Martinho Júnior, Luanda
2- Janeiro integral anima a
percepção desde a raiz do movimento de libertação e cito três pequenos exemplos
que os poderosos até nem sequer alguma vez querem lembrar-se ou fazer lembrar
como inerentes às questões vitais da humanidade e por isso tentam apagar da
memória por que chegaram à euforia da conclusão prática do fim da história, de
que viva o mercado carregado de cestas consumistas e de umbigos grandes e para
lembrar, se espaço ainda houver para lembranças, subsiste apenas o temor de
cada “guerra fria” a que reduziram os conteúdos da própria história e
do que desemboca no próprio universo contemporâneo!
A 1 de Janeiro comemora-se a
independência do Haiti em 1804 (ocorrida há 215 anos), da vitória da revolução
cubana em 1959 (há 60 anos) e da passagem do Che por Brazzaville, em
consonância com a vocação do MPLA, (a 2 de Janeiro de 1965, há 54 anos)…
Os oprimidos da Terra com a
legitimidade que os foi assistindo, animaram suas imprescindíveis vocações de
vida no Janeiro integral que cito, um Janeiro liberto, ágil no pêndulo mágico
dum animador de contraditórios antropológicos e históricos com todos os
sentidos do sul da América, como Eduardo Galeano, quando se debruçou
sobre “o Haiti e a maldição branca”, ou sobre “As veias abertas da
América Latina”!
Cabe aos africanos e também pelo
respeito que merece Eduardo Galeano, ampliá-lo em direcção a uma África-berço,
pelos nexos que foram criados nos dois lados do Atlântico Sul pelo próprio
exercício do poder dominante com rosto bárbaro e alma de pedra, quando o
comércio triangular levou a cabo um processo tão extensivo e doloroso nos
termos duma globalização tão sem ética, tão sem moral como a do tráfico
negreiro.
Já nessa altura havia a
assimilação daqueles africanos que alinhavam continente adentro com as “guerras
de quata-quata” em nome da “civilização judaico-cristã
ocidental” e foi assim que se começaram a projectar grupos familiares,
alguns deles com nomes que se distinguem hoje na assimilação luso-angolana.
A “civilização
judaico-cristã ocidental” alimenta-se desde então de ambiguidades,
hipocrisias e cinismos empedernidos, que venceram a devassa dos tempos por que
os contemporâneos que hoje a animam, não perderam, muito pelo contrário,
multiplicaram as suas opções coloniais, agora até ambientes virtuais adentro.
É ainda a sua opção que prevalece
inclusive na devassa do sul, cuja história para eles ou não existe, ou se o
existe serve apenas para arrecadar nos lugares mais escondidos das velhas
bibliotecas coloniais, ainda que possa ser um manancial de como as oligarquias
devem fazer para melhor dominarem nem que seja pela via dum “soft power” de
cariz colonial.
Sobre o Haiti, recordo, faltou a
Eduardo Galeano inscrever nesse pêndulo libertário que a revolução dos escravos
provocou, a ignição da corrente que tem animado também o movimento de
libertação que perfez agora 215 anos de longevidade em ambos os lados do
Atlântico!
Aqui em África, mesmo os que
trilharam um movimento de libertação de armas na mão século e meio depois da
independência do Haiti, não têm disso memória consciente e escrita, quando essa
matriz digna da referência dum Janeiro integral, deveria fazer parte dos
manuais e compêndios das próprias escolas primárias da praticamente todos os
países que compõem a longa costa ocidental africana, a fim de mobilizar desde o
berço as gerações que vão preencher o futuro, tornando-as capazes da energia
que conduz a um renascimento africano que só existe em sonhos e nas miragens de
longínquos horizontes presos hoje às alienações dos poderosos e seus
assimiladores processos dominantes.
É nesse labirinto pantanoso em
que estão ainda hoje presos os povos africanos e até um significativo número
dos seus intelectuais.
Tornou-se mais fácil a África, na
mentalidade média que foi formatada por vias duma globalização que tem tanto a
ver com o exercício do poder dominante, aferirem-se os manuais e os compêndios
escolares africanos às leituras históricas das “guerras psicológicas” determinadas
pelos poderosos, assim como das leituras aferidas ao seu “soft power” em
termos de aculturação e assimilação, do que identificar as raízes históricas e
antropológicas de algo tão vital como o movimento de libertação global, como
uma força telúrica ascendente que emerge da energia vital dos seres humanos
mais oprimidos da Terra!...
Imaginam o que isso significa em
termos de inibição psicológica colectiva e individual para os africanos, em
termos de formatação de sua mentalidade, ao invés de se ganhar capacidade
crítica consciente a fim de despoletar as energias no sentido do renascimento
de África?
Não será esse um dos eixos da
guerra psicológica que se move contra os povos do sul, para que prevaleça o
neocolonialismo?
Não se está a tornar o processo
criativo de África num nado-morto repetido década a década, por causa da apatia
induzida com tantos fatalismos que essa ausência de memória acarreta?
Em África assiste-se ao corte da
identidade cultural e histórica que emana das raízes do movimento de
libertação, por que os poderosos querem que, por via da alienação, ou impondo o
fim da história segundo Francis Fukuyama, haja o corte do que é necessário
legitimar hoje nos termos de sua sequência e no que diz respeito a uma das
questões essenciais da aplicação substantiva da lógica com sentido de vida.
Que implicações correntes essa questão
antropológica e histórica tem nos dois lados continentais que bordejam o
Atlântico Sul, ampliando o génio dialético de Eduardo Galeano?
Quando tenho formulado, a
necessidade de se aprofundar a compreensão da lógica com sentido de vida,
quanto disso implica no reconhecimento premente da necessidade da projecção
duma fundamentada geoestratégia para um desenvolvimento sustentável em Angola e
em África (tal como na América Latina), capaz de conduzir aos resgates de
conhecimento tão necessários à gestação duma cultura de inteligência abrangente
e mobilizadora, no caso angolano ao mesmo tempo patriótica?
Martinho Júnior - Luanda, 6 de
Fevereiro de 2019
Ilustração: quadro do haitiano
Albert Desmangles – memória das sereias ignotas cuja sepultura é o leito do
mar…
Do anterior: Janeiro integral – I
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