobito como uma cidade bastante complexa em termos urbanísticos. Apelidavam-no mesmo de “chumbo dos urbanistas”.
Havia um sério dilema que resultava do choque de duas visões antagónicas sobre os rumos a seguir para o crescimento e desenvolvimento da cidade, que apresentava índices promissores nos últimos anos da década de 1970: havia uma corrente radical, apoiada por importantes “lóbis” imobiliários, que defendia que o crescimento urbano implicava a conquista de espaço através do aterro massivo das lagoas do Compão e da Caponte, onde existem até hoje florestas de “mangues”, na qual habitam variadas espécies de aves, entre as quais o famoso flamingo rosado. Pretendiam ali instalar as camadas mais abastadas da população, sobretudo de origem europeia. Ali beneficiariam de grande poder de mobilidade, devido à existência de duas estações ferroviárias na Restinga e no Compão, igualmente o aeroporto e o porto oceânico de primeira classe, com os grandes armazéns de importação-exportação e ainda um acesso imediato à vizinha cidade de Benguela que, à época, era a capital do então distrito de Benguela, onde residia o governador.
Na parte baixa da cidade, estava instalada a maior parte dos serviços administrativos e uma diferenciada malha de unidades da industria transformadora, como bebidas, farinha, redes de pesca e, finalmente, as casas de lazer e de diversões.
Do outro lado da disputa pela opção para o crescimento do Lobito, estavam algumas individualidades que delineavam a visão do núcleo urbano como um todo, naquilo que hoje se aproximaria aos conceitos de desenvolvimento urbano sustentável, envolvendo como predominância a preservação do meio ambiente. O seu principal defensor era um arquitecto e urbanista formado na prestigiada “Sorbonne” de Paris, de seu nome Castro Rodrigues. Para eles, a parte baixa da cidade estava às portas da saturação. Após a ocupação imobiliária da restinga, em toda a sua extensão, vieram depois as zonas do Lobito Velho, Liro, Compão, Caponte e, mais recentemente, os bairros académico e a zona da Cabaia.
Em conclusão, desde muito cedo, veio à tona a problemática da expansão urbana do pólo iniciado na restinga, pois o Lobito é um espaço onde predominam águas interiores, tornando complexa a sua morfologia. Lagoas e mangais (devido à floresta de mangues que existia) condicionavam a implantação de edifícios para albergar os novos habitantes, atraídos aos milhares devido às múltiplas possibilidades de ocupação e de negócios que a construção do Porto e dos caminhos-de-ferro proporcionava.
A solução escolhida foi proceder-se a sucessivos aterros e drenagens das zonas alagadas, conquistando espaço em terra firme, a fim de ali se implantarem novos fogos. Ampliou-se o Compão, nasceram depois a Caponte, o Académico e outros bairros mais ou menos recentes, até chegar-se a uma nova situação de congestionamento urbano. Vozes sensatas defendiam a manutenção dos mangais que eram povoados por colónias de flamingos rosados e garças.
Olhou-se então para o morro da Bela Vista e chegou-se à conclusão de que a solução estava ali. Iniciou-se a ocupação dos terrenos sobranceiros ao morro da Bela Vista, estendendo-se para a zona da Quileva. Estes ofereciam ilimitadas possibilidades de crescimento. Rapidamente foram criadas condições para a fixação de múltiplas industrias nos ramos da construção e reparação naval, metalo-mecânica, alimentos, bebidas, entre outras. Por todo o lado, cresceram as casas comerciais.
Actualmente, a olhos vistos, há uma tendência de ocupação desenfreada de algumas zonas alagadas, com aterros que não abrangem unicamente as zonas salineiras, mas também lagoas que servem de “habitat” a diversas espécies de aves, entre as quais o conhecido flamingo rosado. Há denuncias da existência de uma “máfia” na venda desses terrenos, mas o administrador municipal, Nelson da Conceição, em entrevista publicada na página ao lado, negou esses rumores. Disse, porém, que foram detectados dois funcionários da administração envolvidos em negociatas de terrenos.
Jaime Azulay, Benguela | Jornal
de Angola
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