quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Janeiro integral II


Martinho Júnior, Luanda 

2- Janeiro integral anima a percepção desde a raiz do movimento de libertação e cito três pequenos exemplos que os poderosos até nem sequer alguma vez querem lembrar-se ou fazer lembrar como inerentes às questões vitais da humanidade e por isso tentam apagar da memória por que chegaram à euforia da conclusão prática do fim da história, de que viva o mercado carregado de cestas consumistas e de umbigos grandes e para lembrar, se espaço ainda houver para lembranças, subsiste apenas o temor de cada “guerra fria” a que reduziram os conteúdos da própria história e do que desemboca no próprio universo contemporâneo!

A 1 de Janeiro comemora-se a independência do Haiti em 1804 (ocorrida há 215 anos), da vitória da revolução cubana em 1959 (há 60 anos) e da passagem do Che por Brazzaville, em consonância com a vocação do MPLA, (a 2 de Janeiro de 1965, há 54 anos)…

Os oprimidos da Terra com a legitimidade que os foi assistindo, animaram suas imprescindíveis vocações de vida no Janeiro integral que cito, um Janeiro liberto, ágil no pêndulo mágico dum animador de contraditórios antropológicos e históricos com todos os sentidos do sul da América, como Eduardo Galeano, quando se debruçou sobre “o Haiti e a maldição branca”, ou sobre “As veias abertas da América Latina”!

Cabe aos africanos e também pelo respeito que merece Eduardo Galeano, ampliá-lo em direcção a uma África-berço, pelos nexos que foram criados nos dois lados do Atlântico Sul pelo próprio exercício do poder dominante com rosto bárbaro e alma de pedra, quando o comércio triangular levou a cabo um processo tão extensivo e doloroso nos termos duma globalização tão sem ética, tão sem moral como a do tráfico negreiro.

Já nessa altura havia a assimilação daqueles africanos que alinhavam continente adentro com as “guerras de quata-quata” em nome da “civilização judaico-cristã ocidental” e foi assim que se começaram a projectar grupos familiares, alguns deles com nomes que se distinguem hoje na assimilação luso-angolana.

A “civilização judaico-cristã ocidental” alimenta-se desde então de ambiguidades, hipocrisias e cinismos empedernidos, que venceram a devassa dos tempos por que os contemporâneos que hoje a animam, não perderam, muito pelo contrário, multiplicaram as suas opções coloniais, agora até ambientes virtuais adentro.

É ainda a sua opção que prevalece inclusive na devassa do sul, cuja história para eles ou não existe, ou se o existe serve apenas para arrecadar nos lugares mais escondidos das velhas bibliotecas coloniais, ainda que possa ser um manancial de como as oligarquias devem fazer para melhor dominarem nem que seja pela via dum “soft power” de cariz colonial.

Sobre o Haiti, recordo, faltou a Eduardo Galeano inscrever nesse pêndulo libertário que a revolução dos escravos provocou, a ignição da corrente que tem animado também o movimento de libertação que perfez agora 215 anos de longevidade em ambos os lados do Atlântico!

Aqui em África, mesmo os que trilharam um movimento de libertação de armas na mão século e meio depois da independência do Haiti, não têm disso memória consciente e escrita, quando essa matriz digna da referência dum Janeiro integral, deveria fazer parte dos manuais e compêndios das próprias escolas primárias da praticamente todos os países que compõem a longa costa ocidental africana, a fim de mobilizar desde o berço as gerações que vão preencher o futuro, tornando-as capazes da energia que conduz a um renascimento africano que só existe em sonhos e nas miragens de longínquos horizontes presos hoje às alienações dos poderosos e seus assimiladores processos dominantes.

É nesse labirinto pantanoso em que estão ainda hoje presos os povos africanos e até um significativo número dos seus intelectuais.

Tornou-se mais fácil a África, na mentalidade média que foi formatada por vias duma globalização que tem tanto a ver com o exercício do poder dominante, aferirem-se os manuais e os compêndios escolares africanos às leituras históricas das “guerras psicológicas” determinadas pelos poderosos, assim como das leituras aferidas ao seu “soft power” em termos de aculturação e assimilação, do que identificar as raízes históricas e antropológicas de algo tão vital como o movimento de libertação global, como uma força telúrica ascendente que emerge da energia vital dos seres humanos mais oprimidos da Terra!...

Imaginam o que isso significa em termos de inibição psicológica colectiva e individual para os africanos, em termos de formatação de sua mentalidade, ao invés de se ganhar capacidade crítica consciente a fim de despoletar as energias no sentido do renascimento de África?

Não será esse um dos eixos da guerra psicológica que se move contra os povos do sul, para que prevaleça o neocolonialismo?

Não se está a tornar o processo criativo de África num nado-morto repetido década a década, por causa da apatia induzida com tantos fatalismos que essa ausência de memória acarreta?

Em África assiste-se ao corte da identidade cultural e histórica que emana das raízes do movimento de libertação, por que os poderosos querem que, por via da alienação, ou impondo o fim da história segundo Francis Fukuyama, haja o corte do que é necessário legitimar hoje nos termos de sua sequência e no que diz respeito a uma das questões essenciais da aplicação substantiva da lógica com sentido de vida.

Que implicações correntes essa questão antropológica e histórica tem nos dois lados continentais que bordejam o Atlântico Sul, ampliando o génio dialético de Eduardo Galeano?

Quando tenho formulado, a necessidade de se aprofundar a compreensão da lógica com sentido de vida, quanto disso implica no reconhecimento premente da necessidade da projecção duma fundamentada geoestratégia para um desenvolvimento sustentável em Angola e em África (tal como na América Latina), capaz de conduzir aos resgates de conhecimento tão necessários à gestação duma cultura de inteligência abrangente e mobilizadora, no caso angolano ao mesmo tempo patriótica?

Martinho Júnior - Luanda, 6 de Fevereiro de 2019

Ilustração: quadro do haitiano Albert Desmangles – memória das sereias ignotas cuja sepultura é o leito do mar…

Do anterior: Janeiro integral – I

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